Na Venezuela, a hiperinflação chega de Boeing 747
Sendo a moeda a metade de toda e qualquer transação econômica, se ela deixa de funcionar, você retorna a um estado de escambo. Ninguém aceita abrir mão de bens -- principalmente alimentos e outros produtos essenciais -- em troca de uma moeda sem poder de compra nenhum. Escassez e desabastecimentos se tornam rotineiros.
Uma moeda fraca destrói o aspecto econômico mais básico da economia de mercado, que é o sistema de preços. Consequentemente, sem uma formação de preços minimamente racional, todo o cálculo econômico permitido pelo sistema de preços -- o cálculo de lucros e prejuízos, que é o que irá estimular investimentos -- se torna praticamente impossível.
Esta é exatamente a atual situação da Venezuela.
Uma moeda em contínuo enfraquecimento, que nenhum venezuelano quer portar e que nenhum estrangeiro está disposto a aceitar em troca de dólares (o que inviabiliza importações), levou a uma escassez generalizada de bens essenciais na economia -- inclusive comida e remédios, que estão sendo substituídos por remédios para cachorros --, impondo um trágico suplício aos cidadãos daquele país.
Como já explicado detalhadamente nos artigos deste site, o valor do bolívar está desabando feito uma pedra. O gráfico a seguir, elaborado pelo site Dolar Today, que mantém um histórico do valor do dólar no mercado paralelo da Venezuela, mostra a evolução da taxa de câmbio do bolívar em relação ao dólar americano.
Taxa de câmbio bolívar/dólar no mercado paralelo
Como mostra o gráfico, em meados de 2014, um dólar custava 200 bolívares no mercado paralelo. Atualmente, o bolívar já desabou acentuadamente, com um dólar valendo mais de 1.000 bolívares. Isso implica uma desvalorização da moeda nacional de 80% em apenas um ano.
O país está hiperinflação. Organismos internacionais, em uma projeção conservadora, estimam uma inflação de preços de 720% para este ano.
Uma das causas desta hiperinflação está na acelerada criação de dinheiro.
O gráfico abaixo mostra a evolução da quantidade de cédulas de papel e de depósitos em conta-corrente na economia venezuelana (agregado M1) de acordo com as estatísticas do próprio Banco Central venezuelano. Em apenas dois anos, essa variável praticamente quadruplicou.
Evolução da quantidade de cédulas de papel e de depósitos em conta-corrente na Venezuela
No entanto, segundo reportagem do The Wall Street Journal, as impressoras do Banco Central da Venezuela, localizadas na cidade industrial de Maracaíbo, não têm mais papel suficiente para continuar a impressão de cédulas. Não no volume exigido pelo governo -- que, após a queda do preço do petróleo, passou a se financiar quase que exclusivamente via impressão de dinheiro.
Sendo assim, como manter o ritmo dessa tresloucada criação de cédulas de papel?
O próprio The Wall Street Journal respondeu: utilizando 36 Boeings 747, os famosos Jumbos.
E não acaba por aí. Mais aviões estão chegando.Toneladas de provisões, amontoadas dentro de 36 Boeings 747 cargueiros, chegaram aqui em Caracas oriundos de vários países ao redor do mundo para trazer mantimentos para a estropiada economia venezuelana.
Porém, em vez de comida e de remédios, os aviões trouxeram um outro recurso que frequentemente se torna escasso aqui: cédulas da moeda venezuelana, o bolívar.
De acordo com sete pessoas que participaram do acordo, os suprimentos fazem parte de uma remessa de pelo menos cinco bilhões de cédulas que o governo do presidente Nicolás Maduro encomendou durante o segundo semestre de 2015 como forma de aumentar a oferta da cada vez mais desvalorizada moeda venezuelana.
Ainda segundo a reportagem, o Banco Central venezuelano começou negociações secretas para encomendar outros 10 bilhões de cédulas, o que, na prática, irá dobrar toda a quantidade de cédulas em circulação. Para efeito de comparação, vale dizer que o Fed (o Banco Central americano) e o Banco Central Europeu, que atuam em regiões de dimensão continental, imprimem anualmente 8 bilhões de cédulas cada um -- sendo que os dólares e euros, ao contrário do bolívar, são utilizados mundialmente, especialmente em outros países.
Obviamente, o governo venezuelano tem de pagar por esse serviço:
Toda essa farra de encomenda de cédulas está custando ao governo venezuelano centenas de milhões de dólares, disseram as sete pessoas envolvidas no acordo entre o governo venezuelano e os produtores das cédulas de dinheiro.
[...]
A maioria dos governos ao redor do mundo terceirizou a atividade de impressão de cédulas para empresas privadas, as quais podem fornecer sofisticadas tecnologias anti-falsificação, como marcas d'água e faixas de segurança.
[...]
A enorme encomenda de 10 bilhões de cédulas do governo venezuelano não pôde ser atendida por apenas uma empresa, disseram as sete pessoas familiarizadas com o acordo. Consequentemente, a medida do governo venezuelano despertou um enorme interesse entre as maiores empresas mundiais do ramo de impressão de dinheiro, cada qual ansiosa por uma fatia desse bolo, principalmente em uma época em que as baixas margens de lucro no ramo da impressão de cédulas de dinheiro obrigaram várias dessas empresas a cortarem seus custos.
Mas como o governo venezuelano está pagando por este serviço? Exaurindo suas reservas internacionais em dólar e, principalmente, queimando todo o seu estoque de ouro.
De acordo com informações da Reuters e da Bloomberg, todo o ouro provavelmente estará exaurido até o final deste ano, dado que o país tem dívidas de US$ 12 bilhões que vencerão este ano e terá de recorrer ao metal para quitar estas dívidas. Após isso, a menos que ocorra um surpreendente aumento nos preços do petróleo -- que sempre foi o grande garantidor de divisas para o país --, o país estará à deriva.
Atualmente, já há enormes dificuldades para importar bens essenciais, como medicamentos contra o câncer, papel higiênico, e repelentes contra insetos para exterminar o vírus da Zika.
Mas tudo se torna ainda mais ridículo: o governo determinou que a cédula de maior denominação é a de 100 bolívares. Não pode haver nenhuma cédula maior que a de 100 bolívares. Segundo a reportagem, o governo venezuelano se recusa a imprimir cédulas de maior denominação -- o que, por si só, geraria uma grande redução nos custos de impressão, poupando ao governo milhões de dólares -- porque "fazer isso implicaria o reconhecimento de que o país está em hiperinflação, algo que o governo publicamente nega."
As mais recentes encomendas do Banco Central venezuelano contemplam exclusivamente cédulas de 100 e de 50 bolívares, pois as de 20, 10, 5 e 2 valem menos do que seu custo de produção.
Enquanto isso, a vida na Venezuela segue perturbadoramente semelhante àquela vivenciada pelos alemães durante a hiperinflação da República de Weimar em 1923, com os carrinhos de mão lotados de dinheiro e tudo:
Embora o uso de cartões de crédito e de transferências bancárias esteja em alta, venezuelanos têm de carregar pilhas enormes de cédulas de dinheiro, uma vez que os vendedores fazem de tudo para evitar as taxas governamentais que incidem sobre as transações eletrônicas. Jantar em um restaurante bom pode custar um tijolo de cédulas de dinheiro. Um pastel de queijo -- localmente conhecido como arepa -- custa aproximadamente 1.000 bolívares. Como a cédula de maior denominação é a da 100 bolívares, um simples pastel de queijo exige que o comprador tenha ao menos dez cédulas de 100 bolívares -- cada qual vale menos que US$ 0,10.
Por causa do rígido controle de preços implantado pelo governo, só é possível encontrar bens no mercado negro. Desde pneus de carro até fraldas de bebê -- os venezuelanos têm de recorrer ao mercado negro se quiser adquiri-los. E o mercado negro, obviamente, só trabalha com dinheiro vivo, o que exige que os venezuelanos portem pilhas e pilhas de cédulas de dinheiro.
E as coincidências se tornam ainda mais desesperadoras. De acordo com as pessoas que participaram do acordo entre o Banco Central da Venezuela e as empresas privadas que estão fornecendo as cédulas:
As empresas escolhidas são a britânica De La Rue, a canadense Bank Note Co., a francesa Oberthur Fiduciaire e sua subsidiária em Munique chamada Giesecke & Devrient, que é a mesma que imprimiu as cédulas alemãs durante a hiperinflação da República de Weimar, em 1923, quando os cidadãos tinham de utilizar carrinhos de mão lotados de dinheiro para comprar pão.
Mais recentemente, essa mesma empresa forneceu as cédulas de dinheiro para o Zimbábue quando o país entrou em hiperinflação em 2008. À época, os preços dobravam diariamente.
Conclusão
Recentemente, uma foto de um venezuelano utilizando uma cédula de 2 bolívares como guardanapo para segurar uma empanada tornou-se viral na internet. A imagem é uma perfeita ilustração da teoria econômica: se a moeda é fraca, ela perde toda a sua função de meio de troca, e passa a ser utilizada em aplicações mais cotidianas.
Uma cédula de 2 bolívares vale muito menos que US$ 0,01 (na prática, vale um terço de um cent, ou US$ 0,002). Já um pacote de guardanapos custa mais de 600 bolívares.
Essa foto é pavorosamente parecida com as fotos oriundas do episódio da hiperinflação alemã na época da República de Weimar, em que o índice da inflação de preços mensal saltou de 100% em julho de 1922 para 29.500% em novembro de 1923. A cédula de 100 trilhões de marcos foi criada e as impressoras do Reichsbank passaram a imprimir dinheiro ao ritmo recorde de 74 trilhões de cédulas de marcos por semana.
Como consequência dessa inflação de dinheiro, os alemães passaram a utilizar as cédulas como lenha para fogueiras e para fogões.
Por ora, podemos apenas especular a extensão do estrago que esse episódio trará à poupança dos venezuelanos. À medida que as notícias sobre a economia do país vão sendo reveladas é inevitável não ter aquela sensação de horror.
Não deixa de ser fascinante constatar que, mesmo com a história nos fornecendo inúmeros exemplos, os governos parecem nunca aprender. Eles continuam acreditando que podem, de alguma maneira, sobrepujar as leis econômicas por decreto. E isso se aplica não apenas ao governo da Venezuela, mas também a todos os governos do mundo. O planejamento central da moeda é uma prática adotada por todos os governos de todos os países. A Venezuela é apenas o exemplo mais extremo.
Em algum momento, todos os estados deixarão de ser capazes de honrar suas promessas feitas aos seus cidadãos. E quando isso ocorrer, ou seja, quando os governos não mais forem capazes de manter suas promessas por meio da tributação e do confisco de riqueza, eles recorrerão à impressora de dinheiro.
Essencialmente, todos os governos do mundo controlam suas moedas da mesma maneira que o governo Maduro. Varia apenas a intensidade com que cada governo destrói o poder de compra de suas respectivas moedas. Ao redor de todo o mundo, o que temos no âmbito monetário é socialismo puro, de modo que todas as moedas nacionais estão sujeitas unicamente ao poder político.
É inevitável imaginar (e temer) quantos outros desastres econômicos terão de ocorrer até que se torne claro que o socialismo -- de todos os tipos, tamanhos e graus de intensidade -- é impraticável, intolerável e indesculpável.
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Carmen Dorobat, pós-doutoranda em economia na Universidade de Angers e professora na Bucharest Academy of Economic Studies.
Steve Hanke, professor de Economia Aplicada e co-diretor do Institute for Applied Economics, Global Health, and the Study of Business Enterprise da Universidade Johns Hopkins, em Baltimore, EUA. O Professor Hanke também é membro sênior do Cato Institute em Washington, D.C.; professor eminente da Universitas Pelita Harapan em Jacarta, Indonésia; conselheiro sênior do Instituto Internacional de Pesquisa Monetária da Universidade da China, em Pequim; conselheiro especial do Center for Financial Stability, de Nova York; membro do Comitê Consultivo Internacional do Banco Central do Kuwait; membro do Conselho Consultivo Financeiro dos Emirados Árabes Unidos; e articulista da Revista Globe Asia.
Leandro
Roque, editor e tradutor do site do Instituto Ludwig von Mises
Brasil.
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