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A Tragédia e o Triunfo dos Campos da Morte

06/09/2025

A Tragédia e o Triunfo dos Campos da Morte

Em 1984, meu segundo ano do ensino médio, o filme The Killing Fields mudou meu mundo. Graças a uma mãe brilhante, fui criado em um lar fortemente pró-Goldwater e pró-Reagan, e já ostentava meu libertarianismo conservador de forma bastante explícita e, por vezes, até irritante. Mesmo aos 16 anos, eu era um anti-comunista profundamente comprometido. Devorei romances, obras e ensaios anti totalitários de Ray Bradbury, Aldous Huxley, George Orwell, Leon Uris, Milton Friedman, Henry Hazlitt e Robert J. Ringer. Até meu gosto musical refletia meu antitotalitarismo, já que a banda de rock Rush havia acabado de lançar seu brilhante álbum anti distópico Grace Under Pressure. Naquela época, eu estava apenas começando a conhecer William F. Buckley Jr. e seus colegas da National Review, assim como a revista Reason. E, acima de tudo, meu herói Ronald Reagan estava no auge de suas habilidades e popularidade ao desafiar a desumanidade da União Soviética.

Por mais que eu tivesse lido muito até o outono de 1984, nada me preparou, entretanto, para o brilhantismo visual e a brutalidade do filme The Killing Fields, de Roland Joffé, filme que, surpreendentemente, ganhou três Oscars, apesar de sua mensagem anticomunista. Ele retrata a história real do jornalista e fotógrafo cambojano do New York Times, Dith Pran, entre 1973 e 1979, e sua intensa e solitária luta contra os fiscais comunistas, o Khmer Vermelho. De fato, exceto por seu final verdadeiramente angustiante e um último ato um tanto confuso, The Killing Fields é praticamente um filme perfeito. Até hoje, sempre mostro aos meus alunos do segundo ano de graduação na Hillsdale College o segmento de vinte minutos sobre o gulag cambojano, para lembrá-los de que o comunismo, assim como o nazismo, foi o maior mal do século XX.

 

O Genocídio

Até onde sabemos (e os historiadores ainda se esforçam para documentar esses fatos), não houve genocídio mais intenso no século XX do que o cometido pelo Khmer Rouge. Embora os números relatados variem, o Khmer Rouge assassinou entre 25% e 47% da população cambojana, então com cerca de sete milhões de pessoas, nos três anos em que esteve no poder. Como o próprio Khmer Vermelho declarou abertamente: “Tudo de que precisamos para construir nosso país é de um milhão de bons revolucionários. Não mais do que isso. E preferimos matar dez amigos a permitir que um inimigo viva”.

Sem possuir prisões oficialmente, todo o território do Camboja transformou-se em um gulag, um campo de extermínio, entre 1975 e 1979. Um sobrevivente cambojano relatou: “Não havia um único momento livre nas vinte e quatro horas do dia. A vida diária era dividida da seguinte forma: doze horas para trabalho físico, duas horas para comer, três horas para descanso e educação, e sete horas para dormir. Todos nós vivíamos em um enorme campo de concentração. Não havia justiça. A Angkar [que significava simplesmente ‘A Organização’; esse era o nome que o Khmer Vermelho adotou para si] regulava cada momento de nossas vidas”.

 

O que Mao tentou realizar em décadas, o Khmer Vermelho tentou realizar em dias.

Como afirmou o demógrafo R. J. Rummel em sua obra-prima de 1994, Death by Government [1]: “Esses comunistas transformaram o Camboja em um gulag de quase sete milhões de pessoas, cada uma prisioneira e escrava”. Rummel lutou para encontrar uma denominação que descrevesse o mal do Camboja comunista: “O mais próximo que consigo chegar para descrever as condições e o sofrimento do povo cambojano sob o Khmer Rouge é ‘Estado infernal’”.

Alguns grupos dentro do Camboja foram particularmente visados. O Khmer Rouge provavelmente assassinou 86% dos monges budistas, metade dos muçulmanos cambojanos, metade dos católicos cambojanos, 89% dos médicos e 75% dos professores. Qualquer pessoa que tivesse recebido algum tipo de educação pré-revolucionária, especialmente em francês ou inglês, era sistematicamente executada. Tanto os católicos quanto os muçulmanos eram considerados anti-Khmer.

Muitos dos assassinados sistematicamente eram, na verdade, membros do próprio Khmer Rouge, um comunista se voltando contra outro. Entre 1976 e 1977, por exemplo, os expurgos internos foram tão frequentes que muitas aldeias viram a liderança mudar até seis vezes nesse período de dois anos. O perverso líder do regime, Pol Pot, via isso como parte essencial do sucesso do Khmer Vermelho. Ele afirmou em uma entrevista: “Nosso maior feito é ter derrotado todos os complôs e conspirações, as sabotagens, as tentativas de golpe e todos os outros atos de agressão levados a cabo por inimigos de todo tipo hostis ao regime”. O Khmer Rouge acusava seus próprios membros de serem agentes da CIA ou de serem “vietnamitas em corpos khmer”. Em 1978, o jornal do partido declarava: “Há inimigos em toda parte dentro de nossas fileiras, no centro, no quartel-general, nas zonas e até nas aldeias.” Como o grande conservador Russell Kirk frequentemente nos lembrava, revolucionários têm o hábito de devorar seus próprios filhos.

E os assassinatos, a própria criação dos Campos da Morte, não se deram pelo método nazista em massa das câmaras de gás ou fornos, mas, com mais frequência, eram executados com instrumentos simples e diretos. Como relata o Livro Negro do Comunismo [2], cerca de 64% das vítimas do Khmer Rouge morreram devido a golpes na cabeça, asfixia, degola ou enforcamento. Os executores buscavam economizar balas e, ao mesmo tempo, satisfazer seus “instintos sádicos”. Na verdade, poucas coisas na vida poderiam igualar tamanha brutalidade.

O Khmer Vermelho nutria um ódio especial por mulheres grávidas, submetendo-as, e também seus fetos, a atrocidades que não deveriam sequer entrar em nossas palavras mais íntimas ou em nossas imaginações mais sombrias.

O hino nacional do Khmer Vermelho, “A Gloriosa Vitória de 17 de Abril”, que comemorava a tomada da capital Phnom Penh, é especialmente revelador:

“Sangue vermelho vivo que cobre cidades e planícies

De Kampuchea, nossa pátria-mãe,

Sublime sangue de trabalhadores e camponeses,

Sublime sangue de homens e mulheres combatentes revolucionários!

O sangue, transformando-se em ódio implacável

E em resolução de luta,

Em 17 de abril, sob a bandeira da revolução,

Liberta-nos da escravidão!

Viva, viva, Glorioso 17 de abril,

Vitória gloriosa, de significado maior

Que a era de Angkor Wat”.

De forma até surpreendente para os ocidentais, muitos dos soldados do Khmer Vermelho eram pré-adolescentes e adolescentes muito jovens, com idades entre 12 e 15 anos. Eram camponeses arrancados de seus pais e ensinados apenas à brutalidade pelo regime. Chegaram inclusive a terem que experimentar crueldades contra animais, para dessensibilizá-los à violência contra seres humanos. Quando as tropas avançaram sobre Phnom Penh, o repórter do New York Times, Sydney Schanberg, observou: “A maioria dos soldados eram adolescentes, o que é surpreendente. Estavam universalmente sombrios, robotizados, brutais. As armas pendiam deles como frutas das árvores: granadas, pistolas, rifles, foguetes”.

 

Pol Pot e o Khmer Vermelho

O líder do Khmer Vermelho era o enigmático e excêntrico Pol Pot, nome revolucionário do cambojano Saloth Sar. Sar havia sido criado em uma família proprietária de terras de classe média alta, com fortes conexões com o rei do Camboja. Não sendo um estudante particularmente aplicado, foi para a França na década de 1940. Embora em certo momento tivesse apreciado os escritos de Thomas Jefferson (especialmente sua aversão às áreas urbanas), acabou por se encantar pelo existencialismo de Jean-Paul Sartre e pelo marxismo do Partido Comunista Francês durante seu período na França.

Sar e outros 19 cambojanos acabaram formando o Khmer Vermelho: intelectuais políticos insatisfeitos e radicalizados no pós-Segunda Guerra Mundial. O renomado jornalista e depois historiador inglês Paul Johnson observou [3]: “Embora esse grupo de ideólogos pregasse as virtudes da vida rural, nenhum deles jamais havia se envolvido de fato em trabalho manual ou possuía qualquer experiência na criação de riqueza”. Para Johnson, os líderes do Khmer Vermelho representavam o imenso perigo de ideólogos fanáticos em posições de liderança política.

Além de Sartre e dos marxistas, o Khmer Rouge também se inspirava na Revolução Francesa e nos escritos de Jean-Jacques Rousseau e Frantz Fanon. Somando combustível ao seu frenesi violento, os membros do Khmer Vermelho eram ainda intensamente nacionalistas e racistas, acreditando que os povos de pele mais clara da Indochina, especialmente os vietnamitas, eram inferiores. Rousseau, Robespierre, Fanon, Sartre e um racismo extremo compuseram a mistura horrenda que constituiu o pensamento do Khmer Vermelho.

Eles também idolatravam o ditador Mao. De fato, Pol Pot estava convencido de que seria, para o século XXI, aquilo que Stálin e Mao haviam sido para o século XX. Acreditava que ele mesmo seria a própria manifestação e definição de “revolução”. Chegou até a acreditar que todos os futuros revolucionários marxistas, em todo o mundo, falariam khmer.

Fundado como parte do Partido Comunista da Indochina em 1951, o movimento comunista cambojano (o Khmer Vermelho) declarou, mais ou menos, sua independência no início da década de 1960 (reescrevendo a história para afirmar que o comunismo cambojano havia se originado com eles) e travou guerra contra o reino cambojano ao longo de toda aquela década. Eventualmente, a monarquia cambojana foi derrubada por um golpe militar, possivelmente apoiado pela CIA.

Os Estados Unidos se envolveram profundamente nas desventuras do país. Como parte da expansão da Guerra do Vietnã, o exército norte-americano lançou quase 540 mil toneladas de explosivos sobre o já fragilizado Camboja. Tudo isso foi feito sem informar o povo americano, uma violação da lei e da Constituição Americana.

Embora nunca se possa logicamente culpar as atrocidades do Khmer Vermelho pela intervenção dos Estados Unidos na região, seria igualmente um erro descartar o que os EUA fizeram ali nos anos que antecederam a crise de Watergate. Um país destruído por divisões internas acabou se radicalizando contra o Ocidente, levando muitos que, de outra forma, teriam permanecido neutros a ingressarem nas fileiras do Khmer Vermelho.

Os Estados Unidos encerraram seus bombardeios em massa em 1973 e abandonaram sua embaixada no Camboja em 12 de abril de 1975. O Khmer Rouge conquistou Phnom Penh cinco dias depois. Schanberg escreveu:

“Esse surrealismo chega ao fim na manhã de 17 de abril, uma quinta-feira, quando os novos governantes marcham para dentro da cidade. Na noite de 16 de abril, estava claro que o colapso da capital era apenas questão de horas. Enormes incêndios das batalhas que cercavam os limites da cidade tingiam o céu noturno de laranja. Refugiados aos milhares invadiam o coração da cidade, trazendo seus bois de arado, seus poucos pertences e seu pânico descontrolado. Soldados desertores do governo estavam entre eles. Pran se virou para mim e disse: ‘Acabou, acabou’”.

No exato momento em que entraram na cidade, sustentando sua ideologia de que todas as áreas urbanas eram como cânceres, o Khmer Vermelho ordenou a evacuação imediata de toda a população para o campo. Sem qualquer piedade, o regime esvaziou todas as áreas urbanas, chegando a obrigar até hospitais, junto com feridos graves e moribundos, a evacuarem.

O que Mao tentou realizar ao longo de décadas, o Khmer Vermelho buscou fazer em questão de dias.

 

O Filme

Uma das inúmeras pessoas envolvidas nessa insanidade foi Dith Pran, jornalista e fotógrafo cambojano do New York Times. Ele havia evacuado sua família para os Estados Unidos dias antes da tomada do poder pelo Khmer Vermelho e poderia ter fugido também, mas, em vez disso, ele e seu parceiro do NYT, Sydney Schanberg, decidiram arriscar e tentar resistir ao avanço do regime.

Acabou sendo um erro horrendo, e Dith Pran, evacuado para o interior junto com todos os outros cambojanos, passou de 1975 a 1979 simplesmente tentando sobreviver. Durante esses quatro anos, precisou esconder o fato de que trabalhava para o New York Times, de que sabia inglês e francês e de que era uma pessoa instruída. Enquanto isso, Schanberg, embora atormentado por suas decisões, especialmente no que dizia respeito a Pran, estava de volta aos Estados Unidos, relatando os acontecimentos da segurança dos EUA.

Pran viveu um verdadeiro inferno sob o regime do Khmer Vermelho. Homem de profundo budismo, somente sua fé inabalável e sua inteligência aguçada lhe permitiram sobreviver.

A melhor parte de The Killing Fields, uma cena de vinte minutos passada no interior, sob domínio do Khmer Vermelho, revela praticamente tudo sobre o comunismo e seus horrores inerentes.

Ao longo dessa parte do filme, em um estilo que lembra os filmes noir da década de 1940, Pran narra sua história para Sydney, enquanto as cenas revelam não apenas o trabalho miserável e exaustivo, mas também uma liturgia comunista, bem como um campo de reeducação em que crianças apagam dos quadros-negros as imagens de seus próprios pais.

“Sydney, penso em você com frequência e também em minha família. Eles nos dizem que Deus está morto e que o partido, que chamam de “Angkor”, nos proverá de tudo. Dizem que Angkor identificou e proclamou a existência de uma nova e terrível doença, uma doença da memória, diagnosticada como pensar demais no Camboja pré-revolucionário. Dizem que estamos cercados de inimigos. O inimigo está dentro de nós. Ninguém é confiável. Devemos ser como bois, sem outro pensamento senão o do partido. Sem outro amor senão pelo Angkor. O povo passa fome, mas não devemos cultivar alimentos. Devemos honrar as crianças camaradas, cujas mentes não estão corrompidas pelo passado.

Sydney, Angkor diz que aqueles que foram culpados de uma vida fácil nos anos da grande luta, e que não se importaram com o sofrimento dos camponeses, devem confessar, porque agora é o ano zero, e tudo deve recomeçar do nada.

Estou cheio de medo, Sydney. Não devo demonstrar conhecimento algum, nem de francês nem de inglês. Não devo ter passado, Sydney. Este é o ano zero, e nada existiu antes. O vento sussurra medo e ódio. A guerra matou o amor, Sydney. E aqueles que confessam ao Angkor desaparecem, e ninguém ousa perguntar para onde vão. Aqui, apenas os silenciosos sobrevivem”.

No início de outubro de 1979, Pran conseguiu escapar para a Tailândia e logo se reencontrou com Schanberg. Os dois retornaram aos Estados Unidos e continuaram a trabalhar para o New York Times. Pran morreu em 2008, e Schanberg em 2016. Ambos faleceram de causas naturais.

O ator que interpretou Dith Pran, o Dr. Haing Ngor, havia passado por quase a mesma perseguição e fuga de seu país natal, além de vivenciar a morte de sua esposa grávida durante o percurso de fuga para alcançar a liberdade. Ironicamente, Haing Ngor escapou do Camboja comunista apenas para ser assaltado e assassinado na entrada da garagem de sua casa, em Chinatown, Los Angeles, em 1996. Até hoje permanece incerto se o assassinato foi uma vingança planejada por leais ao Khmer Vermelho ou simplesmente o resultado de um assalto de rua.

Como um filme de guerra anti-guerra, os elementos visuais e sonoros de The Killing Fields contam muito. Embora este tenha sido o primeiro grande filme de Roland Joffé, ele conseguiu retratar com beleza tanto as relações humanas quanto a paisagem. Em particular, Joffé capturou as cores quentes e úmidas do sudeste asiático, sem nunca negligenciar a sujeira, a fumaça e a poeira da guerra, nem a imundície, o sangue e a lama do gulag que se espalhava por todo o país. A versão em Blu-Ray de 30º aniversário revela as profundidades, nuances e camadas da arte de Joffé de uma forma que o VHS e o DVD simplesmente não conseguiam transmitir. O melhor de tudo, entretanto, é que o Blu-Ray inclui o comentário do próprio Joffé sobre o filme. Nele, ele discute seus pontos fortes, assim como suas fragilidades (na verdade, apenas uma falha grave, encerrar o filme com o diabólico hino de John Lennon, Imagine). Joffé também revela o segredo do sucesso duradouro e, agora, atemporal do filme como obra de arte: não importa o pano de fundo, The Killing Fields é, na verdade, um filme sobre duas coisas, a condição humana e a essência do amor.

 

Este artigo foi originalmente publicado no Law & Liberty.

 

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Nota: as visões expressas no artigo não são necessariamente aquelas do Instituto Mises Brasil.

Sobre o autor

Bradley J. Birzer

É titular da Cátedra Russell Amos Kirk em Estudos Americanos e professor de História no Hillsdale College. Autor ou editor de nove livros, Birzer está atualmente escrevendo uma história da Declaração de Independência para seu 250º aniversário, bem como uma biografia intelectual do sociólogo Robert Nisbet. Ele é cofundador e editor sênior do The Imaginative Conservative.

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