John Stuart Mill e o novo liberalismo
Muito da confusão que prevalece no estudo histórico do liberalismo pode ser atribuída a John Stuart Mill, que ocupa uma posição extremamente superestimada na concepção de liberalismo adotada pelos povos de língua inglesa[i]. Esse “santo do racionalismo” é responsável por distorções importantes na doutrina liberal em diversos aspectos[ii]. Na economia, a opinião de Mill de que “o princípio da liberdade individual não está envolvido na doutrina do livre comércio” forneceu munição para o arsenal protecionista, além de aceitar e até mesmo elaborar argumentos socialistas (Mill 1977: p. 293; Mises 1978a: p. 195; Raeder 2002: p. 357 n. 76 e p. 374 n. 23; e especialmente Rothbard 1995, vol. 2: pp. 277–85)[iii].
Mill rejeitou a noção liberal da harmonia de longo prazo dos interesses de todas as classes sociais, incluindo empresários e trabalhadores, sob o argumento de que “dizer que eles têm o mesmo interesse (...) é o mesmo que dizer que tanto faz, para o interesse de uma pessoa, se uma quantia de dinheiro pertence a ela ou a outra pessoa” (Ashcraft 1989: p. 114). Seguir esse raciocínio estranho e míope revelaria uma enorme quantidade de conflitos de interesse até então insuspeitados na sociedade (por exemplo, entre quaisquer duas pessoas que se cruzassem na rua). De fato, ao argumentar que o anticapitalismo é uma das marcas do liberalismo, Alan Ryan (1993: p. 302) invoca ninguém menos que John Stuart Mill, que escreveu (1965: p. 209): “A maioria dos trabalhadores, neste e na maioria dos outros países, tem tão pouca escolha de ocupação e liberdade de locomoção (...) quanto poderiam ter (...) em qualquer sistema que não fosse a escravidão propriamente dita” — isso numa época em que “servos” ingleses e de outros países migravam aos milhões para as cidades e até mesmo para terras estrangeiras[iv].
Nos assuntos internacionais, Mill repudiou o princípio liberal da não intervenção em guerras estrangeiras, cujo expoente mais incisivo foi Richard Cobden (1973). Enquanto Cobden temia que tais envolvimentos comprometessem a liberdade interna, Mill ofereceu aos intervencionistas o que se tornaria um argumento favorito — que um país forte e livre como a Grã-Bretanha tem a obrigação moral de ajudar povos que lutam por sua liberdade, caso estejam ameaçados por potências externas[v]. O fato de que uma política constante de intervenção provavelmente comprometeria a liberdade doméstica não foi um problema que Mill, ou aqueles que seguiram seus passos, se preocuparam em abordar.
O pior de tudo foi a deformação do próprio conceito de liberdade por parte de Mill. A liberdade, ao que parece, é uma condição ameaçada não apenas pela agressão física por parte do estado ou de outras instituições ou indivíduos. Ao contrário, a “sociedade” frequentemente representa perigos ainda maiores para a liberdade individual. Ela alcança isso por meio da “tirania da opinião e do sentimento predominantes”, a tendência de “impor, por outros meios que não penalidades civis, suas próprias ideias e práticas como regras de conduta àqueles que delas discordam”, de “obrigar todos os caracteres a se moldarem segundo o seu próprio modelo” (Mill, 1977, p. 220). A verdadeira liberdade requer “autonomia”, pois adotar “as tradições ou costumes de outras pessoas” é simplesmente engajar-se em uma imitação “simiesca”[vi].
Onde outros veem homens e mulheres escolhendo objetivos estabelecidos para eles por instituições cuja autoridade eles aceitam livremente, Mill percebe a extinção da liberdade. Em uma ilustração marcante e absolutamente absurda, o santo do racionalismo escreve: “Um jesuíta individual é, no mais alto grau de humilhação, um escravo de sua ordem” (Mill, 1977, p. 308). Pode-se imaginar o que se supõe que deva resultar disso. Devemos formar associações abolicionistas para emancipar os “escravos” voluntários da Companhia de Jesus? Como deveríamos proceder para selecionar nosso John Brown para liderar o ataque aos “poços de escravos” das Universidades de Fordham e Georgetown? Pergunta-se com que direito Mill e sua alter ego Harriet Taylor poderiam ter se imaginado autorizados a legislar sobre o status de membros de ordens católicas ou ortodoxas, de judeus ortodoxos e muçulmanos devotos, ou de quaisquer outros crentes[vii].
Seu comentário sobre os jesuítas ilustra uma faceta de Mill raramente notada - ele era, nas palavras de Maurice Cowling, “um dos moralistas do século XIX mais censores”. Ele constantemente julgava os hábitos, atitudes, preferências e padrões morais de um grande número de pessoas sobre as quais nada sabia. Como observa Cowling com ironia, “intolerância e preconceito não são necessariamente as melhores descrições de opiniões que o determinismo comtiano estigmatizou como ultrapassadas” (Cowling, 1963, pp. 143–144).
Em uma obra publicada postumamente, Joseph Hamburger (1999) examina o “lado sombrio” de John Stuart Mill. Aqui, Hamburger, que nos conta ter por muito tempo sustentado a visão convencional de Mill como um consumado defensor da liberdade individual, analisa o livro Sobre a Liberdade, mas também seus outros escritos e cartas, bem como os relatos de seus amigos íntimos. Sua conclusão é que a liberdade de opinião defendida em Sobre a Liberdade fazia parte, em grande medida, da grande estratégia de Mill — demolir a fé religiosa, especialmente o Cristianismo, e os costumes recebidos, a caminho de erigir uma ordem social baseada na “religião da humanidade”. A verdadeira individualidade seria encarnada no futuro “homem milliano”, sonhado por Mill e Harriet Taylor, um ser em quem o egoísmo e a ganância seriam substituídos pelo altruísmo e pelo constante cultivo das faculdades mais elevadas.
“Há um século, a controvérsia se intensificou sobre o verdadeiro significado do liberalismo”.
O revisionismo pioneiro de Cowling e Hamburger foi confirmado por Linda C. Raeder. Em sua obra John Stuart Mill and the Religion of Humanity (2002), Raeder examina minuciosamente todas as principais obras de Mill e outros materiais relevantes para desvendar o padrão por trás do “ecletismo assumido” de Mill e de seu fácil uso do “idioma da tradição liberal que ele conhecia tão bem”. Esse padrão, segundo Raeder, está na influência precoce e permanente sobre Mill dos filósofos Henri de Saint-Simon e Auguste Comte. A ideia de progresso sustentada por esses filósofos positivistas era o avanço constante rumo a uma “religião da humanidade” terrena, da qual toda a humanidade participaria instintivamente. As “aspirações de Mill para os seres humanos não se voltavam para o florescimento de sua individualidade única, mas para a conformidade com seu ideal pessoal de valores e serviço”. Ao final, Raeder conclui (p. 338) que Mill não foi um “verdadeiro amigo da liberdade”.
A fatídica vinculação do liberalismo a uma postura adversária em relação à religião tradicional, aos costumes herdados e às normas sociais deve-se mais a John Stuart Mill do que a qualquer outro pensador. Infelizmente, isso se tornou um padrão. Em um exemplo típico, Owen Chadwick, professor emérito de História Eclesiástica na Universidade de Cambridge, escreve (1975, p. 22):
“Um liberal era alguém que queria mais liberdade, isto é, mais isenção de restrições; fossem essas restrições exercidas pela polícia, pela lei, pela pressão social ou por uma ortodoxia de opinião que os homens desafiavam por sua própria conta e risco. (...) O liberal acreditava que os homens precisavam de muito mais espaço para agir e pensar do que lhes era permitido pelas leis e convenções estabelecidas na sociedade europeia”.
Note como, nesta declaração, nenhuma distinção é feita entre a coerção estatal, de um lado, e a pressão social, a opinião ortodoxa e as convenções, de outro. John Dunn afirma (1979, p. 29):
“Se o valor disposicional central dos liberais é a tolerância [sic], seu valor político central é talvez uma antipatia fundamental contra a autoridade em qualquer de suas formas. (...) Disposicionalmente, o liberalismo tem pouca consideração pelo passado”.
E assim se vão Macaulay, Thierry, Lecky, Acton e os outros grandes historiadores liberais do século XIX. Descrições como as de Chadwick e Dunn expressam muito mais a mentalidade “antinomiana”[viii] dos acadêmicos ocidentais contemporâneos do que o liberalismo em seu contexto histórico.
A visão de Mill tende a apagar a distinção, bastante crítica, entre “enfrentar a desaprovação social e enfrentar a prisão” (Burke 1994: p. 30)[ix], e leva à oposição do liberalismo contra valores e arranjos tradicionais inocentes e não coercitivos, especialmente os de cunho religioso. Além disso, acaba forjando uma aliança ofensiva entre o liberalismo e o estado, ainda que contra as intenções de Mill, pois é difícil imaginar como se poderia extirpar normas tradicionais sem o uso maciço do poder político. Autores contemporâneos como Steven Lukes, comprometidos com o projeto milliano de impor a “autonomia”, não hesitam em advogar por esse caminho, aparentemente sem perceber suas implicações totalitárias[x].
Não se discute que o significado popular do termo liberal mudou drasticamente ao longo do tempo. É uma história bem conhecida como, por volta de 1900, nos países de língua inglesa e em outros lugares, o termo foi capturado por escritores que eram essencialmente social-democratas. Joseph Schumpeter (1954: p. 394) observou ironicamente que os inimigos do sistema de livre mercado lhe prestaram um elogio involuntário ao aplicar o nome liberal à sua própria doutrina, historicamente o oposto daquilo que o liberalismo representou desde o início.
Há mais de um século, o debate sobre o verdadeiro significado do liberalismo tem sido intenso (Meadowcroft 1996b: p. 2). Stephen Holmes (1988: p. 101) zomba da disputa, considerando-a nada mais do que uma questão de “direito de se gabar”. No entanto, isso não o impede de se juntar a outros do grupo ao qual Schumpeter se referia, na tentativa de garantir o rótulo para si. Há uma verdade profunda na proposição de Thomas Szasz (1973: p. 20): “No reino animal, a regra é comer ou ser comido; no reino humano, é definir ou ser definido”. Isso nunca é mais evidente do que no “reino político”.
Como se deu essa transformação monumental do termo liberal — o que Paul Gottfried (1999: p. 29) chama de “um roubo semântico”?
“A fatídica vinculação do liberalismo a uma postura adversária em relação à religião tradicional, aos costumes herdados e às normas sociais deve-se mais a John Stuart Mill do que a qualquer outro pensador”. Essa é a interpretação convencional — liberais, desde o século XVIII, caracteristicamente acreditavam no laissez-faire. A partir das últimas décadas do século XIX, no entanto, pensadores britânicos como T.H. Green e L.T. Hobhouse (e seus equivalentes nos Estados Unidos, Alemanha e outros países) perceberam que o laissez-faire era totalmente inadequado às condições da sociedade moderna. Muitas vezes inspirados por John Stuart Mill, nas reverentes palavras de Hobhouse (1964: p. 63): “Os ensinamentos de Mill nos aproximam do coração do liberalismo”, eles se propuseram a dar ao liberalismo uma forma mais atualizada. Como escreveu um expositor dessa visão convencional:
“O valor central do indivíduo emancipado, do homem sendo, tanto quanto possível, seu próprio soberano, não mudou; o que mudou foi o entendimento desse valor e os meios para alcançá-lo” (Smith 1968: p. 280).[xi]
Em especial, o estado, que os liberais antigos temiam como inimigo da liberdade individual, passou a ser visto como um instrumento poderoso para promovê-la de maneiras essenciais. O velho liberalismo deu lugar ao novo.
A primeira coisa a ser destacada é o propósito político por trás da mudança semântica: facilitar o caminho para a ampliação revolucionária da atuação estatal (que, em última instância, tornou-se, em princípio, ilimitada). A necessidade gritante de tal ampliação, contudo, baseava-se em uma teoria altamente questionável, e ainda em vigor. Trata-se da ideia de que o “velho” liberalismo do laissez-faire teria se tornado obsoleto devido a transformações profundas na sociedade. Os pioneiros do “novo liberalismo” e seus sucessores fundamentaram suas alegações no suposto poder avassalador das empresas sobre consumidores e trabalhadores. No entanto, apesar de toda a propaganda, tal poder não pode ser demonstrado — nem empiricamente, nem teoricamente (Rothbard 1970: pp. 168–73; Hutt 1954; Armentano 1982; Reynolds 1984: pp. 56–68; DiLorenzo e High, 1988).
Além disso, e de forma decisiva, a justificativa padrão para falar de um “novo liberalismo” é falha do ponto de vista analítico. Afinal, o objetivo de alcançar o “indivíduo emancipado” não pode ser exclusivo do liberalismo. Outras ideologias, entre elas o anarquismo comunista e muitas vertentes do socialismo, compartilham esse mesmo fim.
Considere-se, por exemplo, esta declaração de Eduard Bernstein, o fundador do socialismo revisionista (1909: p. 129):
“O desenvolvimento e a proteção da personalidade livre é o objetivo de todas as medidas socialistas, até mesmo daquelas que superficialmente parecem coercitivas. Um exame mais atento sempre revelará que se trata de uma coerção que aumenta a soma de liberdade na sociedade, que concede mais liberdade, e a um grupo mais amplo, do que aquela que retira”[xii].
Como isso difere da perspectiva dos “novos liberais” dos últimos cem anos ou mais?[xiii] O que distingue o liberalismo das ideologias concorrentes é justamente seu programa substantivo, os meios que defende: propriedade privada, economia de mercado e a minimização do poder do estado e das instituições sustentadas pelo estado[xiv].
Nos países anglófonos, aqueles que em qualquer outro lugar seriam identificados diretamente como social-democratas ou socialistas democráticos evitam reconhecer seu verdadeiro nome. É difícil evitar a conclusão de que isso se deve essencialmente à conveniência política. Por alguma razão, rótulos que sugerem socialismo não têm sido populares em países de herança inglesa (cf. Gottfried 1999: p. 9).
Esse fato político marcante era claro para Edward Bellamy, autor do clássico socialista Looking Backward. Em 1888, em uma carta a William Dean Howells, Bellamy ponderou sobre como chamar sua doutrina. Ele rejeitou o termo “socialista”. Era uma palavra que ele “nunca conseguiu engolir direito”, pois era estrangeira “em si e igualmente estrangeira em todas as suas sugestões”. “Seja lá o que reformadores alemães e franceses escolham chamar a si mesmos, socialista não é um bom nome para um partido ter sucesso na América”, confidenciou a Howells (Schiffman 1958: pp. 370–71). Bellamy escolheu, em vez disso, o nome “nacionalista”. Outros, pelos mesmos motivos, preferiram o rótulo “liberal”.
A apropriação do termo liberal pelos social-democratas foi extremamente bem-sucedida, levando alguns liberais do tipo laissez-faire a tenderem a se descrever como individualistas (Raico 1997). De modo curioso, o próximo passo foi socialistas como John Dewey tentarem capturar esse termo também. Segundo Dewey, havia um “velho individualismo” anterior à era das grandes corporações e da ciência social moderna; esse tipo deveria agora ser substituído por um “novo individualismo” (Dewey 1930).
Um dos produtos desse “novo individualismo” seria “um conselho coordenador e diretivo no qual capitães da indústria e das finanças se reuniriam com representantes dos trabalhadores e funcionários públicos para planejar a regulamentação” da economia. Embora isso fosse, de maneira evidente, uma réplica do estado corporativo que Mussolini estava erguendo na Itália, Dewey optou por ignorar esse paralelo. O centro de poder que ele propunha teria um viés voluntarista e, portanto, adequadamente americano, enquanto os Estados Unidos se lançariam de maneira construtiva “no caminho que a Rússia Soviética está trilhando” de forma tão deploravelmente destrutiva (Dewey 1930: p. 118)[xv]. Assim, depois de o conceito de liberalismo ser transformado para excluir os defensores da economia de mercado e da propriedade privada, agora o individualismo também deveria ser redefinido, com o mesmo propósito. É quase como se socialistas como Dewey estivessem simplesmente tentando excluir os defensores da livre iniciativa da existência, e do debate, por completo[xvi].
Notas:
[i] A elevação de Mill ao status de pensador liberal modelo também tendeu a reforçar a busca por uma base filosófica subjacente (no sentido mais restrito) no liberalismo. Essa base costuma ser levada a incluir uma epistemologia empirista e uma ética utilitarista. No entanto, muitas tradições filosóficas conflitantes - desde o aristotelismo e o tomismo até o kantianismo, o empirismo britânico e outros - coexistem na história do liberalismo para que isso seja confiável. Cf. Bedeschi 1990: pp. 1-2.
[ii] O desvio de Mill em relação ao liberalismo autêntico se manifesta em suas diferenças com Wilhelm von Humboldt, embora, de acordo com Mill, Humboldt tenha sido uma das principais inspirações de Sobre a Liberdade, que traz uma epígrafe de Limits of State Action, desse último. Veja Valls 1999, que, no entanto, considera Mill o liberal mais realista.
[iii] Henry Sidgwick concluiu que, nas edições posteriores de seus Princípios de Economia Política, Mill era “completamente socialista em seu ideal de melhoria social definitiva”. Richard Cobden sustentou que o argumento de Mill em favor da proteção das “indústrias nascentes” “superava todo o bem que poderia ter sido causado por seus outros escritos”. Dicey 1963: p. 429 e n. 2.
[iv] Ryan distorce um pouco a declaração de Mill ao omitir a qualificação “qualquer sistema que não fosse a escravidão”. Quanto aos pontos de vista maduros de Mill, um resumo feito por um simpatizante famoso e caloroso parece justo: Ele passou a ansiar por uma organização cooperativa da sociedade, na qual um homem aprenderia a “cavar e tecer para seu país”, como agora está preparado para lutar por ele, e na qual os produtos excedentes da indústria seriam distribuídos entre os produtores. No meio da vida, a cooperação voluntária lhe parecia o melhor meio para esse fim, mas, no final, ele reconheceu que sua mudança de opinião era tal que, no geral, o colocava entre os socialistas. (Hobhouse 1964: p. 62) É possível ver o que Murray Rothbard tinha em mente em sua referência herética a Mill como “um homem de mente de lã de papa” (1995c 2: p. 277).
[v] David Manning (1976: p. 93) afirma categoricamente que “em meados do século XIX, o liberalismo estava tão firmemente comprometido com o apoio internacional à autodeterminação nacional quanto com o livre comércio internacional”. Previsivelmente, sua evidência vem de Mill. A afirmação de Manning ignora a Escola de Manchester (e muitas outras), cuja influência sobre o pensamento de política externa se estendeu até o século XX.
[vi] Veja a crítica astuta de Loren Lomasky sobre o ideal de “autonomia”, amado pelos filósofos profissionais (1987: pp. 42-45, pp. 247-50), por exemplo, “a defesa da autonomia é tipicamente acompanhada pelo desprezo pela real [autonomia]. (...) Quem nasce em uma família, nação e religião específicas não é sobrecarregado com uma âncora que restringe seu domínio de escolha, mas é o beneficiário de uma herança de um número gerenciável de perspectivas para a formação de uma vida que valha a pena”.
[vii] Raeder (2002: pp. 324-35) faz bom uso da longa resenha da Autobiografia de Mill feita por Henry Reeve. Reeve, que conheceu Mill a maior parte de sua vida, foi editor da Edinburgh Review e tradutor de Democracia na América, de Tocqueville. De acordo com Reeve, um dos resultados da conhecida educação peculiar e isolada de Mill e da posterior evitação geral de relações sociais por parte dele e de Taylor foi o fato de Mill ser “totalmente ignorante” da vida e da sociedade inglesas. Reeve acrescentou: “Mill nunca viveu no que pode ser chamado de sociedade. (...) Em sua vida posterior, ele teve algo parecido com a vida de um profeta, cercado de admiradores. (...) A humanidade em si era para ele uma abstração e não uma realidade. Ele não sabia nada sobre o mundo”.
[viii] O termo foi usado em relação aos liberais “coletivistas” por Edward Shils (1989: pp. 12-4).
[ix] Veja a discussão convincente de Burke (1994: 28-30), em que ele critica a tendência de Mill de “borrar a linha divisória entre a força física e outros tipos de pressão”. Veja também Norman Barry (1996: p. 50), que se refere ao “tipo de inconformismo irracional e deliberado recomendado por John Stuart Mill. (...) Sob condições de não restrição, os indivíduos são os criadores de suas próprias vidas, quer as conduzam ou não como agentes totalmente autônomos”.
[x] Veja Lukes 1973: pp. 154-55, onde o autor escreve sobre a necessidade de o governo “assumir um papel cada vez mais ativo na formação e no controle do ambiente natural e social para que a igualdade e a liberdade sejam aprimoradas”. Uma das áreas em que a verdadeira liberdade deve ser aprimorada é a religião, pois a crença religiosa, afirma Lukes, “não é compatível com o pleno desenvolvimento da consciência que os indivíduos têm de si mesmos, de sua situação e de seus poderes humanos”. Ele concorda com Marx que a “abolição da religião como felicidade ilusória dos homens é uma exigência para sua felicidade real”, etc. O governo que deve realizar essa engenharia social, insiste Lukes, deve ser “democrático e representativo”. Aqui Lukes se depara com o que provou ser um grande problema para seus predecessores na engenharia social, entre eles Robespierre e Lênin - onde um governo verdadeiramente democrático e representativo poderia obter a autorização para transformar as pessoas retrógradas sobre as quais pretende operar?
[xi] Essa frase foi extraída do verbete de David G. Smith sobre liberalismo na The International Encyclopedia of the Social Sciences. É uma pena que um tópico tão importante tenha sido deixado para Smith, cujo tratamento é muitas vezes irremediavelmente confuso; por exemplo, ele afirma que Ludwig von Mises não pode ser considerado um liberal porque era muito “extremo” ao deixar “o indivíduo à mercê da natureza, da sociedade, do grupo e do poder econômico”, mas rotula J.-B. Say e Bastiat como “economistas liberais” (Smith 1968: p. 277, 280).
[xii] Cf. Pierre Angel, 1961, especialmente pp. 7, 9, 287, 332, 382-87, 411-15 e 420-33. Bernstein rejeitava os conceitos econômicos centrais do marxismo, bem como a propriedade estatal, e estava resignado com a existência contínua e indefinida da ordem capitalista. No entanto, ele insistia que ela deveria evoluir para um capitalismo “democratizado”, com uma legislação “social” em expansão (ele considerava o “estado social” de Weimar um bom começo). O revisionismo de Bernstein acabou absorvendo o socialismo alemão e, para todos os fins práticos, o socialismo ocidental, com exceção daqueles que ficaram conhecidos como comunistas.
[xiii] Veja também Lukes 1973: p. 12, em que o autor cita Jean Jaurès para afirmar que “o socialismo é a conclusão lógica do individualismo”, no sentido de que ele realiza os fins individualistas por meios mais apropriados à era moderna. Lukes concorda, afirmando que “a única maneira de realizar os valores do individualismo é por meio de uma forma humana de socialismo”. Devemos ser gratos a ele por, pelo menos, manter o individualismo (nesse contexto, o equivalente ao liberalismo político e econômico) e o socialismo conceitualmente distintos.
[xiv] Cf. R.W. Davis (1995: pp. vii-viii), em seu prefácio à distinta série The Making of Modern Freedom: “Usamos liberdade no sentido tradicional e restrito de liberdade civil e política - liberdade de religião, liberdade de expressão e reunião, liberdade do indivíduo contra a autoridade arbitrária e caprichosa sobre pessoas e propriedades, liberdade de produzir e trocar bens e serviços, e a liberdade de participar do processo político.” Davis, diretor do Center for the History of Freedom da Washington University, patrocinador da série, acrescenta que essa “ideia moderna e conceitualmente distinta de liberdade” deve ser nitidamente diferenciada dos “apelos ilimitados de liberdade contra a carência e liberdade contra o medo” das Quatro Liberdades de Franklin Roosevelt.
[xv] Um ano depois, Rexford Tugwell, do “Brain Trust” de Roosevelt, escreveu no The New Republic que “o interesse dos liberais entre nós nas instituições da nova Rússia dos soviéticos criou um amplo interesse popular em ‘planejamento’”. (Gottfried 1999: p. 66).
[xvi] Cf. Gottfried 1999: p. 13: “Quando Dewey decidiu caracterizar suas reformas sociais propostas como ‘liberais’, ele já havia experimentado ‘progressistas’, ‘corporativas’ e ‘orgânicas’.”
Este artigo foi originalmente publicado no Mises Institute.
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Nota: as visões expressas no artigo não são necessariamente aquelas do Instituto Mises Brasil.
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