Uma crítica à teoria do valor-trabalho
[Esta seleção foi adaptada de "The Labor Theory of Value: A Critique of Carson’s Studies in Mutualist Political Economy", Journal of Libertarian Studies 20, nº 1 (2006). Consulte o original para referências completas e notas de rodapé.]
Antes de prosseguirmos, devemos esclarecer o que uma teoria econômica do valor deve fazer: sua tarefa é simplesmente explicar o valor de troca de determinados bens e serviços. Ou seja, uma teoria econômica do valor deve explicar por que alguém que vende o bem X pode receber x amoras em troca dele, enquanto alguém que vende o bem Y só encontrará alguém disposto a abrir mão de y amoras em troca de seu bem (onde y<x).
No contexto de uma economia monetária, é claro, uma teoria econômica do valor deve explicar os preços monetários de vários bens e serviços. Nesse sentido, uma teoria econômica do valor é, na verdade, apenas uma teoria da formação de preços. Entretanto, qualquer teoria satisfatória deve ser relevante mesmo em um mundo de trocas puramente diretas e (em princípio) deve ser capaz de explicar as relações de troca prevalecentes entre quaisquer dois tipos de bens, independentemente de um deles ser uma commodity monetária.
A teoria clássica do valor-trabalho (custo)
Os economistas clássicos (por esse termo, refiro-me a autores como Adam Smith, David Ricardo e John Stuart Mill, mas também Frédéric Bastiat) defendiam alguma versão da teoria do valor baseada no custo, em especial a teoria do valor-trabalho. Embora cada autor apresentasse variações nos detalhes e nas ênfases, podemos, de forma geral, entender a teoria do valor baseada no custo como a afirmação de que o “preço natural” (ou de longo prazo) de um bem é igual ao seu custo total[i] de produção. Da mesma forma, a teoria do valor-trabalho sustenta que o preço natural de um bem é proporcional à quantidade total de trabalho necessária para produzi-lo[ii].
À primeira vista, essas duas teorias parecem incompatíveis. No entanto, é possível encontrar diversos trechos em que um mesmo economista clássico parece apoiar ora uma, ora outra abordagem. Como explicar essa aparente contradição? A resposta é que o trabalho era visto como o único “custo” fundamental na produção de um bem; ou seja, os custos de uma mercadoria poderiam, em última análise, ser reduzidos a uma certa quantidade de esforço humano.
Um exemplo numérico ajuda a ilustrar. Suponha que o preço de um corte de cabelo seja R$ 6,00, enquanto o preço de um engraxate seja R$ 7,50. Um defensor da teoria do valor baseada no custo poderia explicar isso da seguinte forma:
“O corte de cabelo exige 30 minutos de trabalho, e a tesoura é depreciada em 1/20 de seu valor total, porque (suponhamos) a tesoura deve ser substituída após 20 cortes de cabelo. A taxa salarial é de US$ 10 por hora, e uma nova tesoura de barbeiro custa US$ 20 e, portanto, o custo total por corte de cabelo é de US$ 5 + US$ 1 = US$ 6. Por outro lado, engraxar os sapatos exige apenas quinze minutos de trabalho e consome 1/5 de uma lata de graxa de sapato. O custo de uma nova lata de graxa de sapato é de US$ 25. Portanto, o preço do engraxate deve ser de $2,50 + $5,00 = $7,50.”
Agora, um defensor da teoria do valor-trabalho poderia concordar plenamente com a análise de custo acima e simplesmente dar um passo atrás:
“A razão pela qual a tesoura custa US$ 20 é que (vamos supor) um trabalhador leva quarenta e cinco minutos para transformar uma onça de metal em uma tesoura pronta, e o metal custa US$ 12,50 por onça. Da mesma forma, a razão pela qual a nova lata de graxa de sapato custa US$ 25 é que (vamos supor) um trabalhador leva duas horas para transformar US$ 5 de cera no produto acabado. Assim, vemos que o preço da graxa de sapato pode ser reduzido ao preço de 15 + 24 = 39 minutos de mão de obra, ou seja, US$ 6,50 de mão de obra, mais US$ 1 de cera[iii], totalizando um preço de US$ 7,50. Observe que nos livramos completamente do custo da lata de graxa de sapato. E, se continuássemos, reduziríamos o preço da graxa para a quantidade total de tempo de mão de obra utilizada (que sabemos que deve ser de quarenta e cinco minutos, já que a graxa custa US$ 7,50 e a taxa salarial é de US$ 10).”
Como esse exemplo numérico simplista ilustra, teoricamente seria possível rastrear os gastos com insumos até que todos os bens de capital intermediários fossem eliminados. Esse procedimento é bastante semelhante, é claro, ao processo pelo qual os austríacos imputam toda a produtividade líquida aos “fatores originais” da terra e do trabalho. A diferença, no entanto, está no fato de que o teórico do valor-trabalho não acredita que o proprietário de um recurso natural original possa receber uma renda sobre seu fator de produção. Como somente os seres humanos sentem desconforto ao fornecer trabalho, até mesmo os preços dos recursos naturais podem ser reduzidos a insumos de trabalho; a Mãe Natureza nunca cobra por seus serviços.
Uma crítica da teoria clássica do valor-trabalho (custo)
A teoria do valor baseada no custo tem seus méritos. Ela oferece uma explicação coerente para os preços de mercado, especialmente os preços relativos: o bem X custa o dobro do bem Y porque custa o dobro para produzir o bem X. Na prática, parece realmente haver uma tendência geral para que os preços se igualem aos custos (incluindo o custo do capital investido, como os juros). Além disso, existe um mecanismo natural que ajuda a explicar essa tendência: se o preço de um produto estiver acima de seu custo de produção, os produtores atuais ou novos entrantes aumentariam a oferta, o que reduziria o preço do produto e/ou elevaria seus custos de produção. Por outro lado, se o preço de um produto estiver abaixo de seu custo de produção, não compensaria continuar fabricando-o, e a oferta futura reduzida levaria a um aumento nos preços do produto e/ou a uma queda nos custos de seus insumos.
Apesar desses pontos positivos, há falhas sérias e, na minha opinião, fatais, em qualquer teoria do valor baseada no custo (e, com mais razão ainda, na teoria do valor-trabalho). Vamos revisar brevemente algumas das mais importantes.
Objeções metodológicas: A objeção mais fundamental é que uma teoria de custo do valor (de troca) negligencia totalmente o papel causal das avaliações subjetivas na formação dos preços de mercado. Os atores humanos têm uma visão de futuro e, portanto, os gastos e esforços anteriores são irrelevantes para a determinação atual dos méritos relativos de duas mercadorias diferentes. Mesmo que toda a memória de gastos anteriores fosse subitamente perdida, os preços de mercado ainda se formariam. Fica claro, portanto, que a teoria do custo do valor não é a explicação mais profunda possível.
Aplicável somente a bens reproduzíveis: Obviamente, a teoria do custo do valor só pode explicar os preços de mercado de bens reproduzíveis. É necessária uma teoria totalmente diferente se quisermos explicar, por exemplo, o preço relativo de uma pintura de Van Gogh e de um violão tocado por Elvis.
O elemento tempo: A teoria do custo só pode explicar o preço “natural” (de longo prazo) de um bem; ela não pode explicar as flutuações diárias no preço de mercado que caracterizam qualquer bem real. Além disso, como enfatizou Böhm-Bawerk, o fenômeno dos juros originários destrói qualquer esperança de explicar o preço final de um bem pelos preços de seus insumos, a menos que o “tempo” seja classificado como um insumo com seu preço monetário associado.
“Custos” são preços: A teoria do custo do valor é, na melhor das hipóteses, uma teoria parcial, ela explica o preço de um aparelho de televisão com base nos custos monetários da mão de obra, do vidro e de outros recursos que foram utilizados em sua construção. Mas esses “custos monetários” nada mais são do que os preços de mercado desses bens e serviços específicos (ou seja, horas de trabalho, unidades de vidro etc.). A teoria do custo do valor, portanto, não constrói o preço a partir de blocos de base mais fundamentais; em vez disso, ela simplesmente explicita as relações que devem existir (no longo prazo) entre os preços de determinados bens e serviços.
Em contraste com a teoria clássica do custo (trabalho) do valor, a chamada revolução marginal deu início à teoria moderna e subjetiva, segundo a qual o preço de mercado é determinado pela utilidade marginal de um bem. Como ilustrado pelo famoso exemplo do mercado de cavalos de Böhm-Bawerk, é possível explicar os preços de equilíbrio baseando-se apenas nas avaliações monetárias de várias unidades marginais de diferentes mercadorias. Na exposição de Rothbard [no livro Indivíduo, Economia e Estado], os vestígios da utilidade cardinal foram completamente eliminados; as taxas de troca de equilíbrio podem ser explicadas inteiramente pelas classificações ordinais dos indivíduos de várias unidades marginais.
A abordagem da utilidade marginal para a determinação do preço (aos olhos de seus defensores) evita todas as objeções listadas acima e também pode acomodar os méritos da teoria do custo (trabalho) do valor. Ou seja, a tendência de longo prazo de que o preço de um bem reproduzível seja igual aos gastos monetários (incluindo juros sobre o capital investido) necessários para sua produção contínua é totalmente compatível com a explicação da utilidade marginal.
Notas:
[i] Deixe-me avisar ao leitor que, neste artigo, muitas vezes desconsiderarei completamente a definição moderna de custo como o valor (psíquico, subjetivo) de uma oportunidade perdida. Especialmente quando estiver lidando com a teoria do “custo” do valor, usarei o termo para me referir simplesmente aos gastos com insumos, que é o que todo mundo tem em mente nesse contexto.
[ii] Observe que eu não disse que uma teoria do valor-trabalho iguala o preço de um bem com a quantidade de mão de obra necessária para sua construção, porque (diferentemente dos custos) a mão de obra é denominada em unidades diferentes.
[iii] Lembre-se de que uma lata de graxa para sapatos requer duas horas (ou seja, 120 minutos) de trabalho e que cada engraxate usa 1/5 de uma lata; portanto, cada engraxate requer 15 minutos de trabalho imediato, mais 120/5 = 24 minutos de trabalho necessário para a transformação da cera em graxa. Além disso, cada nova lata de graxa de sapato requer cera no valor de US$ 5 e, portanto, cada engraxate individual consome cera no valor de US$ 1.
Este artigo foi originalmente publicado no Mises Institute.
Recomendações de Leitura:
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Nota: as visões expressas no artigo não são necessariamente aquelas do Instituto Mises Brasil.
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