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Economia

Socialismo e custos de oportunidade

Os fundamentos do problema do cálculo

14/08/2025

Socialismo e custos de oportunidade

Os fundamentos do problema do cálculo

O debate sobre a possibilidade de uma economia socialista, como pontua Barbieri (2013), é um dos eventos mais interessantes das ciências sociais no século XX. Evocando os limites da razão e se situando no limiar entre a utopia e a realidade, aqueles que se interessam pelo debate costumam ler o debate a partir de suas paixões. Por um lado, leitores do lado “capitalista” costumam encontrar no debate uma bala de prata contra seus oponentes que defendem o ideário socialista. Por outro, os defensores do lado “socialista” procuram alternativas argumentativas cujo objetivo é negar a própria existência do problema ou, quando reconhecem sua relevância, procuram soluções alternativas que respondam o problema (apesar de, inevitavelmente, acabarem por se desvirtuar de seus objetivos originais e, em algum nível, da própria metodologia materialista-histórica que defendem).

Este é o primeiro texto de dois sobre alguns problemas relativos a interpretação do debate detectados pelo autor. O objetivo deste texto não é o de adicionar algo de novo ao debate, ou de trazer alguma nova perspectiva sobre ele. O objetivo é um tanto mais simples, porém não menos importante para elucidar seus fundamentos e, como consequência, erros interpretativos comuns seja pelos defensores seja pelos acusadores. Neste primeiro momento analiso o problema de custos de oportunidade, enquanto no segundo texto irei discorrer sobre os múltiplos erros relativos a “materialidade histórica” e o caráter historicamente contingente das economias de mercado.

Em última análise, o ponto inicial trago por Mises (1922) não é estritamente sobre a desejabilidade de uma economia socialista, e a discussão sobre sua possibilidade é derivativa de um conceito fundamental que o autor retira dos próprios fundamentos da ciência econômica: as implicações da existência de custos de oportunidade para a análise de sistemas econômicos comparados. Ao não reconhecer as implicações de reconhecer(!) a existência e natureza de custos de oportunidade, opositores e defensores do socialismo correm o risco de não entender o que os autores austríacos querem dizer com a impossibilidade de um sistema econômico socialista.

Para recapitular, o argumento básico fornecido por Mises é de que, para uma economia moderna onde se utilizam bens de capital heterogêneo, a possibilidade de se tomar escolhas de caráter econômico é sustentada na existência de um mercado onde fatores de produção são trocados livremente por empresários que são proprietários destes ativos. Nota-se que o argumento toca em um ponto central da proposta de uma economia socialista: a inexistência de um mercado onde meios de produção são trocados por dinheiro por capitalistas que detém propriedade privada dos meios de produção.

Em diversos debates pela internet os opositores do socialismo vindos da direita argumentam contra influenciadores ou debatedores citando a possibilidade de que, em uma economia socialista, o governo vá tomar sua casa, carro, etc. Em experiências históricas, muitas vezes não havia propriedade plena[1] desses bens (por exemplo, não se podia vendê-los ou alugá-los livremente). Mas o ponto central do cálculo está na propriedade dos meios de produção: é ela que viabiliza mercados de fatores e, portanto, preços que permitem o cálculo econômico, pois a sua ausência impede a existência de mercados onde fatores de produção são valorados, trocados e precificados.

Recapitulando: ausente propriedade dos meios de produção, estará ausente um mercado onde estes meios de produção são valorados, trocados e precificados. Afinal, porque isso seria importante? Teriam mercados qualquer função relevante? Para os autores austríacos, inexistentes os mercados, a própria complexidade das economias modernas é comprometida. Sem que existam mercados onde fatores de produção são trocados, mercados através dos quais emergem preços para tais fatores, não se poderá tomar decisões econômicas sobre os usos alternativos destes ativos. Retornando a um ponto anterior: perde-se a habilidade de mensurar o custo de oportunidade do recurso – mas afinal: o que é o custo de oportunidade, e o que é uma decisão econômica?

Diferente do que se supõe no debate público, a economia moderna (pelo menos desde 1870 – isto é o quão “moderna” esta noção é) não é uma ciência da riqueza, da produção material. Com as contribuições de autores como o britânico William Jevons, o francês Leon Walras e o austríaco Carl Menger a economia se torna uma ciência da escolha. A economia se torna uma ciência que estuda a tomada de decisão sob condições de escassez, onde a existência de múltiplas e potencialmente infinitas vontades se confrontam com a escassez de meios para satisfazê-las.

O principal foco da teoria econômica é a explicação de preços de mercado, mas é um erro assumir que este foco (derivado de sua importância empírica) a reduz a tal fenômeno. Em última análise, desde que decidimos morder a maçã e deixamos o Éden, precisamos economizar, e economizar é, em seu sentido mais fundamental, a alocação destes bens escassos a seus usos mais demandados. Neste sentido, uma decisão econômica não é uma que “maximiza lucro financeiro” – uma decisão econômica é aquela que, dentre os diferentes usos alternativos de um bem ou serviço, o aloca a um uso alternativo (ou seja, um uso entre os diferentes usos possíveis) que possibilita a satisfação das demandas mais urgentes (ou seja, dentre os diferentes desejos que o bem ou serviço em questão pode satisfazer, ele é alocado aquele desejo mais desejado).

A esta altura o conceito de custo de oportunidade vem a tona: o custo de oportunidade de um recurso é a oportunidade perdida (o uso, ou desejo não atendido) ao alocar um recurso em algum uso alternativo. Em um exemplo mais concreto: se um estudante enfrenta a decisão de ir a praia ou estudar para uma prova, qualquer escolha que ele tomar terá um custo de oportunidade. Ir a praia tem como custo de oportunidade uma nota ruim, enquanto o estudo tem como custo de oportunidade uma pele não bronzeada. A escolha econômica é aquela que satisfaz, entre os desejos do estudante (se ele prefere mais bronzeamento a notas, ou mais notas a bronzeamento) aquele que lhe é mais demandado.

Em relação a decisões do consumidor, o problema de tomar a decisão mais econômica pode ser potencialmente resolvido em uma economia socialista. Dado que consumidores não teriam como comprar e vender bens e serviços de maneira descentralizada em uma economia de mercado – tal função, a de contabilizar, listar, descobrir preferências restaria a autoridade central. Mesmo que se reconheçam limites tecnológicos ou de complexidade a tal processo (quanto tempo demoraria para descobrir o que + de 200 milhões de brasileiros querem 365 dias por ano?), Mises escolhe assumir que tal problema está ou resolvido, ou os consumidores teriam vouchers que poderiam trocar livremente por bens no armazém comunal central, ou como problematiza Hayek (1944), o planejador poderia impor sua vontade sobre a sociedade, delimitando quanta comida, cigarros, café, travesseiros, etc, cada camarada poderia ter.

O problema se situa em outra camada, uma onde a eficiência econômica requer a existência de mercados: o problema da decisão de produção. Nota-se que a eficência relevante aqui não é a tecnológica. Não é uma questão de, entre as diferentes fórmulas ou blueprints de como produzir um carro, qual delas usa menos material, utiliza o material mais resistente, ou o torna mais rápido, seguro, etc. É uma questão de decidir entre produzir mais carros ou mais motos, mais Ibuprofeno ou mais Livros, mais hospitais ou mais casas, etc. Uma implicação é que pode ser economicamente ineficiente produzir um dado bem com máxima eficiência técnica simplesmente pelo fato de que os insumos necessários podem ter usos alternativos mais valorizados em outros processos de produção. Para dar um exemplo, não produziríamos trilhos de trem com platina, mesmo que fosse o material mais técnico para sua produção, se outras alternativas mais urgentes para a platina estivessem disponíveis.

O desafio que se mostra para os defensores de uma economia socialista, ou seja, uma economia onde inexiste um mercado para fatores de produção, é o de responder como o planejador central poderia ter recurso a algum mecanismo de cálculo que permita a comparação entre diferentes usos alternativos de bens de tal maneira a permitir a decisão econômica que minimiza os custos de oportunidade dos recursos disponíveis para a comunidade. Como os meios de produção são heterogêneos, a ausência de preços que permitam a comparação da rentabilidade esperada de diferentes investimentos impossibilita a realização do cálculo econômico que, a todo momento em economias de mercado reais, permite a tomada de decisão empresarial descentralizada. Afinal: quantos hospitais valem um trilho de trem em termos puramente naturais? Qual o coeficiente de divisão de valor social de arroz em comparação com peito de frango? Maçãs podem ser divididas por laranjas?

Em economias de mercado reais, como demonstra Mises (1949), Hayek (1948), e Kirzner (1973), tais decisões são tomadas por empreendedores que, de maneira descentralizada, trocam meios de produção em mercados para fatores onde, ao assumir propriedade de ativos, eles podem alocar tais meios de produção para aqueles usos que, dada a demanda esperada pelos consumidores, é capaz de atender o uso alternativo mais demandado para aquele bem. Para tais decisões empreendedores tem como o recurso o cálculo econômico: o uso de contabilidade para comparar a rentabilidade futurada dos diferentes usos possíveis de bens e serviços, e a determinação de sucesso ou fracasso das alocações passadas destes bens através do lucro e prejuízo monetário. Note-se que não se assume de maneira alguma que empresários sempre estão certos em suas decisões, mas sim que economias de mercado possuem um mecanismo interno de correção de erros empresariais (e de identificação de acertos) na forma de lucro e prejuízo. O prejuízo financeiro demonstra ao empresário que os bens sobre sua propriedade estão alocados a um uso (entre os usos possíveis) que não atende os desejos mais urgentes dos consumidores. O lucro financeiro, em contrapartida, demonstra que entre os diferentes usos possíveis daquele bem, o empresário descobriu aquela alocação que atender aos desejos mais urgentes dos consumidores!

Em última instância, o problema do cálculo econômico apresentado por Mises não é uma mera crítica política ao socialismo, mas um apontamento sobre a inviabilidade de um processo de decisão econômica racional sem a mediação de preços de mercado para os fatores de produção. A ausência de tais preços elimina a possibilidade de mensuração consistente dos custos de oportunidade, inviabilizando a escolha entre usos alternativos dos recursos de forma a minimizar desperdícios e maximizar a satisfação das demandas mais urgentes. É um argumento ancorado nos fundamentos microeconômicos da teoria da escolha, e não em preferências ideológicas por um ou outro sistema econômico. O debate do cálculo é o resultado teórico do reconhecimento de um problema que todo e qualquer sistema econômica há de resolver: se não habitamos o paraíso, deve existir algum mecanismo através do qual, dentre os diferentes usos possíveis de bens ou serviços, estes são alocados a seus usos mais demandados! Resumindo...

Decisão econômica requer comparar usos alternativos.

Em bens de capital heterogêneos, essa comparação precisa de preços de fatores.

Sem propriedade dos meios de produção → sem mercados de fatores → sem preços.

Sem preços → não se mensuram custos de oportunidade na produção → problema do cálculo.

Essa perspectiva recoloca o debate em um patamar mais técnico: não se trata de afirmar que agentes públicos são necessariamente incompetentes ou que planejadores centrais agiriam de má-fé, mas de reconhecer que a coordenação de usos alternativos de bens de capital heterogêneos exige um mecanismo de comparação que, em economias de mercado, emerge dos preços formados em mercados competitivos. Sem esse mecanismo, as decisões de produção ficam privadas de uma métrica comum que permita avaliar se os recursos estão sendo alocados de forma socialmente mais vantajosa. Do ponto de vista teórico, o cerne do problema é que, mesmo que fosse possível atender às demandas de consumo de forma centralizada, a esfera produtiva continuaria carente de um critério objetivo para ponderar as infinitas alternativas de uso de insumos. A eficiência técnica, isoladamente, não resolve a questão: produzir algo com máxima eficiência física não implica que essa seja a melhor destinação dos insumos utilizados, se tais insumos poderiam gerar mais valor em outro processo produtivo. Sem um sistema de preços que reflita a escassez relativa e a valoração social dos fatores, não há como operacionalizar essa comparação.

Por fim, reconhecer o problema do cálculo econômico não equivale a afirmar que economias de mercado sejam perfeitas ou imunes a erros. Ao contrário, o ponto central é que mercados oferecem um mecanismo adaptativo – o lucro e o prejuízo – que, embora imperfeito, sinaliza continuamente quando uma alocação de recursos atende ou não às preferências mais urgentes dos consumidores. É essa capacidade de aprendizado descentralizado, fundamentada na mensuração de custos de oportunidade, que os críticos do socialismo argumentam não encontrar equivalente funcional em sistemas de planejamento centralizado. Se me permito roubar de Lenin a problemática – digamos que os camaradas já tenham chegado ao poder –, resta o seguinte problema, uma vez no poder, e com o problema econômico a sua frente, o camarada ainda terá de responder: o que fazer?

 

Nota:

[1] Um elemento central da propriedade de um ativo é a possibilidade de alienar este bem em troca de algum outro – algo proibido em economias socialistas reais – podia-se viver em uma residência mas não vendê-la, aluga-lá, deixa-la ausente, etc

 

Referências:

Barbieri, Fabio. (2013). A História do Debate do Cálculo Socialista. Instituto Ludwig Von Mises Brasil.

Hayek, Friedrich A. (1948). Individualism and Economic Order. Chicago University Press.

Kirzner, Israel M. (1973). Competition and Entrepreneurship. Chicago University Press.

Mises, Ludwig Von. (2010). Ação Humana: Um Tratado de Economia. Instituto Ludwig von Mises Brasil.

Mises, Ludwig Von. (1981). Socialism: An Economic and Sociological Analysis. Indianapolis: Liberty Fund.

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Nota: as visões expressas no artigo não são necessariamente aquelas do Instituto Mises Brasil.

Sobre o autor

Luan Valério

É candidato a PhD em Empreendedorismo na Baylor University.

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