segunda-feira, 28 fev 2022
Saul atacando David (1646) - Guercino (1591—1666)
Em
seu livro
A Anatomia do
Estado, Murray Rothbard escreveu:
Assim como as duas interrelações humanas básicas
e mutuamente exclusivas são a cooperação pacífica ou a exploração coerciva —
produção ou depredação —, a história da humanidade, em particular a sua
história econômica, também pode ser considerada uma disputa entre estes dois
princípios.
Essa
disputa tem sido unilateral. No mundo
antigo, impérios dominavam a vida política. Sistemas impiedosos baseados na
escravidão, no roubo e na guerra eram a regra ao redor do mundo.
Uma exceção, em um território rodeado por
impérios desse tipo, eram as tribos de Israel. Mesmo alertados pelo próprio Deus sobre a
miséria que enfrentariam caso renunciassem voluntariamente à liberdade que
gozavam sob o regime descentralizado dos juízes em favor de um rei terreno que
os governasse, eles clamaram pela própria escravização.
É instrutivo que a recompensa que os
israelitas julgavam justa, não obstante seu alto preço, fosse a de ter um rei que
os liderasse em
batalha. Tendo Saul
como rei, Israel não mais desfrutou de períodos de paz como quando sob a
liderança dos juízes; esteve constantemente em guerra.
Como Samuel havia alertado,
Saul tomou seus filhos como soldados, suas filhas e seus empregados como
escravos, suas melhores terras, suas colheitas e seus rebanhos, assim reduzindo
os israelitas à servidão.[1]
Os
israelitas não seriam o último povo a sucumbir ao canto de sereia da guerra. A respeito da importância da guerra como um
instrumento para o engrandecimento do poder do estado em sua disputa contra a
liberdade, Rothbard escreveu:
Em uma guerra, o poder do estado é levado ao
extremo, e sob os slogans da "defesa" e da "emergência",
ele pode impor uma tirania ao público que, em tempos de paz, enfrentaria franca
e aberta resistência. Desta forma, a guerra provê muitos benefícios a um
estado e, de fato, todas as guerras modernas trouxeram aos povos envolvidos um
permanente legado de maiores encargos estatais sobre a sociedade.
A
guerra não apenas amplia enormemente as transferências de riqueza da sociedade
para o estado para que este fortaleça seu regime, como também promove a
ideologia pró-estado.
Como o estado vive
parasiticamente da produção de seus hospedeiros, aqueles que se beneficiam destas
transferências de riqueza devem ser sempre uma minoria da população. As vítimas do estado têm de ser a maioria e,
portanto, sua aceitação da depredação promovida pelo estado deve ser cuidadosamente
engendrada, caso contrário será o fim desse mesmo estado.
A
legitimidade do estado deve ser fabricada e mantida por meio da ideologia. Do despotismo oriental à hegemonia americana,
o estado nunca falhou em atrair, com seu poder e riqueza, aqueles que se
esforçassem para criar sua apologia.
Mas
mesmo toda a litania de alegações — que nossos governantes são sábios e seus
governos são beneficentes, que nossos governantes nos protegem de perigos
terríveis, que nossos governantes mantêm a coesão social, que nossos
governantes preservam a tradição gloriosa de nossos ancestrais, que nossos
governantes incorporam os interesses da sociedade, que nossos governantes são
designados por Deus, que nossos governantes trazem ciência e razão à sociedade,
que nossos governantes são capazes de controlar a economia e assim por diante —
nunca conseguiu explicar como é possível transformar hegemonia em associação voluntária,
tributação em oferenda espontânea, coerção em liberdade de escolha, homicídio
em massa em defesa, regulação econômica em prosperidade e enriquecimento de
todos.
Se o estado é a fonte de onde
jorram todas as benesses sociais, então por que seus apologistas estão sempre
tentando fortalecer seu poder instigando um sentimento de culpa nos bem-sucedidos e de inveja nos mal-sucedidos?
Nós
libertários conseguimos ver através das mentiras e dos sofismas da ideologia
pró-estado porque soubemos aceitar a verdade promovida por aqueles que sempre defenderam
a liberdade. Extrapolando da nossa
experiência, podemos ver que a ideologia anti-estado é condição necessária para se
estabelecer e manter a liberdade. As
vantagens que ela tem sobre a ideologia pró-estado são que, primeiro, ela recorre aos interesses da maioria, e segundo, ela se apóia na verdade a respeito da
natureza da ação humana.
Ao passo que a
liberdade é consistente com a ação humana, o estado está fundamentado em uma flagrante
contradição, a saber: a ideia de que a única maneira de haver uma instituição
que proteja nossos direitos é criando uma instituição que se baseie totalmente
na própria violação dos nossos direitos.
Os
antigos israelitas seguiam uma ideologia que possuía muitas das qualidades
necessárias para manter o poder estatal restringido, como, por exemplo, uma lei
superior à qual todo homem estava sujeito, e um sistema de governo
descentralizado. Por algumas gerações, os reis de Israel foram um tanto quanto
contidos pela lei superior. Mas à medida que a perversidade dos reis posteriores foi aumentando,
a lei superior foi sendo finalmente abandonada, até que as liberdades dos
israelitas foram extintas.[2]
Levaria
muitos séculos para que o mundo testemunhasse outra faísca de liberdade. Ela foi acesa sob Sólon, em Atenas, e sua
brasa brilhou mais vivamente durante o reinado de Péricles. Mas a liberdade durou somente enquanto
Péricles e sua geração estiveram vivos.
De
acordo com Lord Acton, o sistema ateniense não foi capaz de proteger as
minorias e de colocar o estado sob o domínio da lei. A democracia de Atenas, no final, levou ao
conflito de classes, o que destruiu o sistema. A Guerra do Peloponeso extinguiu tanto
Péricles quanto a chama da liberdade ateniense.[3]
Em
Roma, os estóicos redescobriram o conceito de lei superior à qual todos os
homens estão sujeitos. Em sua maior
formulação, nas mãos de Cícero, Sêneca e Fílon, os estóicos afirmaram que há
uma comunidade universal dos filhos de Deus e que Sua voz deveria ser
obedecida. A liberdade seria alcançada
por meio da obediência das leis naturais de Deus. Com uma ideologia melhor que
a dos gregos, a nova batalha pela liberdade durou bem mais em Roma do que em Atenas. Mas ela nunca
atingiu na prática as elevadas expressões alcançadas na teoria.[4]
Como Acton escreveu,
Indivíduos e famílias, associações e
dependências eram material mais do que suficiente para o poder soberano
consumir para seus próprios objetivos. O
que o escravo era nas mãos de seu mestre, o cidadão era nas mãos da comunidade. As mais sagradas obrigações
desapareceram ante as vantagens públicas. Os passageiros existiam para
sustentar o navio.[5]
No
auge de seu poder, antes que as guerras do império abortassem sua liberdade e
prosperidade embrionárias, Roma encontrou uma esperança de liberdade nos homens
livres das comunidades teutônicas. Quando
seus líderes foram convertidos ao cristianismo, eles converteram seu povo. Após a queda de Roma, seus governos descentralizados
persistiram uma vez que a Igreja resistia à centralização do poder estatal,
permitindo um longo período de incubação para o nascimento da liberdade.[6]
A
vez da liberdade chegou durante o século X, quando os escandinavos interromperam
suas invasões agressivas à Europa e passaram a praticar o livre comércio de
forma pacífica.
No século seguinte, o
Mediterrâneo estava seguro para a navegação europeia. Veneza e as cidades do
norte da Itália prosperaram expandindo suas rotas comerciais e levando a
divisão do trabalho às cidades do interior. As cidades hanseáticas fizeram o mesmo no
norte da Europa. Como escreveu Henri Pirenne, a Europa tornou-se uma região de
cidades construídas pelo capital.[7]
O
florescimento do comércio na Europa foi fortalecido pelo desenvolvimento de uma
ideologia pró-liberdade, elevada a um apogeu inédito pela doutrina cristã do
indivíduo. O próprio Deus havia encarnado e vivido como um homem. Jesus Cristo sofreu e morreu para assegurar a
salvação de cada indivíduo. No Céu, Deus
glorificará cada pessoa com um corpo espiritual para viver em comunhão com Ele
e com o próximo. Nações prosperam e entram em decadência, mas o indivíduo
viverá pela eternidade.
Como
mostrou Harold Berman, no século XI, a Igreja reformulou o direito canônico em
linhas mais favoráveis à propriedade privada e ao contrato. A lei canônica
funcionou como um fermento para os diferentes sistemas legais, tanto o civil quanto
o comercial.[8]
Berman escreveu:
Talvez a característica mais distintiva da
tradição legal ocidental seja a coexistência e a competição dentro da mesma
comunidade de jurisdições diferentes e de sistemas legais diferentes. É essa
pluralidade de jurisdições e sistemas legais que torna a supremacia da lei
necessária e possível.
O pluralismo legal originou-se na diferenciação
entre o governo eclesiástico e os governos seculares. A Igreja declarou sua independência do
controle secular, sua jurisdição exclusiva em determinados assuntos, e sua
jurisdição concorrente em outros assuntos ... A lei secular, por sua vez, estava
dividida em vários tipos concorrentes, incluindo a lei real, a lei feudal, a
lei senhorial, a lei urbana, e a lei comercial.[9]
Na
medida em que a proteção legal da propriedade privada ia sendo lenta mas
decisivamente ampliada da Igreja e dos mercadores para qualquer indivíduo, o
progresso econômico foi levado às massas. A pequena revolução industrial, engendrada
pela proteção da propriedade privada e dos contratos, atraiu a atenção de
estudiosos que queriam explicar o funcionamento da economia florescente.
Jean Buridan e Nicolas de Oresme escreveram
trabalhos no século XIV explicando a atividade econômica tendo como moldura a
sociedade como uma ordem natural surgida do funcionamento das leis que Deus
imprimiu à natureza das coisas. A lei
natural também formou a base para leis feitas pelo homem na alta Idade Média. Como Berman escreveu:
Na era formativa da tradição jurídica ocidental,
a teoria da lei natural predominou. Era
consenso geral que o direito humano, em última análise, derivava, e deveria ser
aprovado, pela razão e pela consciência. De acordo não apenas com a filosofia do
direito da época, mas também com o próprio direito positivo, qualquer lei
positiva, fosse ela editada ou baseada em costumes, deveria estar em
conformidade com a lei natural, caso contrário ela careceria de validade como
lei e poderia ser ignorada.
Esta teoria
era baseada tanto na teologia cristã quanto na filosofia aristotélica. Mas ela também estava baseada na história da
luta entre autoridades eclesiásticas e seculares, e na política do pluralismo.[10]
Quando
irrompiam guerras no contexto desta ideologia cristã pró-liberdade, elas
meramente desaceleravam, em vez de interromperem por completo, o ímpeto da
liberdade. A Guerra dos Cem Anos veio
para consolidar o poder estatal e fomentar a ideologia pró-estado. As forças reacionárias eram fortes o bastante
para inaugurar a era do absolutismo monárquico. A ascensão do estado-nação começou a ameaçar a
liberdade no Ocidente como até então nada havia ameaçado antes, desde o poder
estatal de Roma.
Assim como autores mercantilistas vocalizavam a ideologia pró-estado nos séculos XVI e XVII, os pós-escolásticos revidavam com suas visões pró-liberdade.
A
Escola de Salamanca desenvolveu uma visão sobre política e economia fundada na
lei natural. O fundador da escola,
Francisco de Vitória, argumentou que todos os indivíduos merecem a mesma
proteção legal para suas pessoas e para suas propriedades. Como Tom Woods
escreveu:
Vitória afirmou que o homem não podia ser
privado da sua capacidade civil por estar em pecado mortal, e que o direito de
possuir coisas para uso próprio (isto é, o direito à propriedade privada)
pertencia a todos os homens, mesmo que fossem pagãos ou tivessem costumes
considerados bárbaros. Os índios do Novo
Mundo eram, portanto, iguais aos espanhóis em matéria de direitos naturais. Possuíam as suas terras de acordo com os
mesmos princípios pelos quais os espanhóis possuíam as deles.[11]
A
visão da lei natural dos escolásticos foi elevada por Hugo Grócio em sua obra
sobre o direito internacional no século XVII, e a ideologia pró-liberdade foi
posteriormente refinada nas obras sobre direitos naturais de Locke e Jefferson
nos séculos XVII e XVIII.
A
América provou ser terreno fértil para a ressurreição da liberdade. O poder estatal não foi capaz de reprimir as
tendências de pessoas possuidoras de uma ideologia pró-liberdade de viverem
respeitando a propriedade privada e os contratos, no território aberto e nos
governos descentralizados da América do Norte colonial. Estados-nações tiveram de se contentar com
limitações ao seu poder diante das possibilidades que suas vítimas tinham de escapar
de suas depredações.
Durante o seu
apogeu no século XIX, o liberalismo clássico espalhou os frutos da liberdade,
da paz, da prosperidade e da prosperidade humana. Mas a ideologia pró-liberdade refinada pelos
liberais clássicos não estava livre de impurezas. Seu defeito fatal estava patente na
centralização do poder estatal através da constituição americana, que impunha
um formato de estado-nação sobre o sistema de governos descentralizados dos 13
estados. Como Hans-Hermann Hoppe escreveu,
A filosofia política liberal clássica — como
personificada por Locke e mais proeminentemente demonstrada na Declaração de
Independência de Jefferson — era antes e acima de tudo uma doutrina moral.
Inspirada na filosofia dos estóicos e dos pós-escolásticos, ela estava centrada ao redor das noções de soberania do
indivíduo, apropriação original de recursos naturais (sem dono), na propriedade
e no contrato como sendo um direito humano universal implícito na natureza do
homem enquanto animal racional. No
ambiente de governantes monárquicos (reis e príncipes), esta ênfase na
universalidade dos direitos humanos colocou a filosofia liberal em radical oposição
a todo e qualquer governo estabelecido.
Para
um liberal, todo homem, rei ou aldeão estava sujeito aos mesmos princípios
universais e eternos de justiça. E um
governo, ou ele conseguia justificar sua existência como sendo um contrato
entre proprietários privados, ou ele não poderia ser justificado de forma
alguma.[12]
Tragicamente,
da genuína proposição de que uma ordem social liberal requer que seus membros
utilizem violência defensiva para suprimir a agressão contra a pessoa e a
propriedade, liberais clássicos incorretamente concluíram que deveria haver um
provedor monopolístico dessa violência defensiva.
De acordo com a visão de que o estado é
essencial para uma ordem social liberal, os liberais clássicos permitiram que o
poder estatal mantivesse um ponto de apoio que ele mais uma vez utilizaria para
atacar a liberdade.
Esse
momento veio em 1914. Como Rothbard
escreveu,
Mais do que qualquer outro período, a Primeira
Guerra Mundial foi o crítico divisor de águas para o sistema empresarial
americano. A economia transformou-se em um
"coletivismo de guerra", uma economia totalmente planejada e conduzida
amplamente pelos interesses dos grandes negócios e por meio da intervenção do
governo central, o qual serviu como o modelo, o precedente e a inspiração para
o capitalismo corporativo de estado pelo restante do século XX.[13]
Como
um prelúdio para a sua destruição na Grande Guerra, a ideologia pró-estado
havia desferido um ataque frontal à liberdade no século XIX. Hunt Tooley registrou a função das ideologias no
ímpeto à guerra em seu livro The Western Front.[14]
Como Ralph Raico observou[15]
em sua crítica ao livro de Tooley:
Tooley lida habilmente com as correntes
intelectuais e culturais da Europa pré-guerra. Contribuindo para a propensão à violência
havia o anarco-sindicalismo de Georges Sorel e uma forma degenerada de nietzscheanismo; porém, acima de tudo,
havia o darwinismo social — na realidade, somente Darwinismo —, que ensinava
o conflito eterno entre raças e tribos de humanos e de outras espécies.
Mesmo
na América, a ideologia pró-estado havia conseguido degenerar o pensamento
cristão durante a Era Progressista, despindo-o de sua forma pró-liberdade.
Richard Gamble documenta esta degeneração em
seu livro The War for Righteousness.[16]
Como Raico escreveu
em sua crítica ao livro de Gamble,
Ao final do século XIX, protestantes
progressistas, frequentemente influenciados pela Teoria da Evolução, estavam
pregando pela transformação sucessiva da igreja, depois da sociedade americana,
e finalmente do mundo todo. Ao rejeitarem o calvinismo tradicional, eles
rejeitaram também a distinção agostiniana entre a Cidade de Deus e a Cidade do
Homem.
A Cidade do Homem deveria ser transformada na Cidade de Deus, aqui na
Terra, por meio de uma alteração do cristianismo, o qual deveria ser redefinido
como uma doutrina socialmente ativista.[17]
A Grande Guerra liberou as forças coletivistas do socialismo e do fascismo ao
longo de todo o mundo ocidental. Como Raico escreveu,
A Primeira Guerra Mundial foi o ponto de
inflexão do século XX. Se ela não
houvesse ocorrido, os Hohenzollern da Prússia muito provavelmente permaneceriam
como chefes da Alemanha, com seu arsenal de reis e nobres subordinados
encarregados dos estados germânicos menores.
Com qualquer vitória que Hitler pudesse ter
obtido nas eleições do Reichstag, poderia ele ter erigido sua ditadura
totalitária e homicida em meio a esta poderosa superestrutura aristocrática? Altamente improvável.
Na Rússia, os poucos milhares de comunistas de
Lênin confrontaram o imenso exército imperial russo, o maior do mundo. Para que Lênin tivesse qualquer chance de
sucesso, aquele exército deveria ser antes pulverizado, que foi exatamente o
que os alemães fizeram. Portanto, um
século XX sem nazistas ou comunistas. Imagine
isso.
Foi o ponto de inflexão na
história da nação americana, que sob a liderança de Woodrow Wilson
transformou-se em algo radicalmente diferente do que havia sido antes.[18]
Em
nenhum outro lugar a transformação radical foi mais evidente do que no direito. A tapeçaria legal do Ocidente, tecida
por mais de um milênio, foi esgarçada e fendida na Primeira Grande Guerra. Harold Berman escreveu,
Quando os diferentes regimes legais de todas
essas comunidades — locais, regionais, nacionais, étnicas, profissionais,
políticas, intelectuais, espirituais, e outras — são engolidos pela legislação
do estado-nação ... [isso] é, de fato, o maior perigo representado pelo
nacionalismo contemporâneo.
As nações da
Europa, que se originaram de sua interação umas com as outras no contexto da
cristandade ocidental, tornaram-se cada vez mais separadas entre si no século
XIX. Com a Primeira Guerra Mundial, elas
se separaram violentamente e destruíram os laços comuns que as haviam mantido
previamente ligadas, ainda que frouxamente.
E, no final do século XX, ainda sofremos com a
historiografia nacionalista originada no século XIX, que apoiou a desintegração
do patrimônio legal comum ao Ocidente.[19]
Mesmo
na terra onde a liberdade ardia com maior brilho, a guerra provou ser uma força
potente para o retrocesso. Como Rothbard escreveu:
Historiadores têm geralmente tratado o
planejamento econômico da Primeira Guerra Mundial como um episódio isolado,
ditado pelas necessidades da época, e tendo pequena significância posterior. Mas, ao contrário, o coletivismo de guerra
serviu como uma inspiração e um modelo para um temível conjunto de forças
destinadas a moldar a história da América no século XX.[20]
A Primeira Guerra Mundial destruiu a economia mundial que havia sido construída
durante o século XIX sob o liberalismo clássico. Como Maurice Obstfeld e Alan Taylor
demonstraram em seu livro Global Capital Markets: Integration, Crisis,
and Growth, o nível de integração da economia mundial subiu de
moderadamente baixo em 1860 para moderadamente alto em 1914.
A Grande Guerra desintegrou a economia mundial,
retornando-a a um nível substantivamente abaixo daquele vigente em 1860. E, ao final da Segunda Guerra Mundial (que foi
uma continuação da Primeira Guerra Mundial), o nível de integração era metade
do nível de 1860. O nível de integração
da economia mundial só foi superar aquele de 1914 no século XXI.[21]
Os governos levaram 70 anos para
realizar aquilo que a liberdade fez em questão de dias.
A
Grande Guerra destruiu o padrão-ouro clássico e introduziu uma era de moedas
fiduciárias de papel. Hiperinflações e
depressões foram o resultado. Como Steve
Hanke e Nicholas Krus documentaram, dos 56 episódios de hiperinflação da
história apenas um ocorreu antes de 1920.[22]
E como George Selgin, William Lapstras e
Lawrence White demonstraram, os cem anos de política monetária do Federal
Reserve resultaram em mais instabilidade econômica e financeira do que o menos insolvente
sistema bancário americano existente antes de o Fed ser criado.[23]
A
Grande Guerra aniquilou o mundo liberal clássico e iniciou um século de
ascensão do estado coletivista. A
civilização ocidental, tendo dado à luz a liberdade e a alimentado, sacrificou sua
cria antes que ela tivesse tido a oportunidade de atingir a maturidade ao redor do
mundo.
Em vez de liberdade, a hegemonia
americana espalhou o corporativismo pelos quatro cantos da Terra.
Como
nós, nossos predecessores trabalharam para divulgar a ideologia pró-liberdade
durante dias negros, quando a liberdade havia sido eclipsada pelo poder
estatal. Sua estratégia envolvia a
criação de instituições independentes.
Christopher
Dawson, em seu livro The Crisis of Western Education,
demonstrou que os movimentos intelectuais da Renascença e do Iluminismo se
desenvolveram ao largo do estado. Dawson
escreveu:
Na Inglaterra e nos Estados Unidos, a
tradicional relação entre a igreja, a escola e o sistema medieval de independência
corporativa conseguiu sobreviver, não obstante os ataques de reformadores
políticos e educacionais.
Os abusos do
antigo sistema e a negligência da educação primária certamente não eram menos
flagrantes na Inglaterra do que no continente europeu.
Mas a força do princípio do livre-arbítrio e a
ausência de um estado autoritário fizeram com que o movimento reformista na
Inglaterra seguisse um caminho independente e criasse suas próprias
organizações e instituições.[24]
Para
restaurar a liberdade em nossa era, devemos erigir empreendimentos genuinamente
privados e instituições educacionais independentes. Por meio de organizações como o Instituto Mises, podemos fazer a nossa parte no século XXI para reverter essa maré do
estatismo coletivista que se ergueu no século XX, exatamente como nossos
predecessores fizeram ao reverter o absolutismo no século XVIII. Não devemos repetir seus erros.
Desta vez, nossa ideologia pró-liberdade deve
abraçar suas implicações lógicas e rejeitar completamente a ideia de estado. Somente assim pode todo o potencial da vida, da
liberdade e da propriedade ser concretizado na prosperidade de toda a raça
humana.
[1]
I Samuel 8.
[2]
I Reis e II Reis.
[3]
Lord Acton, Essays in the History of Liberty, Vol. 1, (Indianapolis: Liberty
Classics, 1985), pp. 12-13.
[4]
Acton, Essays in the History of Liberty,
pp. 24-25.
[5]
Acton, Essays in the History of Liberty,
p. 18.
[6]
Acton, Essays in the History of Liberty,
pp. 30-33.
[7]
Henri Pirenne, Medieval Cities (Princeton, N.J.:
Princeton University Press, 1925); idem, Economic
and Social History of Medieval Europe (London: Routledge, 1936); and Acton,
Essays in the History of Liberty, pp.
35-36.
[8]
Harold Berman, Law and Revolution (Cambridge, Mass.:
Harvard University Press, 1983).
[9]
Berman, Law and Revolution, p. 10.
[10]
Berman, Law and Revolution, p. 12.
[11]
Tom
Woods, Como a Igreja Católica Construiu a
Civilização Ocidental (São Paulo: Quadrante, 2010),
[12]
Hans Hoppe, Democracy, the God that Failed (New Brunswick, N.J.:
Transaction Publishers, 2001), p. 225.
[13]
Murray Rothbar, War Collectivism: Power, Business, and the Intellectual Class in World
War I (Auburn, Ala.: Mises Institute, 2012), p. 7.
[14]
Hunt Tooley, The Western Front: Battle
Ground and Home Front in the First World War (New York: Palgrave McMillan, 2003).
[15]
Ralph Raico, Great Wars and Great Leaders: A Libertarian
Rebuttal (Auburn, Ala.: Mises Institute, 2010), p. 230.
[16]
Richard Gamble, The War for Righteousness: Progressive
Christianity, the Great War, and the Rise of the Messianic Nation (Wilmington, Del.:
ISI Press, 2003).
[17]
Raico, Great Wars and Great Leaders, p. 193. Itálicos no original.
[18]
Raico, Great Wars and Great Leaders, pp. 1-2.
[19]
Berman, Law and Revolution, p. 17.
[20]
Rothbard, War Collectivism, pp. 34.
[21]
Maurice Obstfeld and Alan
Taylor, Global Capital Markets:
Integration, Crisis, and Growth (Cambridge: Cambridge University Press, 2004).
[22]
Steve Hanke and Nicholas Krus,
"World Hyperinflations," Cato Working
Paper (Washington:
Cato Institute, 2012). A exceção foi na França, durante a Revolução, em 1795.
[23]
George Selgin, William
Lastrapes, and Lawrence
White, "Has the Fed Been a Failure?" Cato
Working Papers (Washington:
Cato Institute, 2010).
[24]
Christopher Dawson, The Crisis of Western Education
(Steubenville, Oh.: Franciscan Press, 1989), p. 67.