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Filosofia

A criação do estado

10/07/2025

A criação do estado

Este artigo foi extraído de palestra na Libertarian Scholars Conference, em 20 de março de 2025, em Auburn, Alabama.

A origem do estado

O que precisa ser perguntado é: Como as coisas aconteceram historicamente? Qual é a origem histórica do estado?

Uma visão realista do estado deve partir da premissa de sua historicidade. O estado não existiu desde sempre. Ele possui um lugar específico de origem e uma trajetória própria: seu nascimento ocorreu na Europa Continental, e sua origem coincide aproximadamente com os primórdios da era moderna, entre os séculos XV e XVI. Três grandes eventos marcam a entrada nesse período: a queda de Constantinopla, em 29 de maio de 1453, que assinalou o fim do Império Romano do Oriente; o descobrimento da América, em 1492; e a Reforma Protestante, desencadeada por Martinho Lutero em 31 de outubro de 1517. A modernidade representou uma ruptura em relação à Idade Média e, em especial, àquela estrutura de poder político que havia caracterizado a história europeia por quase um milênio, uma estrutura na qual o poder não era centralizado, mas disperso entre múltiplos centros de autoridade.

O estado é, portanto, um fenômeno moderno. A Idade Média e a Antiguidade não conheceram formas estatais, pois suas organizações políticas não eram sequer remotamente comparáveis às da era moderna. É, portanto, necessário reconhecer, como escreveu Gianfranco Miglio (1918–2001) em Le regolarità della politica (As regularidades da política, 1988), que: “O tipo de ordem política em vigor hoje, longe de ser o único e inevitável produto de uma razão universal, é apenas o resultado, no fundo bastante contingente, de uma série de conjunturas históricas”.

Certamente não há dúvidas quanto à origem tipicamente europeia das instituições estatais. O modelo de organização política chamado estado espalhou-se pelo mundo, mas nasceu na Europa. A teoria que situa o nascimento do estado exclusivamente na modernidade é hoje amplamente aceita, mas só se desenvolveu no século XX, graças a um grupo de estudiosos alemães: Max Weber (1864–1920), Carl Schmitt (1888–1985), Otto Brunner (1898–1982) e Otto Hintze (1861–1940). Até o início do século passado, de fato, o termo “estado” era uma espécie de superconceito usado para designar qualquer tipo de comunidade política organizada, e é preciso dizer que esse uso da palavra ainda não desapareceu por completo.

O nascimento do estado, em todos os lugares, foi marcado pela tentativa de pacificação territorial. Ao observarmos os problemas internos dos territórios, deparamo-nos com a questão da ordem. Aos problemas antigos de concentrar o poder judiciário nas mãos do rei, para impedir feudos, e de adquirir ou eliminar principados e senhorios feudais, visando a consolidação territorial do estado, acrescentou-se um problema novo e moderno: as guerras de religião, que, na prática, eram guerras civis. Na França, houve a luta entre católicos e huguenotes (1559–1598); no Império Germânico, o conflito entre católicos e protestantes durante a Guerra dos Trinta Anos (1618–1648); e na Inglaterra, a guerra civil (1642–1651) entre anglicanos, presbiterianos, congregacionalistas e independentes. Somavam-se ainda as pressões do ambiente internacional: as guerras pela dominação sobre a Itália (1494–1559); novamente a Guerra dos Trinta Anos (1618–1648); a Guerra de Sucessão Espanhola (1701–1714); e a Guerra dos Sete Anos (1756–1763).

Para estabelecer a paz e proteger a população, o estado precisava afirmar-se como o único detentor do poder em seu território e não podia tolerar concorrentes. Para ter sucesso, precisava proibir o uso privado da força e apresentar-se, de maneira crível, como o único depositário do poder de recorrer à violência. Max Weber, cuja definição de estado é uma das mais conhecidas na história das ciências sociais, foi um dos primeiros a destacar esse aspecto da condição estatal moderna. Weber demonstra plena consciência do caráter genuinamente moderno do estado ao descrever seu surgimento em Economia e Sociedade (1921):

“A difusão da pacificação e a expansão do mercado constituem, assim, um desenvolvimento que é acompanhado, de modo paralelo, por (1) aquela monopolização da violência legítima pela organização política, que encontra seu ponto culminante no conceito moderno de estado como a fonte última de toda legitimidade do uso da força física; e (2) aquela racionalização das regras de sua aplicação, que culmina no conceito de ordem jurídica legítima”.

Mas o estado precisa transformar sua proteção em uma oferta que não se pode recusar. E, para isso, deve primeiro desarmar a sociedade. A oferta unilateral torna-se obrigatória se a população estiver privada de armas, isto é, se for incapaz de se defender, seja contra indivíduos particulares, seja, evidentemente, contra os próprios agentes do estado. Otto Brunner, em seu estudo clássico Land und Herrschaft (Terra e Domínio, 1939), demonstrou que a racionalização jurídica e política da modernidade implicou o desarmamento dos cidadãos, seguido pela criação de uma casta de servidores armados do estado. Todas as funções clássicas do estado, começando pelo monopólio da legislação, nascem da imposição desse desarmamento sobre toda a sociedade.

O verdadeiro berço do estado moderno foi a França do século XVI. Foi precisamente na monarquia absolutista francesa, que surgiu das guerras religiosas entre católicos e huguenotes, que se tornou possível observar aquela burocratização e centralização do exercício do poder que constitui uma característica fundamental do estado. O início do estado pode ser situado na segunda metade do século XVI. O estado precisava, acima de tudo, zelar por sua própria sobrevivência em um mundo instável, onde estava perpetuamente exposto ao risco; e sobreviver significava ampliar e consolidar sua dominação internamente.

O príncipe é a figura crucial do estado moderno. Ele consegue centralizar o poder com a ajuda de seus funcionários e por meio de um novo sistema administrativo: a máquina do estado. Como apontou Federico Chabod, essa máquina se cria através do estabelecimento de uma série de funções que adquirem um caráter de estabilidade no território. Primeiro, exércitos permanentes, que existem mesmo em tempos de paz e são formados por soldados mercenários dependentes unicamente do rei; depois, uma diplomacia estável e uma burocracia estatal em constante crescimento.

O estado, porém, não é separável de sua construção ideológica. Toda a política moderna foi reformulada com o vocabulário do estado. Por um lado, o estado aparece como um conceito historicamente determinado, que marca o período que vai da era das monarquias absolutas até as democracias atuais. Por outro lado, o estado se apresenta como a maior e única forma possível de ordem política: torna-se inconcebível pensar o político fora da moldura do estado e de seus paradigmas. O estado se representa como a única e inequívoca resposta ao problema da ordem política. Essa construção, que nos acompanha há cinco séculos, exerce também uma tirania conceitual, pois tenta nos impedir de conceber a política de outra forma, fora do enquadramento estatal.

 

A razão de estado como ciência política

O núcleo de todas as novidades introduzidas pelo poder organizado em forma estatal reside no princípio da soberania, única, absoluta, indivisível, certa e perpétua, conforme definida por Jean Bodin (1529/30–1596) em sua obra Les six livres de la république (Os seis livros da república, 1576). O instrumento utilizado pelo rei é a lei, à qual somente ele não está sujeito. Aqui se revela a modernidade de Bodin: o poder soberano é o poder de decidir por todos sem restrições. A autoridade soberana não é limitada pela lei nem pelo consentimento. O termo “estado”, aproximadamente no sentido que entendemos hoje, aparece nos escritos de Nicolau Maquiavel (1469–1527), em particular em O Príncipe (1513): “Todos os estados, todos os domínios sob cuja autoridade os homens viveram no passado e vivem hoje foram e são repúblicas ou principados”. A essa altura, a Idade Média estava definitivamente superada.

Todos os escritores políticos da metade do século XVI tiveram de se dar conta das novas situações institucionais e das condições em que a vida política se desenrolava na Península Itálica e nos estados católicos. Havia regimes monárquicos de origem antiga e principados consolidados, de modo que, em geral, esses autores tomavam como dado o formato que os estados haviam assumido na segunda metade do século XVI, limitando-se a discutir qual seria a melhor forma de governo. O fato de a Reforma, em sua vertente calvinista, ter optado por formas republicanas de governo, como na Suíça e nas Províncias Unidas dos Países Baixos, gerou, no clima da Contra-Reforma, um preconceito contra a república e uma postura favorável ao governo principesco, visto como regime mais adequado à preservação da unidade religiosa e ao respeito pelas tradições.

Esses escritores atuavam, portanto, a serviço de seus príncipes e de seus estados, na maior parte das vezes com propósitos encomiásticos, ajudando a consagrar o modelo do principado absoluto e a consolidar o papel profissional dos agentes e conselheiros do príncipe, os futuros burocratas. Quando o papado ocupou o centro da cena política, após a queda do Império Romano do Oriente em 1453, a política católica da Contra-Reforma também se viu diante da necessidade de elaborar uma teoria do estado e uma ética política coerente com o programa que emergiu do Concílio de Trento (1545–1563), cujo objetivo era recuperar a consciência, controlar a produção intelectual, educar os governantes e orientar a moral prática das massas. Essa nova era foi caracterizada pela afirmação dos estados absolutos.

As teorias políticas que haviam começado a responder à necessidade de realismo político, sobretudo o pensamento de Maquiavel, passaram a separar a esfera política da esfera religiosa e eclesiástica. De fato, a afirmação do principado e do estado moderno implicava que as sociedades católicas da Contra-Reforma tivessem de enfrentar a autonomia objetiva e a falta de escrúpulos da política. Havia escritores que demonstravam esse realismo político ou, se preferirmos, aquele maquiavelismo prático que estava constantemente presente no outro lado da Contra-Reforma. Os homens de ação ofereciam conselhos pelos quais deixavam claro que acreditavam na verdade da máxima de Francesco Guicciardini, segundo a qual “o poder político não pode ser exercido de acordo com os ditames da boa consciência”, e também na de Cosme, o Velho, que dizia que “o poder dos estados [não se] mantém por meio de Pai-Nossos”.

Entre os intelectuais católicos que foram capazes de satisfazer a necessidade de realismo na gestão dos estados, encontra-se Giovanni Botero (1544–1617). Forçado a abandonar a Companhia de Jesus em 1580 por causa de desacordos com seus superiores, Botero entrou a serviço do cardeal de Milão, Carlo Borromeo. Sua obra principal, Della ragion di stato (A razão de estado), foi publicada em Veneza em 1589. Essa obra não se referia a um modelo principesco estritamente italiano, mas sim à forma estatal dominante na Europa ao final do século XVI: o estado monárquico absolutista. Em seu tratado, Botero mencionou a literatura política do século XVI que havia descrito e discutido, de maneira realista, a política efetiva dos estados no plano da pura arte política, dos interesses e da manutenção do poder, ou seja, da chamada raison d’état (razão de estado). Botero define a razão de estado como “o conhecimento dos meios adequados para fundar, conservar e expandir o domínio”. Seu propósito era resgatar a razão de estado de sua condição de prática política imoral e sem escrúpulos, elevando-a à esfera objetiva, conferindo-lhe o caráter neutro de ciência política.

A razão de estado está ligada ao nascimento do estado moderno. Nesse estágio, o objeto da razão de estado será a formação do estado; uma vez formado, seu objeto passa a ser a sua preservação. A estabilidade dos estados depende da obediência dos súditos, e a obediência é alcançada por meio das virtudes do príncipe, isto é, por sua prudência política e valor. A prudência deve ser aplicada à condução da guerra, ao controle da ordem interna e da segurança externa, assim como à regulação das economias monetária, agrícola e comercial.

Botero expandiu a raison d’état para o terreno econômico, abrindo-se, assim, a uma realidade mais avançada do que a concebida por Maquiavel.

O propósito de Botero, de levar em conta a realidade política e de não cair na idealização vazia do príncipe justo, e, por isso, amado, pode ser percebido em toda a obra Della ragion di stato, na qual prevalece uma mentalidade prática e se considera o interesse do estado. A doutrina da razão de estado afirma que a segurança do estado é uma exigência de tal importância que, para garanti-la, os governantes se veem obrigados a violar normas jurídicas, morais, políticas e econômicas que considerariam imperativas enquanto a segurança do estado não estivesse ameaçada. A razão de estado é a necessidade de segurança estatal que impõe aos governantes determinadas condutas. Os pensadores do século XVI terminaram por se convencer de que a política poderia ser reduzida a esse conjunto de métodos, meios e decisões postos em prática pelos governos, independentemente de leis e valores morais.

Nos estados do século XVI, a regra que permitia exceções à lei e à moral em situações de emergência parece ter se transformado na prática ordinária dos governos. Na França, justamente no contexto da afirmação do poder central do estado, com Henrique IV e depois com o Cardeal Richelieu, a literatura política se orientou claramente em direção ao realismo político. Posteriormente, Cardin Le Bret (1558–1655) defendeu, em De la souveraineté du roi (Sobre a soberania do Rei, 1632), que a utilidade pública, entendida como o interesse do estado, deveria prevalecer sobre todas as demais considerações.

A Europa absolutista do século XVII estava prestes a deixar de lado o problema ético sem resolvê-lo. A razão de estado italiana e maquiavélica, que os escritores da Contra-Reforma haviam tentado domesticar e exorcizar, foi evocada no século XVII por Gabriel Naudé (1600–1653) em uma publicação clandestina intitulada Considérations politiques sur les coups d’état (Considerações políticas sobre os golpes de estado, 1632). Era uma obra escrita na Roma Barberini, palco das manobras dos embaixadores de todos os estados católicos: um texto de franqueza provocadora ao enumerar os crimes cometidos pelos governos em nome do interesse do estado. Naudé nem sequer tentou julgar esses crimes do ponto de vista moral ou religioso: a eficácia da ação política era o único critério para julgar a política.

Assim, ao longo do tempo, consolidou-se uma dupla moralidade para julgar as mesmas ações quando praticadas pelo estado e quando cometidas por cidadãos comuns. Esse duplo padrão, condenado de forma categórica por Murray Rothbard, faz com que as pessoas passassem a considerar atos que seriam vistos como crimes se realizados por indivíduos privados como legítimos atos praticados pelo estado e por seus agentes.

O estado, nascido na aurora da era moderna com o propósito de pacificação e de proteção das pessoas, tornou-se, na realidade, como escreve Rothbard em For a New Liberty: “o agressor supremo, eterno e mais bem organizado contra as pessoas e propriedades da massa do público”.

 

Este artigo foi originalmente publicado no Mises Institute.

 

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Nota: as visões expressas no artigo não são necessariamente aquelas do Instituto Mises Brasil.

Sobre o autor

Roberta A. Modugno

É fellow do Mises Institute e professora de História do Pensamento Político na Universidade Roma Tre. Publicou diversos livros, ensaios e artigos na Itália e no exterior.

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