Relembrando os crimes de estados totalitários
Nota da edição:
O presente artigo é uma seleção adaptada do capítulo 5 do livro Great Wars and Great Leaders: A Libertarian Rebuttal [“Grandes Guerras e Grandes Líderes: Uma Crítica Libertária”, em tradução livre], que reúne um conjunto de textos escritos pelo historiador libertário Ralph Raico. O trecho do capítulo começa com a menção de uma crítica feita pelo historiador e escritor americano Alfred de Zayas em relação a como um outro autor, Daniel Jonah Goldhagen, tratou de forma coletivista a relação entre os alemães e o antissemitismo durante o regime nazista em seu livro Hitler’s Willing Executioners: Ordinary Germans and the Holocaust [“Os carrascos voluntários de Hitler: alemães comuns e o Holocausto”, em tradução livre].
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Sempre que atitudes ou atos antissemitas são mencionados, observa de Zayas, Goldhagen se refere aos “alemães”, e não aos “nazistas”, nem mesmo a “muitos alemães”, sem oferecer qualquer justificativa para isso; trata-se, simplesmente, de um artifício polêmico. Ele deixa de mencionar fatos amplamente conhecidos, como o de que todos os envolvidos na execução dos judeus estavam sujeitos à Ordem nº 1 do Führer, além de ordens especiais de Himmler, que determinavam o mais absoluto sigilo, sob pena de morte. Portanto, não deveria causar espanto que, por exemplo, o ex-chanceler Helmut Schmidt, que foi oficial da Luftwaffe durante a guerra, tenha declarado jamais ter ouvido ou sabido nada sobre o extermínio dos judeus. Ou que a condessa Marion Dönhoff, editora do jornal liberal Die Zeit, tenha afirmado que, apesar de seus vínculos com diversas figuras-chave durante o conflito, não teve conhecimento dos assassinatos em massa nos campos de concentração, e que “ouvi o nome ‘Auschwitz’ pela primeira vez após a guerra”. Goldhagen simplesmente ignora obras acadêmicas consagradas que contradizem sua tese. Ele alega, por exemplo, que o povo alemão apoiou e participou da Kristallnacht, a “Noite dos Cristais”, em 1938, marcada por assassinatos em massa de judeus, destruição de sinagogas e depredação de comércios por bandidos nazistas, como se fosse uma espécie de festival nacional (Volksfest). No entanto, Sarah Gordon, em sua obra de referência Hitler, Germans, and the “Jewish Question”, escreveu:
“Houve uma enxurrada de relatos indicando desaprovação pública da Kristallnacht (...) [Quaisquer que tenham sido as motivações] o que não se pode negar é que a maioria da população de fato desaprovou (...) Após a Kristallnacht, os nazistas passaram a esconder deliberadamente suas ações contra os judeus”.
Nenhum dos críticos acadêmicos causou maior impacto junto ao público que assistiu aos debates nos Estados Unidos ou durante a turnê de Goldhagen pela Alemanha no final do último verão, muito menos nas vendas do livro. De todo modo, a maioria desses críticos, com exceção de de Zayas, ignorou a função simbólica desempenhada por obras como a de Goldhagen. Enquanto ele acusa os alemães de serem patologicamente antissemitas, alguns de seus críticos respondem que, na verdade, toda a cristandade, ou até o próprio cristianismo, estaria implicado no genocídio judaico. Com isso, mantém-se o foco quase exclusivo sobre um único e suposto “grande crime” do passado recente, senão de toda a história da humanidade, em detrimento de todos os demais. Em especial, os crimes cometidos por regimes comunistas acabam sendo injustamente negligenciados.
Há cerca de uma década, Ernst Nolte, então professor da Universidade Livre de Berlim, incendiou o debate conhecido como Historikerstreit (a "disputa dos historiadores") e tornou-se alvo de uma campanha de difamação liderada pelo filósofo Jürgen Habermas, ao levantar a seguinte pergunta provocadora:
“O Arquipélago Gulag não precedeu Auschwitz? O ‘assassinato de classe’ cometido pelos bolcheviques não foi o pressuposto lógico e factual do ‘assassinato racial’ dos nacional-socialistas?”
Essas ainda são boas perguntas. Na verdade, os crimes do stalinismo, e do maoísmo, embora reconhecidos, costumam ser minimizados e jamais alcançaram algo sequer próximo da repercussão midiática em torno do massacre nazista dos judeus. Nos Estados Unidos, uma pessoa que acompanha os meios de comunicação pode se deparar com menções ao Holocausto praticamente todos os dias da vida. No entanto, quantas pessoas já ouviram falar de Kolyma, onde mais pessoas foram executadas do que o número oficialmente registrado em Auschwitz? As estimativas mais recentes sobre as vítimas do regime maoísta na China sugerem um total que pode chegar à casa das dezenas de milhões. Esses fatos ao menos causam algum impacto na consciência coletiva?
Além disso, há um aspecto das atrocidades stalinistas que é bastante pertinente ao chamado “Debate Goldhagen”. Em sua história da União Soviética, Utopia in Power, Mikhail Heller e Aleksandr M. Nekrich abordam a questão de se o povo alemão tinha conhecimento completo dos crimes nazistas. Eles não tomam posição a respeito. Mas, sobre a guerra assassina dos soviéticos contra o campesinato, incluindo a fome induzida na Ucrânia (o Holodomor), eles escrevem:
“Não há dúvida de que os habitantes das cidades soviéticas sabiam do massacre no campo. Na verdade, ninguém tentou escondê-lo. Nas estações de trem, os citadinos podiam ver milhares de mulheres e crianças que haviam fugido das aldeias e estavam morrendo de fome. Kulaks, ‘deskulakizados’ e ‘cúmplices dos kulaks’ morriam do mesmo modo. Simplesmente não eram considerados humanos”.
Não há nenhum clamor para que o povo russo busque expiação, e ninguém fala sobre sua “culpa eterna”. Nem é preciso dizer que os crimes do comunismo, na Rússia, na China e em outros lugares, jamais são atribuídos ao internacionalismo ou ao igualitarismo, como o são os do nazismo ao nacionalismo e ao racismo.
Apontar os crimes comunistas não tem como objetivo “banalizar” a destruição do povo judeu europeu, nem poderia fazê-lo. O massacre dos judeus foi uma das piores tragédias já ocorridas. Mas mesmo que se suponha que tenha sido a pior de todas, seria tão absurdo imaginar algum tipo de equilíbrio, em que os assassinatos em massa cometidos por comunistas fossem mencionados ao menos uma vez para cada dez vezes (ou cem?) em que o Holocausto é evocado? Talvez, também, se devemos ter museus públicos financiados pelo Estado para homenagear vítimas estrangeiras de regimes estrangeiros, pudesse se considerar a criação de um memorial às vítimas do comunismo, não necessariamente no National Mall de Washington D.C., é claro, mas quem sabe em alguma região mais periférica da cidade, com aluguel mais acessível?
Se os crimes do comunismo já são relativamente pouco mencionados, o que dizer dos crimes cometidos contra os próprios alemães? Uma das heranças mais perniciosas deixadas por Hitler, Stalin e Mao é a ideia de que qualquer líder político responsável por menos de, digamos, três ou quatro milhões de mortes acaba escapando impune. Isso dificilmente parece justo, e nem sempre foi assim. De fato, embora o leitor possa achar isso inacreditável, houve um tempo em que os conservadores norte-americanos lideravam os esforços para denunciar atrocidades cometidas pelos Aliados, especialmente pelos próprios Estados Unidos, contra os alemães. Historiadores e jornalistas de renome, como William Henry Chamberlin, em America’s Second Crusade [“A Segunda Cruzada Americana”, em tradução livre], e Freda Utley, em The High Cost of Vengeance [“O Alto Custo da Vingança”, em tradução livre], criticaram duramente os responsáveis pelo que Utley chamou de “nossos crimes contra a humanidade” – os homens que ordenaram os bombardeios de terror contra cidades alemãs, planejaram a expulsão de cerca de doze milhões de alemães de suas terras ancestrais no Leste (durante a qual cerca de dois milhões morreram, ver Nemesis at Potsdam, de de Zayas), e conspiraram para executar a “solução final da questão alemã” por meio do Plano Morgenthau. Utley chegou a denunciar os falsos “julgamentos de Dachau” contra soldados e civis alemães nos primeiros anos da ocupação aliada, detalhando o uso de métodos “dignos da GPU, da Gestapo e da SS” para arrancar confissões. Ela insistia que os mesmos padrões éticos deveriam ser aplicados tanto aos vencedores quanto aos vencidos. Caso contrário, estaríamos declarando que “Hitler tinha razão ao acreditar que ‘a força faz o direito’”. Ambos os livros foram publicados por Henry Regnery, um dos últimos grandes nomes da velha direita americana (Old Right), cuja editora se tornou um bastião do revisionismo histórico do pós-guerra, publicando obras como o clássico Back Door to War, de Charles Callan Tansill.
Manter o período nazista constantemente em evidência atende aos interesses ideológicos de diversos grupos influentes. Que isso beneficia a causa sionista, ao menos como muitos sionistas a veem, é algo evidente. Também é extremamente útil para os defensores de uma América globalista. Hitler, e a “necessidade incontestável” de uma grande cruzada para destruí-lo, são os principais argumentos usados contra qualquer forma de “isolacionismo” norte-americano, seja no passado ou no presente. Qualquer sugestão de que o aliado soviético nessa cruzada teria cometido crimes ainda mais graves do que a Alemanha nazista, ou de que o próprio governo dos Estados Unidos se envolveu em atos bárbaros durante e após a guerra, precisa ser minimizada ou silenciada, sob pena de tornar o quadro histórico demasiadamente complexo.
A obsessão com a culpa interminável dos alemães também serve aos propósitos daqueles que anseiam pelo fim do Estado-nação e da identidade nacional, ao menos no Ocidente. Como argumenta o filósofo Robert Maurer, essa postura incute nos alemães uma “consciência permanentemente culpada e os impede de desenvolver qualquer senso normal de identidade nacional”. Dessa forma, essa obsessão funciona como um modelo para a superação cosmopolita de todo nacionalismo, objetivo que muitos hoje perseguem. Ernst Nolte sugeriu recentemente outra estratégia com a mesma finalidade. Nada é mais evidente do que o fato de estarmos no meio de uma vasta campanha de deslegitimação da civilização ocidental. Nessa campanha, escreve Nolte, o feminismo radical se une ao anti ocidentalismo do Terceiro Mundo e ao multiculturalismo dentro das próprias nações ocidentais “para instrumentalizar ao máximo o ‘assassinato de seis milhões de judeus pelos alemães’, e colocá-lo dentro de um contexto mais amplo de genocídios cometidos pelo Ocidente predador e conquistador, de forma que o ‘homo hitlerensis’ apareça, por fim, como apenas um caso especial do ‘homo occidentalis’”. O objetivo, segundo ele, é “atingir a homogeneidade cultural e linguística dos Estados nacionais, conquistada ao longo de séculos, e abrir as portas a uma imigração em massa”, de modo que, ao fim, as nações do Ocidente deixem de existir.
Parece haver dinâmicas culturais em ação que tendem a intensificar, e não a atenuar, essa fixação atual. Michael Wolffsohn, judeu nascido em Israel e professor de história moderna na Alemanha, alertou que o judaísmo está sendo esvaziado de seu conteúdo religioso e passando a ser associado exclusivamente às tribulações históricas dos judeus, sobretudo ao Holocausto. Mais de um comentarista já observou que, à medida que o Ocidente perde qualquer senso de moralidade ancorado na razão, na tradição ou na fé, mas ainda sente a necessidade de uma referência moral segura, essa referência acaba sendo encontrada naquele único mal reconhecido como “absoluto”: o Holocausto. Se tais afirmações forem verdadeiras, então a crescente secularização do judaísmo e o desarranjo moral de nossa cultura continuarão a vitimizar os alemães, e, por extensão, todos os povos do Ocidente.
Este artigo foi originalmente publicado no Mises Institute.
Recomendações de leitura:
Por que o nazismo era socialismo e por que o socialismo é totalitário
Por que o comunismo não é tão odiado quanto o nazismo, embora tenha matado muito mais?
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Nota: as visões expressas no artigo não são necessariamente aquelas do Instituto Mises Brasil.
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