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Filosofia

O lado sombrio de Mill

John Stuart Mill e a Religião da Humanidade

05/05/2025

O lado sombrio de Mill

John Stuart Mill e a Religião da Humanidade

Nota da edição:

Este artigo é uma resenha do livro John Stuart Mill and the Religion of Humanity [John Stuart Mill e a Religião da Humanidade, em tradução livre] de Linda C. Raeder.

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A maioria das pessoas considera John Stuart Mill como um dos grandes liberais clássicos do século XIX. Embora Mill tenha feito concessões desnecessárias ao socialismo, ele não teria defendido, no livro Sobre a Liberdade, a liberdade pessoal de forma intransigente, seguindo seu grande predecessor alemão Wilhelm von Humboldt? Linda Raeder apresenta um forte desafio a essa visão convencional. Como Maurice Cowling e Joseph Hamburger, por quem ela foi bastante influenciada, Raeder vê Mill principalmente como um propagandista ansioso para substituir o Cristianismo por uma Religião da Humanidade, guiada por intelectuais como ele próprio[i].

Raeder identifica a oposição ao Cristianismo no centro da ética de Mill. Como todos sabem, Mill era utilitarista; mas nossa autora levanta uma questão penetrante. O que exatamente tornava o utilitarismo de Mill distinto das versões anteriores da teoria? Perspectivas que analisavam a moralidade de acordo com o que torna os seres humanos felizes, ela observa, estão longe de ser exclusividade de Bentham e Mill. Muito pelo contrário, teólogos como William Paley defendiam exatamente essa posição.

"Até bem avançada a década de 1830, o principal representante da visão utilitarista na Inglaterra não era Bentham, mas William Paley, o conservador clérigo anglicano e reconhecido rival de Bentham. (...) Ambos os pensadores postulavam a ‘maior felicidade do maior número’ como o fim último da ação moral. Ambos identificavam o bem com o que é prazeroso ou benéfico, sendo ‘benéfico’ aquilo que produz felicidade, e ‘felicidade’ o excesso de prazer sobre a dor" (p. 25).

A moralidade teológica de Paley resolvia um problema que desconcertava os utilitaristas seculares. Por que uma pessoa deveria se preocupar com a felicidade geral, em vez de se preocupar exclusivamente com a sua própria? Paley tinha uma resposta pronta. Deus organizou as coisas de modo que o indivíduo sempre encontraria em seu próprio interesse promover a maior felicidade do maior número.

Mas será que a alegação de Paley não é obviamente falsa? Suponha que você tivesse a oportunidade de roubar 1 milhão de dólares, sem qualquer risco de ser descoberto. Certamente, nesse caso, seu dever moral de não roubar entraria em conflito com o que lhe seria benéfico, considerando algumas suposições plausíveis.

Paley discorda: ele sustenta que argumentar dessa forma é adotar uma posição míope. O sistema de recompensas e punições de Deus garante que o ladrão aja contra seus próprios interesses, como descobrirá para seu prejuízo após a morte. É exatamente nesse ponto que Mill rompe com os moralistas teológicos. Na visão dele, esperanças e temores relativos à vida após a morte não deveriam entrar em nossos cálculos de consequências[ii].

Raeder apresenta uma excelente argumentação de que a ética de Mill é resolutamente secular; mas o que isso tem a ver com o liberalismo clássico? Ela pode considerar equivocada a oposição de Mill ao Cristianismo, mas por que isso a levaria a questionar sua dedicação à liberdade?

A resposta a essa pergunta nos conduz ao cerne da tese de Raeder. Mill não mantinha apenas como opinião privada que as doutrinas religiosas dominantes de seu tempo eram falsas. Muito pelo contrário, ele queria que suas próprias visões prevalecessem entre o público.

Mas mais uma vez nossa pergunta ressurge: por que esse desejo entraria em conflito com o liberalismo clássico? Discussões abertas sobre questões essenciais como a religião parecem estar no cerne de uma perspectiva libertária. Raeder não afirma o contrário, mas novamente tem uma contra-argumentação pronta.

Mill não queria apenas o debate aberto sobre a religião.

"A lição que [Auguste] Comte e depois Mill tiraram da autoridade contemporânea da ciência foi a necessidade de estabelecer um método pelo qual os filósofos pudessem alcançar a unanimidade em relação às verdades morais e políticas. Uma vez que tal método fosse elaborado e aceito, os resultados obtidos por seu intermédio deveriam conquistar a aceitação unânime entre os especialistas. A unanimidade deles, por sua vez, garantiria que as massas (...) depositassem na nova autoridade espiritual uma confiança tão inabalável quanto aquela que têm nas autoridades científicas. O poder espiritual ao qual todos se submetem como autoridade suprema em questões morais e políticas triunfaria assim" (p. 79).

Em seu esforço para provar que Mill favorecia uma ditadura intelectual exercida por uma elite, Raeder emprega um estratagema engenhoso. Ela tenta vincular Mill o mais estreitamente possível a Comte, universalmente reconhecido como inimigo da liberdade. Se Mill seguiu Comte, isso não bastaria para tornar duvidosas suas credenciais de liberal clássico?

Aqui nossa autora se depara com um obstáculo. Ninguém duvida do entusiasmo inicial de Mill por Comte, mas ele não teria repudiado, em sua vida posterior, a política autoritária de Comte? De fato, chegou a descrever os minuciosos planos de Comte para uma sociedade hierárquica como "liberticidas".

Para Raeder, a crítica de Mill a Comte não alterou o acordo fundamental entre os dois pensadores. Em Auguste Comte and Positivism, Mill afirmou que Comte foi o primeiro a enunciar "o verdadeiro ideal moral e social do Trabalho". O ideal em questão dificilmente soa libertário: "Enquanto os trabalhadores e empregadores não realizarem o trabalho da indústria com o espírito com que os soldados realizam o de um exército, a indústria jamais será moralizada e a vida militar continuará (...) sendo a principal escola da cooperação moral" (p. 334). Comte acreditava que os trabalhadores deveriam considerar-se "funcionários públicos"; Mill via nessa ideia "grande beleza e grandeza" (p. 334).

Será que Raeder superou adequadamente o obstáculo à sua tese? Poder-se-ia objetar que suas citações não são suficientes. Certamente, aqui e em outros momentos, Mill mostra-se favorável ao socialismo; mas isso já sabíamos desde o início. A questão em debate é se, apesar de suas simpatias coletivistas na economia, Mill pode ser considerado um liberal clássico em matéria política. É claro que, se Mill pensava que as liberdades civis poderiam ser consistentemente combinadas com o socialismo, ele se enganava gravemente; mas talvez sustentasse exatamente essa crença equivocada.

A resposta de Raeder, mais uma vez, é enfatizar a simpatia de Mill por todo o escopo da filosofia de Comte. As passagens fervorosas em defesa da liberdade no livro Sobre a Liberdade tinham um propósito pragmático.

"Sugerimos que Sobre a Liberdade deve ser entendido como um dos instrumentos pelos quais Mill buscou realizar seu antigo propósito religioso: minar o Cristianismo e instituir a Religião da Humanidade. (...) Mill não desejava enfraquecer a opinião pública coercitiva em geral, mas apenas aquelas opiniões e sanções que incorporavam a crença religiosa tradicional" (p. 261).

Para avaliar a ousada sugestão de Raeder de que o verdadeiro significado do livro Sobre a Liberdade está oculto sob sua superfície, gostaria de fazer duas perguntas: Raeder está certa ao afirmar que Mill permaneceu durante toda a sua vida um defensor convicto de Comte? E o desejo de Mill de promover uma Religião da Humanidade deve nos levar a ver sua defesa da liberdade como insincera?

Raeder apoia sua leitura comtista de Mill com uma análise detalhada de seus principais ensaios sobre religião; mas a obra Theism de Mill, publicada somente após sua morte, não apoia totalmente sua interpretação. É claro que ela reconhece que Mill, nessa obra, defendeu uma versão do argumento do design para a existência de Deus, mas deixa de observar as implicações anticomtistas desse fato. De acordo com Comte, explicar a natureza por meio de poderes pessoais reflete um estágio primitivo do pensamento humano. O estágio final e positivista do pensamento renuncia totalmente à busca de causas últimas. O uso que Mill faz do argumento do design em Theism se opõe totalmente a essa rejeição da metafísica.

Nossa engenhosa autora ainda não foi derrotada. Ela afirma que o teísmo de Mill é pouco convicto: "[O] que Mill dá, ele imediatamente retira. Pois ele aponta, logo em seguida, que as evidências de design na natureza, embora possam apontar para um Deus, (...) podem, por outro lado, ser produto de forças evolucionárias naturalistas" (p. 191).

Aqui, Raeder ignora um ponto crucial. Mill considera a teoria da evolução de Darwin nada mais do que uma hipótese interessante; ele não acredita que tenha sido comprovada. Mais uma vez, Mill recusa uma oportunidade de adotar uma posição antirreligiosa.

Mas suponhamos que Raeder esteja certa: o que se segue se Mill permaneceu um comtista até o fim? Isso tornaria os argumentos de Sobre a Liberdade meras manobras táticas? Eu não penso assim. Nossa autora observa que Mill aspirava a um consenso antirreligioso; mas disso não decorre que ele desejasse suprimir discordâncias. Ele declara explicitamente em Sobre a Liberdade que debater verdades aceitas é algo extremamente valioso; até mesmo debater as verdades da matemática é proveitoso. Por que não deveríamos levar Mill ao pé da letra?

Embora Raeder não tenha me convencido de sua tese principal, seu livro contém muitas contribuições valiosas. Sua discussão sobre a atitude de Mill em relação à natureza, em particular, revela uma percepção sensível. Ela identifica em Mill uma hostilidade ao mundo: "Para Mill, a natureza, como nos foi dada, não é boa. De fato, a natureza não é boa de maneira alguma, mas um reino de ‘imprudência perfeita e absoluta’ (...). Mill, como o Grande Inquisidor, irá ‘corrigir’ a obra de Deus" (pp. 99, 101).

O estudo de Raeder é impressionantemente erudito, mas sua discussão sobre a suposta falácia na prova utilitarista de Mill (pp. 302 ff.) não faz referência às importantes análises de Fred Berger e outros na literatura filosófica recente. As observações da página 149 confundem erroneamente o utilitarismo teológico com visões morais completamente não consequencialistas.

 

[i] Veja minha resenha de Joseph Hamburger, John Stuart Mill on Liberty and Control, Mises Review 6, no. 1 (primavera de 2000): 21-24.

[ii] O maior de todos os utilitaristas do século XIX depois de Mill, Henry Sidgwick, concordou com Paley que somente um sistema de recompensas e punições divinas poderia reconciliar a moralidade com o interesse próprio.

 

Este artigo foi originalmente publicado no Mises Institute.

 

Recomendações de conteúdos:

Podcast 436 - Menos Mises, Mais Mill? (Marize Schons)

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Nota: as visões expressas no artigo não são necessariamente aquelas do Instituto Mises Brasil.

Sobre o autor

David Gordon

É membro sênior do Mises Institute, analisa livros recém-lançados sobre economia, política, filosofia e direito para o periódico The Mises Review, publicado desde 1995 pelo Mises Institute.

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