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Filosofia

Fugindo de Rawls

09/10/2025

Fugindo de Rawls

Nota da edição:

O artigo a seguir é uma resenha crítica do livro Free Market Fairness feita pelo filósofo libertário David Gordon. Na obra, o autor John Tomasi tenta conciliar a visão sobre justiça de John Rawls com um sistema de livre mercado.

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John Rawls pode ser chamado de muitas coisas, mas “libertário” definitivamente não é uma delas. Combinar Rawls e o libertarianismo não parece um projeto muito promissor, mas foi exatamente isso que John Tomasi, um filósofo político que lecionava na Brown University quando publicou seu livro Free Market Fairness em 2012, tentou fazer. O livro continua sendo a defesa mais completa e convincente dessa posição.

Tomasi descreve, de forma envolvente, o que o levou ao que, à primeira vista, parece uma mistura de compromissos incompatíveis. Por um lado, ele achava o liberalismo clássico atraente; por outro, era atraído por uma concepção de justiça geralmente considerada hostil a essa mesma posição.

Duas ideias do liberalismo clássico o atraíam especialmente. O livre mercado permite que as pessoas moldem suas próprias vidas; não precisam mais reagir passivamente aos desejos dos outros:

“O aumento da prosperidade parece conceder a um número cada vez maior de pessoas um senso de poder e independência. Isso incentiva uma forma especial de autoestima que surge quando as pessoas se reconhecem como causas centrais das vidas particulares que estão vivendo, em vez de serem, de alguma forma, tuteladas por outros, não importa o quão bem-intencionados, preocupados com o próximo ou sábios esses outros possam ser. (...) Também me sinto atraído pela ideia libertária de ‘ordem espontânea’. (...) Friedrich Hayek argumenta que uma sociedade livre deve ser entendida como uma ordem espontânea, na qual as pessoas devem ter liberdade para perseguir seus próprios objetivos com base nas informações de que apenas elas dispõem. Junto com o ideal moral da liberdade econômica privada, considero profundamente atraente a ênfase libertária na ordem espontânea”.

A concepção de justiça como equidade de Rawls, que Tomasi aceita, pode ser adaptada para a defesa da “democracia de mercado”, a versão de liberalismo clássico proposta por ele. Isso de modo algum equivale ao libertarianismo de Rothbard e Nozick:

“Dentro da estrutura da democracia de mercado, as liberdades econômicas podem, legitimamente, ser reguladas e limitadas para promover interesses imperativos do estado liberal. (...) Diferentemente dos libertários estritos, os democratas de mercado podem se alinhar tanto aos ‘social-democratas elevados’ quanto a pensadores do liberalismo clássico, como Milton Friedman, F. A. Hayek e Richard Epstein, que defendem que o estado liberal deveria ter o poder de prover um mínimo social financiado por um sistema tributário”.

Para determinar qual deveria ser esse mínimo social, precisamos de uma teoria da justiça, e “eu [Tomasi] escolho a justiça como equidade simplesmente porque, uma vez ajustada e corrigida de acordo com os princípios da democracia de mercado, ela é a concepção de justiça liberal que considero mais convincente.”

Mas, ainda que Tomasi não seja um libertário estrito, sua posição não difere inteiramente da de Rawls, que rejeita de forma explícita como sendo inadequado o chamado “sistema de liberdade natural”? Como, então, Tomasi pode chegar a uma defesa rawlsiana da democracia de mercado?

O que Tomasi tem em mente é o seguinte. As próprias visões social-democratas de Rawls são apenas interpretações de sua teoria da justiça. Se aceitarmos os princípios de justiça de Rawls, não estamos necessariamente vinculados às opiniões de Rawls sobre como esses princípios devem ser implementados, e a porta para uma interpretação rawlsiana em termos de democracia de mercado permanece aberta. Pensar o contrário, sustenta Tomasi, é cair naquilo que ele chama de falácia ipse dixit: “No extremo, a abordagem exegética trata a justiça como equidade como um enredo na arqueologia das ideias, em vez de como um paradigma de pesquisa vivo e em crescimento”.

Para cada um dos princípios de justiça de Rawls, Tomasi oferece então uma interpretação compatível com a democracia de mercado. O primeiro princípio de Rawls especifica um conjunto de liberdades que tem prioridade léxica sobre os requisitos distributivos do segundo princípio. Rawls não inclui entre essas liberdades o direito de adquirir e manter propriedade produtiva, mas Tomasi inclui. A capacidade de empreender muitas vezes se revela uma excelente forma de desenvolver as próprias faculdades morais. Por que, então, excluí-la da lista de liberdades protegidas? Tomasi pretende que esse ponto se aplique ao que Rawls denomina de “concepção especial de justiça”, em que “as condições sociais são favoráveis à obtenção da justiça social”. Ele sustenta que, com a “prosperidade, a existência de uma liberdade econômica privada robusta é, para muitos cidadãos, condição essencial para que eles sejam donos de si mesmos”.

Tomasi oferece sua própria compreensão de outros princípios rawlsianos. Para a igualdade justa de oportunidades, ele enfatiza a necessidade de que cada pessoa disponha de uma ampla variedade de escolhas, em vez de insistir em esforços para contrabalançar os efeitos de pontos de partida desiguais. Quanto ao princípio da diferença, ele ressalta a importância de aumentar, por meio do crescimento econômico, a riqueza da classe mais desfavorecida. Para ele, não valem esforços diretos de redução das desigualdades, como, por exemplo, a tributação progressiva.

Tomasi tem pouco apreço pelos libertários estritos. Eles consideram os direitos de propriedade “absolutos”; com isso, ele parece querer dizer que tais libertários não permitiriam intervenções governamentais como a rede de proteção social ou a concessão de vouchers, que ele julga aceitáveis. Ele observa que os libertários “escolhem as liberdades econômicas para conferir um tratamento especial a elas. Mas, em vez de rebaixar o status das liberdades econômicas, os libertários as elevam acima de todas as outras. As liberdades econômicas tornam-se os direitos mais importantes de todos. De fato, libertários como Jan Narveson afirmam que liberdade é propriedade”.

Como seria de esperar, não considero as críticas de Tomasi convincentes. Se, como Narveson e Rothbard pensam, todos os direitos podem ser analisados como direitos de propriedade, como é possível concluir a partir disso que os direitos de propriedade são mais importantes do que outros direitos? Pelo contrário, a conclusão nega a premissa. Se não existem outros direitos além dos direitos de propriedade, os direitos de propriedade não podem ser mais importantes do que os direitos de propriedade. Se Tomasi quer dizer que os libertários acreditam que os direitos de propriedade, no sentido que o senso comum atribui à palavra, excedem em importância outros direitos, como as liberdades civis, isso não decorre de forma alguma da visão libertária da propriedade. Na verdade, é diretamente contrário à própria visão de Rothbard de que a autopropriedade é o direito primário.

Minha passagem favorita do livro é esta:

“Do alerta de George Washington para evitar os perigos de pactos econômicos e militares exclusivos com outros países (...) até a proposta de James Madison de uma emenda constitucional que obrigasse os líderes políticos que desejassem entrar em guerra a levantar recursos por meio de impostos correntes (em vez de esconder os custos por meio de empréstimos), os defensores de um governo limitado estiveram, há muito tempo, entre os mais fortes críticos das instituições político-militares características dos estados contemporâneos (...). A própria ideia de um grande complexo industrial-militar financiado com recursos públicos vai contra o espírito da democracia de mercado”.

Esse foi, sem dúvida, um ponto excelente, mas que se encaixa muito melhor no libertarianismo rothbardiano do que na estranha mistura de Rawls com liberalismo clássico que Tomasi nos apresentou no livro Free Market Fairness.

 

Este artigo foi originalmente publicado no Mises Institute.

 

Recomendações de leitura:

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John Rawls estava errado sobre igualdade

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Nota: as visões expressas no artigo não são necessariamente aquelas do Instituto Mises Brasil.

Sobre o autor

David Gordon

É membro sênior do Mises Institute, analisa livros recém-lançados sobre economia, política, filosofia e direito para o periódico The Mises Review, publicado desde 1995 pelo Mises Institute.

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