Inflação monetária e a reduflação dos alimentos
“A tua prata se tornou em escórias, o teu vinho se misturou com água” — Isaías 1:22
Mais de 700 anos antes de Cristo, lemos a acusação acima contra o reino do sul de Judá, feita pelo profeta Isaías. Esse princípio, ordenar pesos e medidas justas e condenar balanças desonestas, é reafirmado várias vezes ao longo das Escrituras (Levítico 19:35-36; Deuteronômio 25:13-16; Provérbios 11:1; 16:11; 20:10, 23; Oséias 12:7; Amós 8:5; Miquéias 6:10-11; Ezequiel 45:10). Parte dessa avaliação envolvia as consequências econômicas naturais do dinheiro desonesto por meio da desvalorização inflacionária e a consequente desvalorização dos bens oferecidos para venda em troca de dinheiro, ou seja, alimentos e bebidas.
O contexto dá todas as razões para acreditar que tais práticas não apenas eram generalizadas na sociedade, mas também eram permitidas e até incentivadas pelos governantes civis (Isaías 1:23). No melhor dos casos, eles se beneficiavam da corrupção e nada faziam para impedir a fraude. Essas práticas fraudulentas e desonestas tinham consequências que permeavam toda a sociedade, prejudicando especialmente os honestos, os inocentes e os vulneráveis.
Embora a inflação monetária tenha diversos efeitos econômicos, previsíveis e surpreendentes, diretos e indiretos, este artigo busca explorar os efeitos da inflação monetária sobre os alimentos. Especificamente, a moeda desvalorizada leva a alimentos desvalorizados e distorce a estrutura da produção de tal forma que opções e comportamentos são alterados.
Outros já notaram essa conexão. Isaías observou a relação entre a desvalorização fraudulenta da prata e a perda de qualidade dos produtos há cerca de 2.700 anos! Gary North, em seu comentário econômico a respeito de Isaías 1:22, escreveu:
“O versículo 22 aponta para a “escoriação” da prata. Isso poderia se referir à prata de modo geral, ou talvez estivesse limitado à unidade monetária. Em qualquer dos casos, a questão legal era fraude por engano. Aquilo que havia sido desvalorizado circulava como se fosse algo valioso. Isso produziu resultados análogos. O vinho era misturado com água. A desvalorização da prata, o metal da honestidade e do comércio, havia levado ao empobrecimento de um bem de consumo representativo. Por quê? Porque a inflação monetária se baseia na enganação. Essa enganação então se torna universal à medida que os preços sobem. Os produtores começam a cortar custos. A ilusão de produtos de alta qualidade é mantida, assim como a ilusão de uma moeda de alta qualidade é preservada. Na expressão moderna, ‘o que você vê é o que você recebe’ deixou de se aplicar. O que os homens viam não era o que recebiam. Eles sabiam disso, e foi por isso que Isaías usou a metáfora da escória. Ele sabia que entenderiam a conexão” [grifo adicionado pelo autor do artigo].
A proximidade da descrição indica um processo único, mas surge a pergunta: “O que a prata tem a ver com o vinho?” Como o dinheiro é algo que permeia toda a economia, a inflação monetária também é abrangente, afetando todo tipo de bens, serviços e escolhas. Saifedean Ammous, em The Fiat Standard: The Debt Slavery Alternative to Human Civilization, escreve (p. 111):
“O dinheiro, sendo parte de toda transação econômica, exerce um efeito penetrante sobre a maioria dos aspectos da vida… [Por exemplo, considere] duas distorções em particular: como os incentivos do sistema fiduciário (fiat) para elevar a preferência temporal afetam a produção agrícola e as escolhas de consumo alimentar, e como o financiamento governamental via moeda fiduciária facilita um papel intervencionista do governo no mercado de alimentos por meio de regulações agrícolas intervencionistas, subsídios alimentares e diretrizes dietéticas”.
Do ponto de vista praxeológico, isso faz sentido. À medida que a desvalorização ou inflação monetária permeia a estrutura de preços e de produção, surge a inflação de preços, alterando a situação econômica dos agentes humanos, beneficiando alguns e prejudicando outros. Produtores, especialmente os honestos, que também são consumidores, precisam considerar os custos-preço dos insumos daquilo que produzem e não podem simplesmente “repassar os custos aos consumidores”. São, então, forçados a enfrentar um trilema.
O produtor honesto, que reconhece estar recebendo menos com o dinheiro desvalorizado, pode:
1. vender pelos mesmos preços em troca da moeda desvalorizada, ser enganado e assumir o prejuízo; ou
2. aumentar os preços, possivelmente perder clientes e participação de mercado, e se expor ao desagrado dos consumidores e até a uma possível legislação de controle de preços.
Tentando o honesto e beneficiando o desonesto, surge uma terceira opção: desvalorizar o produto em resposta à moeda desvalorizada, mas apresentá-lo como sendo da mesma quantidade e qualidade de antes, pelo mesmo preço. (Poderíamos transformar isso em um quadrilema se adicionarmos a possibilidade de encerrar a produção). Na prática, os honestos saem em desvantagem, podendo ser até ridicularizados, caso permaneçam honestos. Portanto, há uma tendência de que os honestos sejam expulsos do mercado. Eles ou se tornam desonestos, ou deixam o mercado.
Inflação de Preços e Escolhas Alimentares
Do lado do consumidor, se simplesmente considerarmos a consequência mais óbvia da inflação monetária, a inflação de preços, não é difícil perceber como isso também afeta o consumo de alimentos em uma economia. Quando os preços dos alimentos aumentam devido à inflação monetária, os consumidores têm algumas opções: comprar menos, comprar a mesma quantidade e sacrificar em outras áreas, buscar substitutos mais baratos, adiar a compra, procurar ajuda externa, mudar para a produção doméstica, recorrer a dívidas ou usar a poupança, comprometer a nutrição etc., mas suas escolhas alimentares não podem permanecer inalteradas.
Recentemente (21 de fevereiro de 2024), um artigo com o título “It’s Been 30 Years Since Food Ate Up This Much of Your Income” trouxe o seguinte gráfico documentando os percentuais da renda dos consumidores dedicados à alimentação:
Figura 1: Percentual gasto com comida em relação à renda disponível ao longo dos anos.
Não surpreende que o aumento dos preços ao consumidor, especialmente nos supermercados, tenha sido, sem dúvida, uma questão central nas eleições presidenciais americanas de 2024. De forma direta, as pessoas sentiram as consequências da política monetária inflacionária em sua própria dieta.
Ironicamente, mesmo enquanto os preços dos alimentos pressionam os orçamentos familiares, alguns indicadores oficiais de inflação, como o núcleo do Índice de Preços ao Consumidor [CPI, na sigla em inglês], excluem completamente os alimentos, mascarando assim o efeito da inflação. Rothbard chamou isso de um truque dos “doutores das distorções econômicas” (economic spin doctors). Ele relatou como, em janeiro de 1990, quando o índice de custo de vida atingiu proporções de dois dígitos, aproximando-se dos picos inflacionários da década de 1970, a preocupação pública permaneceu amplamente contida. Por que isso aconteceu?
“(…) os doutores das distorções econômicas foram rápidos em cumprir seu papel. Veja bem, se você remove as categorias de preços que mais aumentaram, alimentos e energia, as coisas não parecem tão ruins. Os alimentos subiram 1,8 por cento em janeiro, um aumento anual de quase 22 por cento; enquanto os preços da energia subiram nada menos que 5,1 por cento, um aumento anual de mais de 61 por cento”.
Se os alimentos são excluídos, o número de inflação divulgado é menor do que aquele que as pessoas realmente experimentam em suas compras de comida. Portanto, é inescapável que a inflação afete a dieta. Inversamente, como a inflação poderia não afetar a dieta? O que é medido não muda o que as pessoas comem, mas aquilo que elas podem pagar, sim.
Acrescentando ironia à ironia, quando as consequências da inflação monetária se manifestaram em inflação de preços durante a década de 1970, particularmente nos alimentos, Richard Nixon nomeou Earl L. Butz como secretário do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos, em parte para lidar com a alta dos preços dos alimentos por meio do planejamento central.
O aumento dos preços dos alimentos, causado em grande parte pela inflação monetária desenfreada que se seguiu à quebra do padrão ouro em 1971, estava se tornando um problema político. Tentando conter os preços por meio de mais inflação, subsídios, favorecimento político e gestão burocrática, Butz disse aos agricultores: “Cresça ou saia do mercado”. Taxas de juros artificialmente baixas inundaram os agricultores com capital para aumentar a produtividade, o que, na prática, forçou a saída dos pequenos produtores e consolidou os agricultores restantes. Embora isso de fato tenha levado à queda dos preços dos alimentos, não foi o resultado de um mercado livre, e sim de uma produção gerida pelo governo e profundamente distorcida. Saifedean Ammous explica novamente (páginas. 113–114):
“À medida que os preços dos alimentos altamente nutritivos aumentam, as pessoas são inevitavelmente forçadas a substituí-los por alternativas mais baratas. À medida que esses alimentos mais baratos passam a compor uma parte maior da cesta de bens [usada no cálculo do Core CPI], o efeito da inflação acaba sendo subestimado (…).
“Ao subsidiar a produção dos alimentos mais baratos e recomendá-los aos americanos como os componentes ideais de sua dieta, a dimensão real dos aumentos de preços e da desvalorização da moeda torna-se menos evidente”.
Ao inundar o sistema alimentar com calorias baratas e subsidiadas, o governo mascara a inflação real ao mesmo tempo em que molda o comportamento do consumidor. Os alimentos artificialmente subsidiados, quando incluídos na “cesta de bens” usada no, em grande parte inútil, Índice de Preços ao Consumidor (CPI, na sigla em inglês), dão a aparência de reduzir a inflação de preços. Os americanos, no entanto, são efetivamente afastados de certas escolhas alimentares e empurrados para outras que, de outra forma, não fariam, porque alguns alimentos são taxados e outros subsidiados.
“Os aumentos de preços não geram aumentos equivalentes no consumo; eles acarretam reduções na qualidade dos bens consumidos” (p. 113). Os consumidores são levados a alternativas artificiais, mais baratas, subsidiadas e menos nutritivas. A riqueza parece estar aumentando, e de fato houve aumentos reais de riqueza graças à produção genuína, ainda que acompanhados de um crescimento artificial, mas, em grande parte, trata-se de uma farsa. Enquanto a obesidade já foi vista como um sinal de riqueza, hoje pode ser considerada exatamente o oposto: “a obesidade é, na verdade, um sinal de desnutrição”. Assim como a inflação fiduciária empobrece ao mesmo tempo em que dá a impressão de aumento de riqueza, a obesidade parece representar abundância quando, na realidade, é uma forma de desnutrição. Em outras palavras, “o seu vinho se tornou água” (Isaías 1:22).
Shrinkflation & Skimpflation
Do lado do produtor, muitos já notaram, seja de forma anedótica ou por observação sistemática, o fenômeno conhecido como shrinkflation. Ao explicar teoria monetária e inflação para alunos do ensino médio, pedi que um estudante mostrasse um pacote de salgadinhos e o segurasse para a turma (sempre havia pelo menos um). Instrui o estudante a usar dois dedos para apertar próximo ao topo do pacote e deslizá-los para baixo, revelando todo o espaço cheio de ar, até finalmente alcançar os salgadinhos. Essa era uma forma de ilustrar como a inflação afeta os produtos, especialmente os alimentos. Alguns observadores atentos têm registrado diversos exemplos.
Jeff Degner, em Inflation and the Family, obra em que ele descreve os impactos da inflação monetária sobre o casamento e a família, desenvolve esse ponto um pouco mais em uma nota de rodapé (p. 81, n.12):
“Há evidências de que os antigos também reconheciam uma conexão entre desvalorização, inflação e qualidade dos alimentos. O profeta judeu Isaías (1:22, versão King James) declarou: ‘A tua prata se tornou escória, o teu vinho misturado com água’. Se tomado literalmente, o profeta parece identificar o que economistas modernos chamariam de ‘shrinkflation’ ou a redução da qualidade dos alimentos em resposta à redução da qualidade do dinheiro, associada à desvalorização e à inflação, juntamente com a piora nos resultados de saúde e na expectativa de vida. De fato, os Estados Unidos não acompanharam o ritmo do restante dos países da OCDE em relação ao aumento da expectativa de vida, e até começaram a registrar queda nos últimos anos, situação que muitos atribuem à baixa qualidade dos produtos alimentícios. Ver Avenado e Kawachi (2014) para ligações plausíveis entre qualidade dos alimentos e outros elementos da cultura inflacionária, além de seus impactos sobre mortalidade e morbidade nos EUA (...)”.
A shrinkflation é talvez a forma mais simples e literal desse processo, quantidades menores são oferecidas pelos mesmos preços ou até preços maiores. Não apenas os preços tendem a subir, mas a própria unidade monetária literalmente compra menos. Os produtores, em resposta à desvalorização da moeda e ao aumento da inflação de preços, encontram maneiras engenhosas de reduzir o produto, apresentando-o como se fosse a mesma quantidade, para não simplesmente aceitarem ser enganados.
No que diz respeito à qualidade nutricional dos alimentos, Degner, novamente, destaca uma possível conexão entre a política monetária e a saúde reprodutiva:
“Quanto a qualquer conexão entre a realidade biológica e a expansão da oferta monetária, à primeira vista isso poderia parecer uma relação tênue. No entanto, recentemente foi sugerido que a política monetária inflacionária degrada a qualidade dos alimentos e da nutrição (Ammous, 2021), o que, por sua vez, pode impactar a saúde reprodutiva. De fato, dieta, nutrição e segurança alimentar estão entre os fatores que os especialistas em saúde chamam de ‘determinantes sociais da saúde’. Esses fatores demonstraram influenciar a fertilidade, a morbidade materna e a mortalidade, o que sugere que o papel dos aumentos de preços em questões de dieta, saúde e nascimentos não deve ser descartado como irrelevante ou trivial (Kozhimannil et al., 2019). (p. 81)”.
Empobrecimento Intelectual e o Paradigma Intervencionista
Muitos já observaram os efeitos da inflação nos preços dos alimentos sobre a saúde e o bem-estar, especialmente entre os mais vulneráveis. No entanto, ao se compreender mal a cadeia causal entre política monetária e inflação de preços, e ao não entender as consequências causais de décadas de intervenções governamentais, o problema geralmente é diagnosticado de forma equivocada, e as soluções propostas acabam sendo contraproducentes. Mesmo reconhecendo o fracasso das intervenções governamentais passadas e atuais, muitos operam dentro de um paradigma em que a única resposta é pedir por mais intervenção do governo.
Por exemplo, no artigo “How inflation is hurting the diets of low-income Americans”, lemos: “Apesar dos programas governamentais que incentivam e subsidiam alimentos saudáveis, o problema continua crescendo”. A mentalidade intervencionista chega a reconhecer as falhas do governo, enquanto “incentiva e subsidia alimentos saudáveis”, admite que “o problema continua crescendo”, mas quase inevitavelmente conclui que é necessário intensificar ainda mais a intervenção estatal para resolver a questão. O mesmo artigo continua: “Por mais que esses programas de incentivo e subsídio ajudem, a tendência de queda na alimentação saudável é generalizada. A inflação torna mais difícil, mas não impossível, comprar alimentos saudáveis. Trata-se de um problema hábitos tanto quanto de preços”. Em outras palavras, as intervenções do governo ajudam, e ao mesmo tempo que o problema continua piorando.
Outro estudo, “Food inflation and child undernutrition in low and middle income countries”, afirma: “Essas evidências fornecem uma forte justificativa para intervenções que previnam a inflação dos alimentos e mitiguem seus impactos sobre crianças vulneráveis e suas mães”. Para ser justo, os autores podem estar se referindo a “intervenções” na área da saúde, e não necessariamente intervenções governamentais, mas é raro encontrar artigos que não defendam um aumento do papel do Estado.
Economia sólida é necessária para diagnosticar corretamente o problema e para reconhecer e evitar soluções falsas baseadas em diagnósticos equivocados. E, se o leitor ainda não está convencido de que o Fed, como instituição de banco central, tem algum interesse em intervir na sua dieta, veja o seguinte tweet pré-Ação de Graças do Fed de St. Louis (pelo qual sou grato a um artigo anterior no site do Mises Institute):
Figura 2: Post da conta oficial do Federal Reserve de Saint Louis incentivando o consumo de alimentos a base de soja: “Uma porção de aves no jantar de Ação de Graças custa US$ 1,42. Uma porção à base de soja com a mesma quantidade de calorias custa 66 centavos e fornece quase o dobro de proteína”.
Este artigo foi originalmente publicado no Mises Institute.
Recomendações de leitura:
Inflação como uma força centralizadora
Um governo inchado é o maior motor da inflação
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Nota: as visões expressas no artigo não são necessariamente aquelas do Instituto Mises Brasil.
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