Um enigma sobre Mises e o alistamento militar
Algumas observações no livro Socialismo de Ludwig von Mises lançam luz sobre uma passagem intrigante em Ação Humana. A passagem é intrigante porque vai contra o que se esperaria que Mises dissesse. Mises, embora não fosse um anarquista, era um liberal clássico extremamente rigoroso. Nenhum leitor de seu liberalismo pode duvidar de seu pleno compromisso com a liberdade.
O alistamento militar é uma das maiores interferências possíveis na liberdade. Não só os recrutas são escravizados, muitas vezes sob condições brutais, como podem ser enviados para morrer em batalha. Assim, você anteciparia que Mises, o supremo liberal clássico, se oporia ao alistamento militar.
E você estaria certo. Em um pequeno livro escrito em 1940, mas publicado apenas em 1998, Mises condena o alistamento militar na Primeira Guerra Mundial.
O primeiro passo para que a guerra de soldados voltasse a ser a guerra total foi dado com a introdução do serviço militar compulsório. Gradualmente foi deixando de haver uma diferença entre soldados e cidadãos. A guerra deixava de ser um assunto de mercenários; passava a envolver qualquer pessoa que tivesse aptidão física. (...) deixa de haver uma razão para diferenciar, no serviço compulsório, os aptos dos fisicamente incapacitados. Assim sendo, o serviço militar compulsório acaba por conduzir todos os cidadãos, homens e mulheres, que possam trabalhar para o trabalho compulsório (Intervencionismo: Uma Análise Econômica, 2010, p. 93-94).
No mesmo livro, ele atribui a queda da França a visões anticapitalistas. Por causa das campanhas na década de 1930 contra o "lucro da guerra", os franceses (e, em menor medida, os britânicos) se recusaram a confiar no mercado para lhes fornecer as armas de que precisavam para resistir à investida alemã.
Foi com base nesse raciocínio que o governo [de Leon Blum] estatizou a indústria bélica francesa. Quando a guerra estourou e tornou-se imperativo colocar a capacidade de produção da indústria francesa a serviço do esforço de rearmamento, as autoridades francesas ainda consideravam que seria mais importante impedir a existência de lucros decorrentes da guerra do que ganhar a guerra (p. 97).
Agora vamos ao enigma. Em uma passagem incluída na segunda e posteriores edições de Ação Humana, Mises apoia o alistamento militar. Ele diz:
Quem quiser permanecer livre deve combater até a morte aqueles que pretendem privá-lo de sua liberdade. Uma vez que tentativas individuais isoladas estão fadadas ao fracasso, a única forma viável de defesa é encarregar o governo de organizá-la. A tarefa essencial do governo é defender o sistema social, não apenas contra os malfeitores internos, mas também contra os inimigos externos. Aquele que, nos dias de hoje, se opõe ao armamento e ao serviço militar está sendo cúmplice, talvez até mesmo sem percebê-lo, dos que visam à escravização geral (Ação Humana, 2010, p. 341-342).
Como isso é possível? Como pode Mises, um liberal clássico rigoroso que argumentava contra o alistamento militar, ter mudado de ideia? A resposta é simples. Ele não apoiou o alistamento militar como política geral e não mudou de ideia.
Ele acha que o alistamento militar geralmente é errado, mas há um caso em que é permitido. Ele mencionou essa exceção em Socialismo, publicado em 1922, e dá um argumento para isso:
Nada se ganha quando o mestre da moral constrói uma ética absoluta sem referência à natureza do homem e de sua vida. As declamações dos filósofos não podem alterar o fato de que a vida se esforça para viver a si mesma, que o ser vivo busca prazer e evita a dor. Todos os escrúpulos contra o reconhecimento desta como lei fundamental das ações humanas caem por terra logo que se reconhece o princípio fundamental da cooperação social. O fato de cada um viver e desejar viver principalmente para si não perturba a vida social, mas a promove, pois a realização superior da vida do indivíduo só é possível na e através da sociedade. Este é o verdadeiro significado da doutrina de que o egoísmo é a lei básica da sociedade. A maior exigência que a sociedade faz do indivíduo é o sacrifício de sua vida. Embora todas as outras restrições de sua ação que o indivíduo tem que aceitar da sociedade possam ser consideradas, em última instância, em seu próprio interesse, isso, diz a ética anti-eudemonista, não pode ser explicado por nenhum método que suavize a oposição entre interesses individuais e gerais. A morte do herói pode ser útil para a comunidade, mas isso não é um grande consolo para ele. Somente uma ética baseada no dever poderia ajudar a superar essa dificuldade.
Em considerações mais detalhadas, vemos que essa objeção pode ser facilmente refutada. Quando a existência da sociedade está ameaçada, cada indivíduo deve arriscar o seu melhor para evitar a destruição. Nem mesmo a perspectiva de perecer na tentativa pode dissuadi-lo. Pois então não há escolha entre viver como se vivia ou sacrificar-se pelo seu país, pela sociedade ou pelas suas convicções. Ao contrário, a certeza da morte, da servidão ou da pobreza insuportável deve ser contraposta à chance de voltar vitorioso da luta. A guerra levada adiante pro aris et focis [frase latina que significa "Por Deus e pelo País" ou, literalmente, "pelos nossos altares e lares"] não exige sacrifício do indivíduo. Não se faz isso apenas para colher benefícios para os outros, mas para preservar a própria existência. Isso, é claro, só vale para guerras em que os indivíduos lutam por sua própria existência. Não é verdade para guerras que são apenas um meio de enriquecimento, como as brigas de senhores feudais ou as guerras de gabinete de príncipes. Assim, o imperialismo, sempre cobiçoso de conquistas, não pode prescindir de uma ética que exige do indivíduo "sacrifícios" pelo "bem do Estado" (pág. 402).
Assim, Mises é consistente. Se você está lutando por lar e família, você não está, na opinião dele, abrindo mão de nada lutando, já que você enfrenta a destruição se sua sociedade for destruída. O Estado, ao recrutar você nessas condições, não está piorando sua posição. Se a guerra não é para lar e família, então esse argumento não se aplica e o alistamento militar não é permitido.
Não acho que esse argumento funcione. Por um lado, não deveria caber a cada indivíduo decidir se as condições seriam "insuportáveis" se o inimigo vencesse? Por que o Estado deveria decidir isso? Mas não é meu propósito aqui avaliar o argumento de Mises, mas sim trazê-lo ao conhecimento das pessoas.
*Este artigo foi originalmente publicado em Mises Institute.
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Nota: as visões expressas no artigo não são necessariamente aquelas do Instituto Mises Brasil.
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