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Economia

O futuro da Europa começa a ficar mais claro

01/11/2011

O futuro da Europa começa a ficar mais claro

Como o leitor já deve saber, minhas expectativas já eram baixas desde o início.  Eu não esperava que o encontro de líderes europeus para discutir a crise da dívida fornecesse alguma solução.  Não há solução.  A situação não tem conserto e a crise continuará se desenrolando ininterruptamente.

O que mais me espantou ao ler as primeiras reações ao encontro foi isso: a maioria das opiniões que você lê dos especialistas da mídia convencional ou de economistas financeiros de Wall Street ou da City de Londres não somente ignora os pontos relevantes, como, pior ainda, entende as coisas completamente ao avesso.  As medidas políticas que estes analistas sugerem são quase sempre as piores possíveis, medidas que deveriam ser evitadas sob todas as circunstâncias.

Analisemos as principais:

1. Redução contábil de 50% no valor da dívida grega

"Envolvimento do setor privado" é uma daquelas frases apavorantes e deturpadas que escondem mais do que explicam.  O 'setor privado', neste caso, significa obviamente os bancos que foram estúpidos o bastante para dar bilhões de euros aos políticos gregos.

Todos sabemos o que ocorre, sob um genuíno capitalismo, às pessoas que emprestam dinheiro a tomadores de empréstimo que acabam se revelando incapazes de honrar sua dívida: elas perdem seu dinheiro.  É assim que deve ser.  Isso irá ensiná-las a serem mais criteriosas no futuro, tornando-as -- espera-se -- mais prudentes.  Infelizmente, estamos falando da Europa, e aqui não há capitalismo.  Logo, você pode recorrer à classe política, negociar seus prejuízos e, na pior das hipóteses, concordar em sofrer uma 'adequada' redução contábil no valor da quantia que lhe devem.  Em julho, uma redução contábil de 20% já havia sido acordada; agora, esse valor foi elevado para 50%.  Qualquer que seja o valor, ele é totalmente arbitrário.

A categoricamente orwelliana frase "investimento do setor privado" faz soar como se estes pobres bancos fossem apenas inocentes espectadores -- e respeitáveis membros do setor privado -- que foram involuntariamente arrastados para essa desventurada empreitada, sem qualquer culpa própria.

Afinal, com exatamente qual intensidade o setor 'privado' deveria se 'envolver' neste assunto?  Como resposta, eu diria que exatamente na intensidade com que ele tenha voluntariamente escolhido conceder dinheiro ao governo grego.  Quero dizer, será que os analistas de crédito e os gerentes de risco de bancos como o Crédit Agricole e o Société Générale se deram ao trabalho de ir a Atenas inspecionar o poço sem fundo em que seus empréstimos foram despejados?  Ou será que eles presumiram desde o início que os pagadores de impostos alemães ou o Banco Central Europeu iriam cobrir suas perdas?

É claro que uma redução contábil de 50% na dívida, como foi acordada agora em Bruxelas, é melhor do que os ridículos 20% 'acordados' em julho.  Porém, olhando a medonha situação financeira da Grécia, a redução deveria ser de pelo menos 60%, ou talvez 90 ou 100%.  Como explicado aqui e aqui, não há motivos por que os cidadãos gregos da atual e futura geração tenham de sofrer interminavelmente para pagar dívidas contraídas por governos passados.  Da mesma forma, os cidadãos gregos não devem ser responsabilizados pela corrupção de seu governo e pela imbecilidade de seus banqueiros.  Que deem o calote!  Apenas parem de pagar, vão à falência, encolham forçadamente seu governo, arregacem as mangas e recomecem tudo do início.  Após um completo e adequado calote, o estado não irá mais conseguir obter empréstimos tão facilmente -- algo que coincidentemente seria um bônus adicional gerado por um calote geral do governo.  Isso manterá os futuros políticos um pouco mais honestos.  Esta seria uma solução de livre mercado.  Porém, novamente, estamos falando da Europa.

Uma redução contábil ainda maior, uma que fosse decidida não na base da barganha política, mas sim pelo mercado e pela real capacidade da Grécia de honrar suas dívidas, seria mais providencial para os gregos, e iria convenientemente disciplinar os banqueiros.  E por que isso não é considerado?  Bem, os políticos não gostam dessa solução porque ela paralisaria boa parte do mercado de títulos públicos, tornando difícil ou até mesmo impossível para que eles continuem incorrendo em déficits.  E também porque os bancos habilidosamente montaram armadilhas explosivas por todo o sistema financeiro, recheando-o com explosivos CDS (credit default swaps --  uma espécie de seguro contra um eventual calote de uma instituição qualquer) que serão disparados caso o "envolvimento do setor privado" se torne grande demais.  Os banqueiros cada vez mais se parecem com terroristas financeiros: "Se vocês não nos socorrerem, vamos explodir tudo!"

Conclusão: uma redução contábil de 50% é melhor do que 20%, mas ainda é muito pouco para a Grécia; e toda essa ideia de que o setor 'privado' negocia prejuízos com políticos não é um bom presságio para o futuro.

2. Coordenação fiscal

Nada específico foi acordado no encontro, mas é para isso que as coisas estão se direcionando, e os economistas convencionais estão torcendo por isso.

Há anos estamos ouvindo essa mesma conversa, repetidamente publicada em infindáveis panfletos acadêmicos macroeconômicos e em editoriais jornalísticos: não pode haver união monetária sem uma união fiscal.  Isto, obviamente, é de um ridículo atroz.  Besteira total.  E uma bobagem não se torna verdadeira só porque é repetida ad nauseam.

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O dinheiro do capitalismo genuíno
O dinheiro do capitalismo, do livre mercado e do comércio global sempre foi o ouro (ou a prata, mas aqui irei me referir apenas ao ouro).  Um padrão-ouro é a melhor e mais velha união monetária imaginável -- e, diria eu, a única que funciona.  Sob um padrão-ouro, vários países e seus respectivos governos utilizam a mesma moeda, o ouro.  Não há banco central e não há impressora de dinheiro.  Os governos têm de se virar com a renda que conseguirem coletar via impostos de sua população.  Em tal sistema, o estado tem de sobreviver -- assim como qualquer outra entidade da sociedade -- exclusivamente com seus meios.  Aparentemente, esta simples noção é completamente ilógica e irreal para os políticos e economistas convencionais da atualidade. 

Sob um padrão-ouro, o estado também pode pegar empréstimos no mercado; porém, pela própria realidade da situação, torna-se claro que os emprestadores terão de assumir a totalidade do risco de um calote.  Não há um emprestador de última instância.  Não dá para imprimir ouro.  Ademais, quanto mais o governo tomar empréstimos, menor será o ouro disponível para empréstimos ao setor privado.  Consequentemente, maiores serão os juros.  Logo, um governo não poderá se endividar continuamente, pois isso literalmente paralisaria a economia.  Tudo isso funciona como uma poderosa restrição à atuação governamental.

A crise grega foi um bom teste para ver o quão próximo a União Monetária Europeia (UME), operando com uma moeda fiduciária, poderia se assemelhar ao funcionamento de um genuíno padrão-ouro.  Ao menos na teoria, como foi originalmente concebido pelo projeto da UME, não poderia haver nenhum tipo de pacote de socorro, e toda a bagunça deveria ser resolvida exclusivamente por uma negociação local entre o governo grego e seus credores, assim como ocorreria sob um padrão-ouro.

Toda essa besteira sobre o colapso do euro sempre foi, é claro, uma inútil tática de amedrontamento, ainda que politicamente motivada.  Quando, sob um padrão-ouro, um governo dá um calote, não há absolutamente nenhum motivo para que qualquer outro governo abra mão do ouro como moeda.  Da mesma maneira, caso o projeto original da UME tivesse sido obedecido e não tivesse havido pacotes de socorro, não haveria motivo algum de um calote grego afetar a aceitação e a utilização do euro em qualquer um dos outros países da união monetária, inclusive para os gregos  (como explicado aqui).  Uma união monetária não requer uma união fiscal.  Quod erat demonstrandum.

Mas a UME não é nenhum padrão-ouro, e ela já fracassou em seu primeiro teste sobre se poderia sequer ser uma união monetária com alguma disciplina.  O padrão-ouro foi abandonado globalmente exatamente para que os governos não mais tivessem de viver exclusivamente dentro de seus meios.  O euro é um dinheiro de papel, uma moeda fiduciária e de cunho político, emitido justamente para permitir uma persistente irresponsabilidade fiscal -- exatamente como qualquer outra moeda de papel.  Bancos centrais sempre, em todo e qualquer lugar, foram criados para financiar o estado e o setor bancário.  Essa é sua principal função.  Com o Banco Central Europeu não é diferente.

Eis o retrato da situação global em 2011: após 40 anos de experiência com dinheiro de papel puro, sem nenhum lastro, a dívida pública ao redor do mundo atingiu dimensões tão monumentais, que os principais bancos centrais do mundo estão agora financiando diretamente o estado.  Antes isso era proibido, de modo que os BCs se limitavam a comprar apenas títulos que estivessem em posse dos bancos.  Agora eles compram direto do Tesouro.  Isso está acontecendo nos EUA, no Reino Unido e, de modo crescente, na zona do euro.  E tal prática ou é aceita com serena desconfiança ou é entusiasmadamente apoiada por economistas e inflacionistas a soldo da grande mídia.  A tendência é a mesma em praticamente todos os lugares.  A única diferença é que, na zona do euro, as coisas são um pouco mais obscuras, pois é mais difícil saber qual governo tem prioridade na fila da impressora de dinheiro.  Já em todas as outras economias baseadas no dinheiro de papel, esse processo é feito de maneira mais direta e explícita.

Supor que alguma forma de arranjo institucional de coordenação fiscal irá disciplinar os governos europeus e reduzir seus desejos por contínuas monetizações de suas dívidas com o Banco Central Europeu -- isto é, o BCE imprimindo dinheiro para comprar diretamente títulos da dívida -- é algo no mínimo ingênuo, para não dizer completamente parvo.  Todos os governos da Europa são fiscalmente irresponsáveis, até mesmo o alemão.  Durante as apressadas negociações sobre as diretrizes da UME, a Alemanha impôs os critérios de Maastricht (limitando o teto da dívida) sobre seus parceiros europeus.  E aí?  Alguém hoje se lembra do limite da dívida sendo fixado em 60% do PIB?  Risível.  Hoje a dívida da Alemanha está em 83% do PIB e subindo, valor esse que parece até relativamente prudente quando comparado ao da Bélgica e da Grécia.  Porém, se a Alemanha tiver de cumprir todas as obrigações já assumidas sob o Fundo Europeu de Estabilidade Financeira, sua dívida irá, num pulo só, para mais de 90%, aproximadamente onde estava a Irlanda quando seus credores disseram 'no mas!'. 

A Alemanha poder ter hoje a menor taxa de desemprego dos seus últimos vinte anos; e, ano passado, apresentou também a maior taxa de crescimento do PIB dos seus ultimo vinte anos.  Mas o país segue incorrendo em déficits, aumentando sua dívida ano após ano, assim como todo o resto da Europa.

Olhando-se para uma linha do tempo grande o bastante, todos serão a Grécia.

Conclusão: ainda veremos uma pletora de alterações no tratado, encontros de altos líderes da UE e várias outras geringonças inúteis sendo anunciadas.  Supor que os governos não irão coletivamente recorrer às impressoras, e que eles irão, ao contrário, impor disciplinas uns aos outros, quando na verdade todos eles são consagrados, costumeiros e incorrigíveis transgressores fiscais, é algo além do ridículo.  Quem acreditar nisso, por favor me ligue; tenho algo que quero vender para você.

3. 'Poder de fogo ilimitado', cortesia do banco central

Você pode argumentar que tudo poderia ter sido pior.  Merkel poderia ter cedido aos apelos de Sarkozy para utilizar o Banco Central Europeu diretamente para alavancar o fundo de resgate de 440 bilhões de euros.  Aparentemente ela não cedeu, e Sarkozy terá de ir, com o chapéu na mão, atrás dos chineses e ver se eles possuem algum trocado.  No entanto, esta não é uma solução de longo prazo e, tão logo a Itália e a Espanha se aprofundarem em seus problemas, o fundo de resgate será exaurido.

Um dos aspectos mais estarrecedores desta crise é o quão corriqueiro se tornou ver os economistas convencionais e os especialistas da grande mídia apontando para os 'recursos ilimitados' do BCE.  É verdade que um banco central pode criar quantias ilimitadas de dinheiro eletrônico e de papel para socorrer a todos -- os governos, os bancos, os fundos de pensão etc.  O problema é que tal política costumava ser defendida unicamente por excêntricos anticapitalistas, dado que se trata de uma receita garantida para uma total aniquilação da moeda.  Hoje, no entanto, economistas de renome e supostamente bem conceituados chamam atenção para a importância de se 'manter o BCE engajado', pois somente o BCE possui os recursos 'ilimitados' para financiar a irrestrita devassidão fiscal dos modernos governos social-democratas e suas elites políticas em busca de eleições fáceis, e para financiar o colossal acúmulo da dívida.

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Super Mario
À medida que os apelos histéricos por agressivas políticas monetárias do BCE vão se tornando cada vez mais estridentes, Mario Draghi, o novo impressor-em-chefe da Europa, já sinalizou seu apoio a uma política de monetização da dívida a ser implantada pelo BCE -- isto é, compras contínuas e em ampla escala de títulos governamentais desvalorizados -- e, em última análise, sem valor -- com a ajuda da impressora de euros.

Qualquer indivíduo que possua qualquer poupança aplicada na zona do euro já deveria estar extremamente preocupado com o que está acontecendo por aqui, e em particular com o tom do debate.  Quando passa a ser lugar-comum falar sobre recursos 'ilimitados' do BCE, tais pessoas genuinamente se referem a ilimitados mesmo.  A criação de novas unidades de euro dar-se-á sem qualquer limite.  E a inflação de preços resultante também será sem limites.

Conclusão: a julgar pela aparência, a posição alemã venceu -- reduções contábeis mais profundas na dívida e nada de utilizar o BCE para alavancar o Fundo Europeu de Estabilidade Financeira.  Porém, de onde então virá o dinheiro para socorrer a todos?  Itália e Espanha continuarão sob pressão.  Ninguém tem o dinheiro para socorrê-los ou para recapitalizar novamente os bancos quando os países altamente deficitários perderem acesso ao mercado de títulos e derem o calote.  O BCE não está fora do jogo.  Recorrer à impressora passou a fazer parte da política global dos últimos três anos e, lamentavelmente, tal pensamento é hoje parte inerente ao pensamento dominante.

O BCE não vai parar de imprimir dinheiro.  Não há uma estratégia de saída.  As pressões por uma maior e mais acelerada monetização da dívida, dos déficits orçamentários e dos balancetes dos bancos irão continuar e até mesmo se intensificar.  O resultado final será a inflação.


Sobre o autor

Detlev Schlichter

É formado em administração e economia. Trabalhou 19 anos no mercado financeiro, como corretor de derivativos e, mais tarde, como gerente de portfolio. Nesse meio tempo, conheceu a Escola Austríaca de Economia

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