segunda-feira, 16 set 2013
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"O liberalismo não
tem flores nem cores, não tem música nem ídolos, não tem símbolos e nem
slogans. Ele tem a substância e os argumentos. Ambos devem levá-lo ao triunfo."
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Qualquer
filosofia política deve concentrar-se em uma questão essencial: sob quais
condições a iniciação de violência deve ser considerada legítima? Uma
filosofia pode endossar tal violência em nome dos interesses de um grupo racial
majoritário, como fizeram os Nacional-Socialistas da Alemanha. Outra pode
endossá-la em nome de uma classe econômica em particular, como fizeram os
Bolcheviques da Rússia Soviética. Uma outra pode preferir evitar uma posição
doutrinária de uma forma ou de outra, deixando para o bom juízo daqueles que
administram o estado decidir quando o bem comum demanda a iniciação de
violência e quando não. Essa é a posição das sociais-democracias.
Um
liberal clássico determina um limiar muito alto para a iniciação da
violência. Além da tributação mínima necessária para manter os serviços
jurídicos e de defesa — e vários liberais anti-estado recusam até mesmo isso —,
ele nega ao estado o poder de iniciar violência, procurando exclusivamente
soluções pacíficas para os problemas sociais. Ele se opõe à violência
praticada em nome da redistribuição de riqueza, do enriquecimento de grupos de
interesse e empresariais influentes e da tentativa de aprimorar a condição
moral do homem.
Pessoas
civilizadas, diz o liberal clássico, interagem entre si não de acordo com a lei
da selva, mas por meio da razão e da discussão. O homem não pode se
tornar bom em decorrência do guarda da prisão e do carrasco; caso estes sejam
necessários para torná-lo bom, então sua condição moral já está muito além de
qualquer possibilidade de salvamento. Como Ludwig von Mises afirma em seu
livro Liberalismo,
o homem moderno "deve se libertar do hábito de recorrer ao estado sempre que
algo não lhe agrada".
Houve
uma espécie de renascimento dos estudos misesianos no rastro da crise
financeira que assolou o mundo em 2007 e 2008, dado que foram os seguidores de
Mises que apresentaram as mais convincentes explicações sobre os fenômenos
econômicos que deixaram a maioria dos "especialistas"
gaguejando. A importância das contribuições econômicas de Mises para as discussões atuais tende a nos fazer
negligenciar suas contribuições como teórico
social e filósofo político. Seu livro Liberalismo ajuda
a retificar esse descuido.
O
liberalismo que Mises descreve nesse livro não é, obviamente, o
"liberalismo progressista" do qual se fala hoje em dia, mas sim o liberalismo
clássico, que é como o termo continua a ser conhecido na Europa. O
liberalismo clássico defende a liberdade individual, a propriedade privada, o
livre comércio e a paz — os princípios fundamentais dos quais todo o resto do
programa liberal pode ser deduzido.
Não
seria nenhum insulto a Mises descrever sua defesa do liberalismo como
parcimoniosa, no sentido de que, seguindo a lógica da navalha de Occam, ele
não emprega em sua defesa nenhum conceito que não seja estritamente necessário
ao seu argumento. Sendo assim, Mises não faz nenhuma referência aos
direitos naturais, por exemplo, um conceito que possui um papel central em
tantas outras exposições do liberalismo. Ele concentra-se principalmente na
necessidade de uma cooperação social de larga escala. Essa cooperação
social — por meio da qual complexas cadeias de produção geram um aprimoramento
do padrão de vida de todos — pode ser criada somente por um sistema econômico
baseado na propriedade privada.
A
propriedade privada dos meios de produção, em conjunto com a progressiva
ampliação da divisão do trabalho, ajudou a libertar a humanidade das horríveis
aflições que antigamente devastavam a raça humana: doenças, pobreza opressiva,
taxas pavorosas de mortalidade infantil, miséria e imundícies generalizadas, e
uma radical insegurança econômica, com pessoas frequentemente vivendo a apenas
uma colheita ruim da completa inanição.
Antes
que a economia de mercado surgisse e possibilitasse a criação de riqueza gerada
pela divisão do trabalho e pela acumulação de capital, era tido como certo que
essas características grotescas das condições de vida do homem eram imposições
irreversíveis de uma natureza fria e impiedosa, sem possibilidades de ser
substancialmente aliviada — muito menos subjugada inteiramente — pelo esforço
humano.
Os
estudantes foram ensinados, por várias gerações, a pensar na propriedade como
sendo uma palavra suja, a exata materialização da avareza. Mises não
tolera tal concepção.
Se há algo que a história pode provar em relação a essa
questão, é que em nenhum lugar e em nenhuma época já houve algum povo que, sem
a propriedade privada, tenha melhorado seu padrão de vida para além da mais
opressiva penúria e selvageria, uma situação dificilmente distinguível da
existência animal.
A
cooperação social, Mises demonstrou, é impossível na ausência de propriedade
privada, e quaisquer tentativas de restringir o direito de propriedade irão
solapar a coluna central da civilização moderna.
De
fato, Mises ancora firmemente o liberalismo na propriedade privada. Ele
estava perfeitamente ciente de que defender a propriedade significa atrair a
acusação de que o liberalismo é meramente uma apologia velada ao capital.
"Os inimigos do liberalismo o rotularam como a ideologia que defende os
interesses especiais dos capitalistas", observou Mises. "Isso é
típico da mentalidade deles. Eles simplesmente não conseguem entender uma
ideologia política. Para eles, qualquer ideologia que não seja a deles
representa a defesa de certos privilégios especiais em detrimento do bem-estar
geral."
Mises
mostra em seu livro, e em todo o restante de sua obra, que o sistema de
propriedade privada dos meios de produção resulta em benefícios não apenas para
os donos diretos do capital, mas também para toda a sociedade.
Na
realidade, não há nenhum motivo em particular para que as pessoas em posse de
grandes riquezas sejam a favor do sistema liberal de livre concorrência, sistema
este no qual um esforço contínuo deve ser feito para se estar sempre atendendo
aos desejos dos consumidores — caso contrário, essa riqueza será reduzida
gradualmente. Aqueles que possuem grandes riquezas, especialmente os que
herdaram essa riqueza, podem com efeito preferir um sistema intervencionista, o
qual tem maior propensão a manter congelados os padrões de riqueza
existentes. Não é de se estranhar, por exemplo, que as revistas de
negócios dos EUA, durante a Era Progressiva (1890-1920), estivessem repletas de
apelos pela substituição do laissez-faire,
um sistema em que os lucros não estão protegidos, por um arranjo de carteis
sancionados pelo governo e por vários outros esquemas de conluio. E não é de se estranhar que, no mundo atual,
os grandes empresários possuam laços umbilicais com o governo, pois sabem que
dependem do governo — de suas regulamentações e de seu protecionismo — para
manter sua riqueza livre de qualquer perigo de concorrência.
Naturalmente,
dada a ênfase de Mises na importância da divisão do trabalho para a manutenção
e no progresso da civilização, ele é particularmente franco em relação aos
males das guerras, as quais, além de seus danos físicos e humanos, geram um
progressivo empobrecimento da humanidade em decorrência de seu radical
rompimento com a harmoniosa estrutura de produção que abrange todo o
globo. Mises, que raramente mede as palavras, mas cuja prosa é geralmente
elegante e comedida, fala com indignação e revolta quando o assunto passa a ser
o imperialismo europeu, uma causa da qual ele não admite qualquer argumento a
favor.
Assim
como seu pupilo, Murray Rothbard, iria mais tarde identificar guerra e paz como
a questão fundamental de todo o programa liberal, Mises da mesma forma insiste
em dizer que essas questões não podem ser negligenciadas — como elas
frequentemente são por liberais clássicos atuais — em prol de questões
políticas mais inócuas e menos delicadas.
A
principal ferramenta do liberalismo, afirmou Mises, é a razão. Isso não
significa que Mises achava que todo o programa liberal deveria ser realizado
por meio de tratados acadêmicos densos e elaborados. Ele admirava
consideravelmente aqueles que transmitiam essas ideias nos palcos de teatro,
nas telas de cinema e no mundo dos livros de ficção. Porém, é
extremamente importante que a defesa do liberalismo permaneça arraigada em
argumentos racionais, uma fundação muito mais sólida do que o instável
irracionalismo da emoção e da histeria, os quais outras ideologias utilizam
para agitar as massas. "O liberalismo não tem nada a ver com tudo
isso", insistia Mises. "Não tem flores nem cores, não tem
música nem ídolos, não tem símbolos e nem slogans. Ele tem a substância e
os argumentos. Ambos devem levá-lo ao triunfo."
Atualmente,
estamos vivendo em um momento perigoso da história. Com várias crises
fiscais ocorrendo ao redor do mundo — e as consequentes escolhas difíceis que
elas impõem — e ameaçando uma onda de agitação civil por toda a Europa, as
promessas impossíveis feitas por estados assistencialistas, hoje completamente
quebrados, estão se tornando crescentemente óbvias. Como argumentou
Mises, não há nenhum substituto para a economia livre que seja estável no longo
prazo. O intervencionismo, mesmo em prol de uma causa tão ostensivamente
positiva quanto o bem-estar social, cria mais problemas do que soluções,
levando assim a ainda mais intervencionismos, até que o sistema esteja
inteiramente socializado — isso se o colapso não ocorrer antes.

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A
posição de Mises é contrária à daqueles que afirmavam que o mercado era de fato
um lugar de rivalidade e discórdia, em que os ganhos de uns implicavam perdas
para outros. Podemos pensar, por exemplo, em David Ricardo e em
sua alegação de que salários e lucros se movem necessariamente em direções
opostas. Thomas Malthus alertou para uma catástrofe populacional, a qual
implicava um conflito entre alguns indivíduos (aqueles já nascidos) e outros
(no caso, o suposto excesso que viria depois). E depois, é claro, veio
toda a tradição mercantilista, a qual via o comércio e as relações de troca
como um tipo de combate de baixa intensidade que produzia um grupo definido de
vencedores e de perdedores. Karl Marx apresentou uma clássica declaração
de que há um inerente antagonismo de classes no mercado em seu
O
Manifesto Comunista. Ainda mais velho que todas essas figuras era
Michel de Montaigne (1533-1592), que em seu ensaio "O Fardo de um Homem é
o Benefício de Outro" argumentou que "todo e qualquer lucro só pode
ser feito em detrimento de outro". Mises mais tarde veio a rotular
essa ideia de "a falácia de Montaigne".
Para
o bem da própria civilização, Mises nos exortou a descartar os mitos
mercantilistas que opõem a prosperidade de um povo à prosperidade de outro; os
mitos socialistas que descrevem as várias classes sociais como inimigas
mortais; e os mitos intervencionistas que dizem que a prosperidade só pode ser
alcançada por meio da pilhagem mútua dos cidadãos. No lugar dessas ideias
juvenis e destrutivas, Mises forneceu um convincente argumento em prol do
liberalismo clássico, o qual vê "harmonias econômicas" — pegando
emprestada a formulação de Frédéric Bastiat — onde outros veem antagonismos e
discórdias.
O
liberalismo clássico, tão habilmente defendido por Mises, não busca dar a
ninguém nenhuma vantagem obtida coercivamente, e exatamente por essa razão ele é
o único arranjo que gera os mais satisfatórios resultados de longo prazo.