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Como o desarmamento se transformou em um instrumento de tirania na Venezuela

Os venezuelanos estão indefesos contra um governo que destruiu suas liberdades civis e econômicas

04/11/2022

Como o desarmamento se transformou em um instrumento de tirania na Venezuela

Os venezuelanos estão indefesos contra um governo que destruiu suas liberdades civis e econômicas

Estaria a Venezuela pagando o preço do desarmamento?

A natureza horrenda do colapso econômico da Venezuela já foi coberta ad nauseam por todos os veículos de comunicação. Entretanto, um aspecto da crise venezuelana que não recebe muita cobertura da mídia é o desarmamento da população imposto pelo governo.

A rede Fox News recentemente publicou um excelente artigo ressaltando o arrependimento dos venezuelanos em relação às políticas de desarmamento que o governo da Venezuela implantou em 2012. Eis alguns trechos.

Venezuelanos se arrependem de terem entregado suas armas ao governo

Cúcuta, fronteira da Colômbia com a Venezuela -- À medida que a Venezuela sucumbe à ditadura socialista de Nicolás Maduro, cidadãos expressam seu lamento pelo dia em que foram forçados a entregar suas armas em razão da dura legislação implantada no país.

"Armas teriam servido como um pilar vital para manter o povo livre, ou pelo menos capaz de lutar", disse Javier Vanegas, professor de inglês venezuelano exilado no Equador. "As forças de segurança do governo, no início deste desastre, sabiam que não teriam uma real resistência à sua força. Quando as coisas ficaram realmente ruins, tornou-se evidente que a medida foi uma clara declaração de guerra contra uma população desarmada."

Sob o comando do então presidente Hugo Chávez, o Congresso venezuelano aprovou, em 2012, a "Lei do Controle de Armas, Munições e Desarmamento", cujo objetivo explícito era "desarmar todos os cidadãos". A posse de armas no país foi totalmente proibida. A lei entrou em vigor em 2013, proibindo por completo as vendas de armas e munição -- exceto para entidades do governo.

Inicialmente, Chávez promoveu um programa de anistia, com meses de duração, estimulando os venezuelanos a trocarem suas armas por eletrodomésticos. Naquele ano, houve apenas 37 registros de entregas voluntárias de armas, sendo que a maioria das armas obtidas pelo governo -- mais de 12.500 -- foi na base da força.

Em 2014, já com Nicolás Maduro no poder, o governo investiu mais de US$ 47 milhões para impingir o desarmamento -- o que inclui espetáculos públicos grandiosos de tratores destruindo armas em praças públicas.

Apenas podem ser proprietários de armas na Venezuela membros do governo. A restrição é tão abrangente que até mesmo estilingues e armas de pressão (airsoft) só podem transitar nas mãos dos agentes estatais, segundo informou um ex-vendedor de armas venezuelano, que hoje vende apenas produtos de pesca após a política desarmamentista do governo ganhar corpo.

A pena por vender ou possuir armas é de 20 anos de cadeia. [...]

Desde abril de 2017, quase 200 manifestantes pró-democracia na Venezuela -- armados principalmente com pedras -- foram mortos a tiros pelas forças do governo. [...]

"A Venezuela mostra como pode ser fatal os cidadãos serem privados dos meios de resistir às depredações de um governo criminoso", disse David Kopel, analista político e diretor de pesquisa do Independence Institute e professor adjunto de Direito Constitucional Avançado da Universidade de Denver. "Os governantes venezuelanos -- assim como seus semelhantes cubanos -- aparentemente veem a posse de armas pelos cidadãos como um grande risco para a perpetuação do monopólio comunista do poder".

Obviamente, o pretexto da legislação do desarmamento foi a "segurança da população", "a redução da criminalidade" etc. A realidade, no entanto, é que cidadãos desarmados são presas fáceis e oferecem uma resistência menor àquele que detém o monopólio das armas: o estado.

O governo venezuelano é hoje um dos mais tirânicos do mundo, com um comprovado histórico de violação das mais básicas liberdades civis, o que inclui proibir a liberdade de expressão e a imprensa livre, destruir a moeda nacional, confiscar a propriedade privada, e criar todos os tipos de controles econômicos que destroem a produtividade do país.

As eleições se mostraram totalmente inúteis, pois sempre foram repletas de denúncias de fraude, corrupção e manipulações do governo. Para muitos, pegar em armas era a única opção que restava para que o país se livrasse de seu governo tirânico. Entretanto, o governo venezuelano foi muito bem-sucedido em impedir essa insurreição popular ao aprovar e impingir o draconiano desarmamento da população, o qual será detalhado abaixo.

Nunca houve uma tradição pró-armas na Venezuela

Historicamente falando, a Venezuela nunca teve um robusto histórico de posse de armas, ao contrário da população americana. A ausência dessa tradição, e até mesmo a ausência de uma vigilância do povo sobre o monopólio governamental das armas, é um vestígio de seu legado colonial.

Seus conquistadores espanhóis não possuíam a cultura política da propriedade civil de armas de fogo. Durante a era colonial, eram majoritariamente os militares e a nobreza proprietária de terras que possuíam armas de fogo. Essa tradição se manteve mesmo após os países latino-americanos se tornarem independentes da Espanha nos anos 1820.

No século XX, a situação piorou, e a Venezuela iniciou suas primeiras tentativas de "modernizar" sua política desarmamentista. Em 1939, o governo venezuelano implantou a Ley de Armas y Explosivos, a qual estabelecia o monopólio estatal sobre o uso de armas de fogo. O estado passava a ser a única entidade que poderia possuir "armas de guerra", as quais incluíam desde canhões, rifles, morteiros, metralhadoras e sub-metralhadoras até carabinas, pistolas e revólveres. Os civis podiam possuir rifles calibre .22 e espingardas. Em certas circunstâncias específicas, eles podiam ter revólveres, desde que obtivessem uma licença para isso.

O papel das idéias progressistas na consolidação do estatismo venezuelano

Idéias importam. Idéias têm poder.

Não é surpresa nenhuma que a Venezuela tenha embarcado nesta aventura desarmamentista no final da década de 1930. [N. do E.: "coincidentemente", foi quando Getúlio Vargas também iniciou o desarmamento no Brasil]. Este foi um período em que o estatismo estava em voga em todo mundo, como pode ser comprovado pela ascensão do fascismo e do comunismo na Europa, e do New Deal nos EUA.

Com efeito, foi exatamente durante o New Deal que o governo americano fez sua primeira investida na seara do controle de armas com a aprovação do National Firearms Act (que aumentava impostos sobre a manufatura e transferência de determinadas armas, e exigia seu registro junto ao governo), em 1934.

Não obstante suas políticas desarmamentistas, a Venezuela ao menos ainda mantinha uma certa restrição ao envolvimento do governo na economia. Isso durou até o início da década de 1970.

A estatização de toda a indústria petrolífera na década de 1970 e as subsequentes recessões das décadas de 1980 e 1990 abalaram as bases institucionais da Venezuela. Consequentemente, o país se tornou propício para ser tomado por demagogos.

A agenda anti-armas de Hugo Chávez

Quando o socialista Hugo Chávez assumiu o poder, em 1999, as anteriores leis desarmamentistas da Venezuela não apenas foram mantidas intactas, como ainda foram expandidas. O artigo 234 da atual Constituição venezuelana (a 26ª da sua história) manteve o monopólio das armas de fogo com o estado e colocou as Forças Armadas como a entidade responsável por regular todas as armas de fogo no país.

Em 2002, o governo venezuelano aprovou a primeira versão da Lei do Controle de Armas, Munições e Desarmamento, reforçando o férreo controle estatal sobre as armas no país. Uma década depois, a lei foi modificada para aprofundar e expandir o escopo do desarmamento, entregando às Forças Armadas o poder exclusivo de controlar, registrar e confiscar as armas.

Sob a justificativa de estar combatendo a criminalidade, o governo venezuelano finalmente implantou a proibição total de toda a venda de armas e munições em 2012 [N. do E.: com o entusiasmado apoio da Viva Rio, vale ressaltar].

Como outros episódios de desarmamento, tal medida se comprovou completamente fútil na redução da criminalidade. De acordo com as estatísticas do Observatório da Violência venezuelano, a taxa de homicídios do país disparou de 73 assassinatos por 100.000 pessoas em 2012 para 91,8 assassinatos por 100.000 pessoas em 2016.

Desarmamento: transformando os cidadãos em reféns desarmados

Os venezuelanos estão hoje completamente indefesos contra um governo que diariamente destroça suas liberdades civis e econômicas. Um governo que impede sua liberdade de expressão, que confisca sua propriedade privada, que expropria sua riqueza, que destrói sua moeda e seu poder de compra, que empurra suas mulheres para a prostituição e que literalmente mata a população de fome.

Como se não bastasse, os venezuelanos também têm de lidar com a criminalidade desenfreada e com a constante ameaça dos colectivos, que são as infames unidades paramilitares pró-governo que assassinam pessoas consideradas inimigas do regime.

Embora uma política desarmamentista, por si só, não leve automaticamente para tirania, eventos históricos nos lembram que mesmo intervenções bem-intencionadas feitas por governos anteriores podem ser utilizadas por governos subsequentes para propósitos nefastos. A proibição, o confisco e mesmo a exigência de registro de armas dão ao estado o monopólio prático da violência, desta maneira transformando os cidadãos em meros reféns passivos e indefesos.

Quando a realidade se impõe, uma população desarmada simplesmente não tem nenhuma chance de oferecer resistência a um Leviatã muito bem armado e detentor do monopólio das armas.

Por fim, vale a lição: turbulências políticas e tentações autoritárias podem surgir a qualquer momento e em qualquer país, e os cidadãos têm de ter um meio final de se protegerem caso todas as opções institucionais estejam exauridas. Cidadãos armados impõem um limite natural à tirania do estado.

Sobre o autor

José Niño

nascido na Venezuela, faz mestrado na universidade de Fort Collins, Colorado. Já morou no Chile, na Venezuela e nos EUA. Atualmente, ele é analista do Círculo Acton, do Chile.

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