Esse site usa cookies e dados pessoais de acordo com os nossos Termos de Uso e Política de Privacidade e, ao continuar navegando neste site, você concorda com suas condições.

< Artigos

Economia

Bitcoin e a teoria do dinheiro

22/08/2025

Bitcoin e a teoria do dinheiro

Nota da edição:

Este artigo é a tradução do décimo sexto capítulo do livro do economista Robert P. Murphy, Understanding Money Mechanics [“Entendendo a mecânica do dinheiro”, em tradução livre]. Nas próximas semanas, seguiremos publicando seções traduzidas do livro no site do Instituto Mises Brasil, com o objetivo de trazer ao nosso público a oportunidade de acessar o rico conteúdo sobre teoria monetária produzido por Bob Murphy.

_____________________________________________

Em um manual moderno sobre a mecânica do dinheiro, é necessário fornecer ao menos uma introdução ao Bitcoin[i]. Consequentemente, neste capítulo vamos primeiro apresentar uma explicação básica sobre o que é o Bitcoin e como ele funciona. Em seguida, colocaremos o Bitcoin no quadro teórico de dinheiro que desenvolvemos no capítulo 1, buscando responder à pergunta fundamental: Bitcoin é dinheiro? Por fim, relacionaremos o Bitcoin a um componente importante na discussão da escola austríaca sobre o dinheiro, a saber, o “teorema da regressão” de Ludwig von Mises.

 

Explicando o Bitcoin por meio de uma analogia[ii]

“Bitcoin” abrange dois conceitos relacionados, mas distintos. Primeiro, os bitcoins individuais (com “b” minúsculo) são unidades de uma moeda digital (fiat)[iii]. Segundo, o protocolo Bitcoin (com “B” maiúsculo) rege a rede descentralizada por meio da qual milhares de computadores espalhados pelo mundo mantêm um “registro público”, conhecido como blockchain, que conserva um histórico totalmente transparente de cada transferência autenticada de bitcoins desde o momento em que o sistema se tornou operacional, no início de 2009. Em resumo, o Bitcoin engloba tanto (1) uma moeda digital sem lastro quanto (2) um sistema de pagamento online descentralizado.

De acordo com seu site oficial: “O Bitcoin utiliza tecnologia peer-to-peer para operar sem autoridade central; o gerenciamento das transações e a emissão de bitcoins são realizados coletivamente pela rede”[iv]. Qualquer pessoa que queira participar pode baixar o software Bitcoin em seu computador e integrar-se à rede, engajando-se em operações de “mineração” e auxiliando na verificação do histórico de transações.

Para compreender plenamente como o Bitcoin funciona, é necessário conhecer as sutilezas da criptografia de chave pública, tema que discutiremos brevemente em uma seção posterior. Por ora, em vez disso, focaremos em uma analogia que capta a essência econômica do Bitcoin, evitando a necessidade de introduzir novos termos técnicos.

Imagine uma comunidade onde o dinheiro é baseado nos números inteiros que vão de 1, 2, 3, … até 21.000.000. Em qualquer momento, uma pessoa “possui” o número 8, enquanto outra pessoa “possui” o número 349, e assim por diante.

Nesse contexto, suponha que Bill queira comprar um carro de Sally, e a etiqueta de preço no carro diga: “Dois números”. Bill, por acaso, está de posse dos números 3 e 12. Então, Bill entrega os dois números a Sally, e Sally entrega o carro a Bill. A comunidade reconhece dois fatos: primeiro, que o título de propriedade do carro foi transferido de Sally para Bill; e, segundo, que Sally agora é a proprietária dos números 3 e 12.

Suponha ainda que, nessa comunidade fictícia, exista uma indústria composta por milhares de contadores responsáveis por manter o registro de propriedade dos 21 milhões de números inteiros. Cada contador conserva um enorme livro-razão em um arquivo de Excel. As colunas se estendem no topo, de 1 até 21 milhões, enquanto as linhas registram cada transferência de um número específico. Por exemplo, quando Bill comprou o carro de Sally, os contadores que estavam ao alcance de ouvir a transação registraram em seus respectivos arquivos de Excel: “Agora em posse de Sally” na próxima linha disponível, nas colunas correspondentes aos números 3 e 12. Nesses registros, se olhássemos uma linha acima, veríamos “Agora em posse de Bill” para esses dois números, já que Bill era o proprietário deles antes de transferi-los a Sally.

Além de documentar as transações das quais têm conhecimento direto, os contadores também verificam periodicamente seus próprios livros-razão em comparação com os de seus vizinhos. Se um contador descobre que seus colegas registraram transações envolvendo outros números (isto é, negociações das quais ele próprio não teve conhecimento direto), então esse contador preenche as linhas faltantes nas colunas correspondentes a esses números. Dessa forma, em qualquer momento, existem milhares de contadores, cada um com um histórico praticamente completo de todas as transações envolvendo os 21 milhões de números.

 

Explicando a analogia

Esperamos que nossa analogia ofereça uma boa introdução para explicar como o Bitcoin funciona. Em nossa história hipotética, as pessoas da comunidade acompanhavam qual indivíduo “possuía” um número abstrato e intangível. É claro que você não pode segurar fisicamente o número 3, mas, como a comunidade havia adotado a convenção de que os arquivos de Excel dos contadores registravam qual pessoa estava “associada” ao número 3, havia um sentido em que se podia dizer que aquela pessoa o possuía. E então, como nossa história mostrou, uma pessoa podia transferir sua reivindicação sobre um número para comprar bens reais, como um carro.

Para manter as coisas simples, em nossa analogia presumimos que a comunidade já havia chegado ao estágio final, depois que todos os bitcoins tivessem sido “minerados”. No mundo real, isso ocorrerá em algum momento após o ano de 2100, quando (praticamente) todos os 21 milhões de bitcoins já estiverem em circulação, nas mãos do público[v]. Após esse ponto, não haverá mais operações de “mineração”; o número total de bitcoins ficará fixado em 21 milhões, para sempre.

Assim como em nossa história, quando pessoas do mundo real querem comprar algo usando Bitcoin, elas transferem sua propriedade sobre uma certa quantidade de bitcoins (ou frações de um bitcoin, para compras menores) para outras pessoas em troca de bens e serviços. Essa transferência é realizada pela rede de computadores que executa cálculos e altera a chave pública à qual os bitcoins “vendidos” estão atribuídos. (Isso é análogo aos contadores, em nossa história, registrando o nome de uma nova pessoa na coluna de um determinado número inteiro). Em vez de entregar fisicamente um objeto, como uma nota de 20 dólares ou uma moeda de ouro, ao vendedor, o comprador que utiliza Bitcoin realiza as operações eletrônicas necessárias para instruir a rede de computadores a editar o blockchain, de modo a refletir a transferência da propriedade/controle dos bitcoins correspondentes para o vendedor.

 

Onde a criptografia entra? O problema dos proprietários anônimos

Este livro trata de economia, não de ciência da computação, e, consequentemente, forneceremos apenas um esboço do que ocorre durante uma transação com Bitcoin. (Leitores interessados podem consultar as notas de rodapé para uma explicação mais completa[vi]). Mas não podemos aplicar conceitos econômicos a algo como o Bitcoin se não tivermos uma compreensão razoável do que ele é e de como funciona.

Primeiro, devemos esclarecer que, embora muitas vezes se ouça o termo criptografia nesse contexto, o Bitcoin na verdade não utiliza criptografia. Na realidade, o objetivo central é oferecer um registro público, documentando todas as transações em Bitcoin que já ocorreram. Seria contrário a esse propósito esconder as mensagens de transação por meio da criptografia. O que realmente precisamos é de um método para autenticar com segurança as transações que envolvem a transferência de bitcoins[vii].

Voltemos ao nosso mundo fictício de Bill e Sally, onde o dinheiro é baseado na “propriedade” publicamente reconhecida dos 21 milhões de números inteiros. Nossa história acima deixou em aberto um problema evidente que precisamos abordar: como os contadores verificam a identidade das pessoas que tentam comprar coisas com os números? Em nosso exemplo, Bill queria vender sua reivindicação pública sobre os números 3 e 12 a Sally, em troca do carro dela. Agora, em nossa história, presumimos que Bill realmente fosse o proprietário dos números 3 e 12; ele podia pagar pelo carro de Sally, já que ela estava pedindo “dois números” por ele. Os contadores verificariam, se questionados, que Bill é de fato o dono desses números; nas colunas “3” e “12” de todos os seus livros-razão, aparece “Bill” na última linha registrada.

Mas aqui está o problema: quando os contadores próximos veem Bill tentando comprar o carro de Sally, como sabem que aquele ser humano específico é realmente o “Bill” listado em seus registros? É necessário que exista algum meio de o verdadeiro Bill demonstrar a todos os contadores que ele é, de fato, o mesmo indivíduo referido nos livros-razão. Para evitar o gasto fraudulento da moeda por uma parte não autorizada, esse mecanismo deve ser tal que apenas o verdadeiro Bill consiga convencer os contadores de que ele é o sujeito em questão.

No mundo real, resolver esse problema é justamente onde entra toda a complexa criptografia de chave pública e privada. Para reiterar, no guia de Bitcoin citado nas notas de rodapé, todo esse material é explicado de forma detalhada, mas ainda intuitiva. Contudo, para nossos propósitos aqui, buscamos apenas oferecer uma compreensão básica de como o protocolo do Bitcoin funciona, sem nos aprofundarmos em detalhes técnicos.

Infelizmente, neste ponto nossa história de Bill e Sally fica um pouco caricata, mas é a melhor solução que o presente autor conseguiu elaborar. Então, sem mais delongas, suponhamos que a maneira encontrada pelas pessoas em nosso mundo fictício para lidar com o problema de associar os nomes nos livros de Excel dos contadores com seres humanos reais seja a seguinte: cada vez que um número é transferido em uma venda, o novo proprietário precisa inventar um enigma que somente ele ou ela seja capaz de resolver. Veja bem, as pessoas da comunidade são suficientemente espertas para reconhecer a resposta correta do enigma quando a ouvem, mas não são criativas o bastante para descobri-la por conta própria.

Por exemplo, quando o próprio Bill recebeu os números 3 e 12 de seu empregador, suponhamos que ele receba “dois números” todo mês como salário, os contadores lhe disseram:

“Muito bem, Bill, para proteger sua propriedade sobre esses dois números, precisamos que você invente um enigma que associaremos a eles. Iremos inserir o enigma dentro da mesma célula do nosso livro-razão em que aparece o nome ‘Bill’, nas colunas correspondentes aos números 3 e 12. Então, quando você quiser gastar esses dois números, basta nos dizer a resposta do seu enigma. Só liberaremos esses números para um novo dono se a pessoa que afirmar ser ‘Bill’ souber a resposta. Tenha em mente, Bill, que você pode estar do outro lado da cidade, cercado por contadores que nunca viu antes, no momento em que quiser gastar esses números. É por isso que simplesmente estarmos vendo você agora não é suficiente. Precisamos registrar um enigma em nossos livros, que também será copiado milhares de vezes à medida que a informação desta transação reverberar por toda a comunidade, de modo que cada contador acabará tendo ‘Bill’ e o seu enigma registrados na célula correta de seu livro-razão”.

Bill pensa por um momento e inventa um enigma engenhoso. Ele diz aos contadores: “Quando uma porta não é uma porta?” Os contadores registram cuidadosamente o enigma, que em seguida é propagado por toda a comunidade, juntamente com a informação de que “Bill” é o novo proprietário dos números 3 e 12.

Alguns dias depois, um vilão tenta se passar por Bill. Ele deseja comprar um colar que tem uma etiqueta de preço marcada como “um número”. Então o vilão diz aos contadores que estão por perto: “Eu sou Bill. Sou o dono do número 12, como todos podem ver; essas planilhas são informação pública. Portanto, transfiro aqui minha propriedade sobre o número 12 para este joalheiro, em troca do colar”.

Os contadores respondem: “Certo, Bill, basta verificar sua identidade. Qual é a solução do seu enigma? Diga-nos: ‘Quando uma porta não é uma porta?’”

O vilão pensa, pensa, mas não consegue encontrar a resposta correta. Então diz: “Quando a porta não é uma porta!” Os contadores se entreolham, coçam a cabeça e concordam: “Não, essa é uma resposta burra. Isso não resolveu o enigma”. Assim, eles negam a venda e o vilão não recebe o colar.

Algumas semanas depois, chegamos ao ponto em que nossa história começou originalmente, no início deste capítulo. O verdadeiro Bill quer comprar o carro de Sally por “dois números”. Ele anuncia aos contadores próximos: “Sou o proprietário dos números 3 e 12. Verifico isso resolvendo meu enigma: uma porta não é uma porta quando está entreaberta (ajar em inglês)”. Os contadores sorriem de satisfação! Aha! Essa é uma boa resposta para o enigma. Eles concordam que deve se tratar do verdadeiro Bill e permitem que a venda seja concluída. Registram “Sally” nas próximas linhas disponíveis das colunas 3 e 12 e, em seguida, pedem a Sally que forneça um novo enigma, cuja resposta apenas ela conheça.

Assim termina nossa analogia para explicar o básico do que é o Bitcoin e como ele funciona. No mundo real, é claro, em vez de criar e resolver enigmas verbais, existem problemas matemáticos complexos que apenas os legítimos proprietários dos bitcoins conseguem resolver rapidamente (usando suas chaves privadas). Mas esperamos ter oferecido um esboço suficiente do Bitcoin para que agora possamos analisá-lo à luz do quadro econômico que desenvolvemos lá no capítulo 1 deste livro.

 

O Bitcoin é um tipo de dinheiro?

Recordemos nossa discussão sobre a teoria do dinheiro no capítulo 1. Primeiro, destacamos os limites da troca direta, lembre-se do fazendeiro que precisava consertar seus sapatos e tinha ovos para oferecer, mas o sapateiro queria bacon? Vimos nessa história como a troca indireta podia resolver o problema. Especificamente, quando o fazendeiro trocou seus ovos com o açougueiro em troca de bacon, o bacon passou a ser um meio de troca. O fazendeiro aceitou o bacon não porque desejasse usá-lo diretamente, mas porque pretendia trocá-lo futuramente por outra coisa.

Depois de explicarmos o que era um meio de troca, fornecemos esta definição formal: dinheiro é um meio de troca que é universalmente aceito em uma determinada comunidade. Isso significa que existem dois critérios que precisam ser atendidos para que um bem seja classificado como dinheiro: primeiramente, o bem deve ser algo que as pessoas estejam dispostas a aceitar, não porque planejam usá-lo diretamente, mas porque pretendem trocá-lo novamente no futuro. (Isso o torna um meio de troca). Depois, (praticamente) todos na comunidade devem estar dispostos a aceitá-lo como dinheiro; se apenas uma fração do público aceita determinado bem dessa forma, então ele ainda é um meio de troca, mas não é dinheiro.

Após revisar essa terminologia padrão, podemos aplicá-la ao Bitcoin. No estágio atual de sua história, o Bitcoin é sem dúvida um meio de troca; há milhares de pessoas ao redor do mundo que trocam bens e serviços valiosos em troca do reconhecimento público, codificado no blockchain, de que controlam certas (frações de) bitcoins. A razão pela qual esses vendedores aceitam bitcoins, é claro, não é porque pretendam comê-los ou usá-los para produzir ratoeiras. Em vez disso, as pessoas aceitam bitcoins em troca porque esperam que eles mantenham poder de compra no futuro; desejam ter a capacidade de trocar esses bitcoins posteriormente por outros bens e serviços.

No entanto, mesmo que os bitcoins sejam claramente considerados meios de troca para algumas pessoas, ainda estamos longe do ponto em que eles são universalmente aceitos em qualquer comunidade economicamente relevante (a não ser que trapaceemos definindo a comunidade relevante como “aquelas pessoas que ficam satisfeitas em receber bitcoins em troca”). Até aqui, portanto, o Bitcoin não pode ser considerado dinheiro, embora, em princípio, o Bitcoin, ou alguma outra criptomoeda que o supere em popularidade, possa alcançar esse status no futuro.

 

Relacionando o Bitcoin à obra de Mises

Para concluir, devemos abordar uma controvérsia a respeito do Bitcoin e do trabalho monetário do famoso economista austríaco Ludwig von Mises. Em seu magistral livro de 1912, traduzido como A Teoria do Dinheiro e do Crédito, Mises tomou a nova teoria do valor subjetivo, desenvolvida no início da década de 1870 por economistas como Carl Menger, fundador da Escola Austríaca, e a aplicou à avaliação do próprio dinheiro[viii].

Economistas anteriores pensavam que essa abordagem não funcionaria, pois parecia envolver um argumento circular. Fazia sentido usar o arcabouço de Menger para explicar, por exemplo, o valor das batatas ou do vinho; as pessoas atribuíam valor subjetivo às satisfações que esses bens proporcionavam, e esse era o ponto de partida para compreender seu valor de troca no mercado.

Mas, quando se tratava de explicar o valor de mercado, ou poder de compra, do próprio dinheiro, a teoria do valor subjetivo de Menger parecia um beco sem saída, porque a única razão para se valorizar o dinheiro é o fato de que ele permite comprar coisas no mercado. Assim, parecia que o economista teria de argumentar que as pessoas valorizam o dinheiro porque as pessoas valorizam o dinheiro. Isso configurava um argumento circular, e foi por isso que a maioria dos economistas utilizava a teoria do valor subjetivo de Menger para explicar o valor de mercado de todos os bens e serviços, exceto o dinheiro.

No entanto, em sua obra de 1912, Mises mostrou uma saída para esse impasse. A solução foi introduzir o elemento do tempo. Especificamente, quando as pessoas aceitam dinheiro em troca no presente, é porque esperam que esse dinheiro tenha poder de compra no futuro. E suas expectativas quanto a esse poder de compra se baseiam em suas observações sobre a capacidade do dinheiro de adquirir bens e serviços no passado imediato. Em suma: as pessoas valorizam o dinheiro hoje porque esperam que ele tenha determinado valor amanhã, e isso, por sua vez, se baseia na memória de seu valor ontem.

Até aqui, tudo bem: Mises havia escapado do aparente argumento circular ao introduzir o elemento temporal. Mas agora ele enfrentava uma objeção diferente: se o economista, usando a teoria do valor subjetivo, termina explicando o poder de compra do dinheiro hoje com base em observações de seu poder de compra ontem, então como explicamos o poder de compra ontem? Ora, precisamos voltar ao dia anterior a esse, e assim por diante. Os críticos então perguntavam: Mises não teria apenas substituído um argumento circular por um argumento com regressão infinita? Ainda parecia que aplicar a nova teoria do valor de Menger ao próprio dinheiro não iria funcionar.

Ainda assim, Mises resolveu esse problema também. Ele destacou que não precisamos rastrear o poder de compra do dinheiro infinitamente no passado. Em vez disso, basta retroceder até o ponto em que o bem monetário era uma mercadoria comum, antes de ser valorizado em seu papel de meio de troca.

Por exemplo, em nossa história envolvendo o fazendeiro, não temos dificuldade em usar a teoria do valor subjetivo de Menger para explicar por que as pessoas da comunidade valorizariam diretamente o bacon, por sua capacidade de satisfazer a fome de maneira saborosa. Depois, poderíamos acrescentar a complicação de como o valor de mercado do bacon seria ampliado quando o fazendeiro o aceitasse em troca não porque quisesse comê-lo, mas porque pretendia trocá-lo com o sapateiro. Note que não há regressão infinita nesse procedimento.

Essa técnica passou a ser conhecida como o teorema da regressão de Mises. Ao explicar o valor de mercado do dinheiro com referência a uma cadeia histórica que remonta ao surgimento de mercadorias comuns em um mundo de trocas diretas, Mises conseguiu resolver os problemas que haviam impedido outros economistas de aplicar a teoria do valor subjetivo “moderna” (isto é, pós-1871) ao próprio dinheiro.

Como Mises precisou citar o surgimento do dinheiro a partir de um estado de troca direta para explicar satisfatoriamente seu valor de mercado atual, ele fez algumas afirmações bastante definitivas sobre o tipo de passado que o dinheiro necessariamente teria de possuir. Aqui estão dois exemplos da obra clássica de Mises, Ação Humana:

“[N]enhum bem pode ser empregado para a função de meio de troca que, desde o início de seu uso para esse propósito, não tenha tido valor de troca em razão de outros usos” (Mises, 1998, p. 407).

E:

“Um meio de troca sem passado é impensável. Nada pode assumir a função de meio de troca que não tenha sido previamente um bem econômico, ao qual as pessoas já atribuíssem valor de troca antes mesmo de ser demandado como tal meio” (Mises, 1998, p. 423).

À luz das afirmações categóricas de Mises, podemos perceber rapidamente por que tantos adeptos da Escola Austríaca têm uma grande dificuldade com o Bitcoin: já que o Bitcoin nasceu para ser uma moeda, em vez de primeiro servir como uma mercadoria comum, isso não significaria que ele não pode ser dinheiro? Ou, indo pelo caminho oposto, se o Bitcoin de fato se tornasse dinheiro, isso não implicaria que Mises teria se equivocado?

orrendo o risco de parecer evasivos, não vamos aqui explorar a fascinante questão de saber se o caso do Bitcoin viola o teorema da regressão, ou se suas características heterodoxas podem ser conciliadas com o arcabouço monetário de Mises (que ele obviamente concebeu tendo em mente bens tangíveis). Outros economistas, familiarizados tanto com a Escola Austríaca quanto com o Bitcoin, já se pronunciaram sobre essa questão intrigante[ix].

Em vez disso, vamos fazer aqui uma afirmação muito mais modesta: se o Bitcoin viola ou não o teorema da regressão não é, neste momento, uma questão empírica. Como indicam as citações de Mises acima, o teorema da regressão na verdade não se refere a um bem tornando-se dinheiro, mas sim a um bem tornando-se um meio de troca.

E, como já argumentamos, o Bitcoin claramente já se tornou um meio de troca (embora não seja dinheiro sob nenhum critério razoável). Portanto, a questão já está posta de uma forma ou de outra: ou o surgimento do Bitcoin como meio de troca violou o teorema da regressão, ou não violou. (Argumentos razoáveis podem ser feitos em ambas as direções.) Não há nenhum outro obstáculo adicional que o teorema da regressão imponha que possa dificultar a adoção do Bitcoin pela comunidade em geral e, consequentemente, sua transformação não apenas em meio de troca, mas em dinheiro.

Resumindo: se o Bitcoin se tornará ou não um dinheiro legítimo ainda é uma questão empírica em aberto, mas, neste ponto, já que o Bitcoin é atualmente um meio de troca, o teorema da regressão de Mises não tem influência alguma sobre o desfecho.

 

Notas:

[i] Para maior concretude, neste capítulo nos referiremos especificamente ao Bitcoin. No entanto, muito do que dizemos será aplicável a outras criptomoedas.

[ii] Grande parte do material deste capítulo foi reproduzido de Silas Barta e Robert P. Murphy, Understanding Bitcoin: The Liberty Lover’s Guide to the Mechanics and Economics of Crypto-Currencies, versão 1.11 (autoeditado, CreateSpace, 2017), disponível em understandingbitcoin.us/wp-content/uploads/2017/12/2017.11-Understanding-Bitcoin-v1.11.pdf.

[iii] Muitos entusiastas do Bitcoin se oporiam veementemente a classificá-lo como uma moeda fiduciária, porque a rede Bitcoin é totalmente voluntária e não depende de leis de curso legal impostas pelo Estado ou outros métodos de supressão da concorrência. No entanto, em economia monetária, o termo fiduciário tem um significado muito preciso, sob o qual (argumentamos) os bitcoins se qualificariam. (Veja A Teoria do Dinheiro e do Crédito, de Ludwig von Mises, para uma abordagem acadêmica.) Em particular, simplesmente não é verdade que o Estado pode simplesmente declarar “por meio de fiat” que algo é dinheiro. Em nossa opinião, é mais importante para o iniciante entender que não há nenhuma outra mercadoria ou ativo “respalhando” os bitcoins, e é nesse sentido que se trata de uma moeda fiduciária, do que evitar as possíveis conotações negativas do uso de um termo que geralmente é reservado para dinheiro de baixa qualidade emitido por Estados modernos.

[iv] Veja http://bitcoin.org.

[v] A rigor, a quantidade total de bitcoins minerados nunca chegará a 21 milhões; o protocolo garante que, eventualmente, a recompensa pela mineração de um novo bloco será arredondada para literalmente zero bitcoins (por volta do ano 2140). Mas atualmente se projeta que, a partir do ano 2108, a mineração a partir desse ponto só colocará em circulação frações cada vez menores do 21 milionésimo bitcoin; consulte “Controlled Supply” (Fornecimento controlado), Bitcoin Wiki, última modificação em 11 de fevereiro de 2020, https://en.bitcoin.it/wiki/Controlled_supply#Projected_Bitcoins_Long_Term .  Outra complicação é que algumas (frações de) bitcoins serão “perdidas” ao longo das décadas, à medida que as pessoas morrem ou esquecem suas chaves privadas, e assim por diante. Portanto, mesmo que essas (frações de) bitcoins tenham sido mineradas, elas ficarão para sempre inacessíveis em transações, tornando-as efetivamente removidas da quantidade de bitcoins disponíveis ao público. Elas serão economicamente equivalentes a moedas de ouro que afundaram com um navio e estão no fundo do oceano.

[vi]  Para uma explicação detalhada sobre a criptografia por trás das transações Bitcoin, consulte Barta e Murphy, Understanding Bitcoin, em particular as páginas 14–35.

[vii] A confusão pode vir do fato de que tanto a criptografia quanto a autenticação são tópicos dentro do campo da criptografia. Elas também são “duais” entre si, pois nos sistemas de chave pública a operação de assinar uma mensagem é a mesma que descriptografá-la, e a operação de verificar uma assinatura é a mesma que criptografar uma mensagem. Mas, repetindo, estritamente falando, o Bitcoin não depende de criptografia, embora muitas pessoas frequentemente digam que sim.

[viii] Para uma abordagem mais detalhada deste tema, consulte Robert P. Murphy, “The Origin of Money and Its Value” (A origem do dinheiro e seu valor), Mises Daily, 29 de setembro de 2003, https://mises.org/library/origin-money-and-its-value.

[ix] Veja, por exemplo, Laura Davidson e Walter Block, “Bitcoin, o Teorema da Regressão e o Surgimento de um Novo Meio de Troca”, Quarterly Journal of Austrian Economics 18, n.º 3 (Outono de 2015): 311–38, disponível em https://cdn.mises.org/Bitcoin%20the%20Regression%20Theorem%20and%20the%20Emergence%20of%20a%20New%20Medium%20of%20Exchange.pdf.

 

Este artigo foi originalmente publicado no Mises Institute.

 

Recomendações de leitura:

Capítulo 1: A teoria e uma breve história do dinheiro e dos bancos

Capítulo 2: Uma breve história do padrão ouro, com um foco no caso americano

Capítulo 3: A história e a estrutura do Federal Reserve 

Capítulo 4: Operações padrão de mercado aberto: como o Fed e os bancos comerciais “criam dinheiro”

Capítulo 5: Além do Fed: "sistema bancário paralelo" e o mercado global de dólares

Capítulo 6: Políticas dos bancos centrais desde a crise financeira de 2008

Capítulo 7: A Política do Fed desde o Pânico do Coronavírus de 2020

Capítulo 8: A teoria do ciclo econômico baseada no crédito circulante de Ludwig von Mises

Capítulo 9: Inflação Monetária e Inflação de Preços

Capítulo 10: A curva de juros invertida e a recessão

Capítulo 11: O Fed e a bolha imobiliária

Capítulo 12: Os manuais de economia explicam errado o funcionamento do dinheiro e do sistema bancário?

Capítulo 13: Soando o alarme falso sobre a (hiper)inflação

Capítulo 14: A Causa e a Cura das Depressões Segundo os Keynesianos

Capítulo 15: Os monetaristas de mercado e a meta de crescimento do PIB nominal

_____________________________________________

Nota: as visões expressas no artigo não são necessariamente aquelas do Instituto Mises Brasil.

Sobre o autor

Robert P. Murphy

É Ph.D em economia pela New York University, economista do Institute for Energy Research, um scholar adjunto do Mises Institute.

Comentários (0)

Deixe seu comentário

Há campos obrigatórios a serem preenchidos!