A matéria da Folha: luzes sobre o que estamos vivendo?
“Então vamos endurecer com eles. Prepare relatórios em relação a esses casos e mande para o inq das fake. Vou mandar tirar sob pena de multa.”
(Ministro Alexandre de Moraes, em mensagem para seus assessores – Segundo matéria da Folha de São Paulo, no dia 04/09/2024)
Na matéria assinada por Fábio Serapião e Glenn Greenwald, publicada hoje na Folha de São Paulo, revela-se mais um capítulo do que vem sendo entendido – ao menos pelos referidos jornalistas – como tentativas de interferência direta do Ministro Alexandre de Moraes no funcionamento das plataformas digitais, especificamente o X (antigo Twitter). Segundo as mensagens divulgadas, Moraes ordenou o endurecimento das regras de moderação da plataforma após Elon Musk assumir o controle da empresa, deixando claro que as ações visavam controlar o fluxo de informações nas redes sociais, sob o pretexto de combater as chamadas “Fake News”. Vejam-se os seguintes trechos da matéria:
“A conversa sobre a mudança de postura com a plataforma ocorreu em 17 de março de 2023. Logo pela manhã, às 6h58, o juiz auxiliar Marco Antônio Vargas mandou no grupo uma publicação de uma mulher sobre soltura de presos pelos ataques golpistas do 8 de janeiro.
‘Foi o Tribunal Internacional. O Mula, Xandão e esse governo usurpador estão sendo acusados de crimes contra a humanidade (prisões, ilegais, tortura, campos de concentração, mortes, etc.)’, dizia trecho da postagem.
‘Bom dia, preciso do contato do Twitter’, pediu o juiz auxiliar no grupo. Após uma servidora da AEED mandar o telefone de uma pessoa de nome Hugo [Rodríguez, então representante da empresa para a América Latina], outro integrante do órgão de combate à desinformação, chamado Frederico Alvim, entrou na conversa e se colocou à disposição para falar com a plataforma.
‘Vc pode ver com ele para que façam uma análise de postagens dessa natureza?’, disse o juiz.
Alvim respondeu: ‘Sim. A ideia seria aumentar um pouquinho o escopo da parceria, pra que questões como essa possam ser enviadas pelo sistema de alertas, obtendo tratamento?’
Em seguida, o servidor explicou ao juiz como funcionava a atuação da plataforma na moderação de conteúdo e qual seria o caminho para conseguir que o X passasse a excluir o tipo de publicação citada por ele.
‘Acho que reivindicar uma alteração formal da política seria muito demorado e dificultoso, porque dependeria da boa vontade do time global, agora subordinado ao Musk. Creio que a saída mais fácil seria pedir uma calibração da interpretação da política já existente’, afirmou Alvim.
Segundo ele, a política de integridade da plataforma se aplicava em três circunstâncias: eleições, Censo e grandes referendos e outras votações dentro dos países.
Como não estavam em período eleitoral, disse Alvim, o caminho seria
‘defender que, embora as eleições tenham terminado e o novo presidente empossado, esses ataques mantêm acesa a possibilidade de novas altercações’.
Às 9h45, o servidor informou ao juiz auxiliar ter agendado uma reunião com o representante da plataforma para as 12h daquele dia.
‘Vou tentar, o seguinte, nesta ordem de preferência: 1) que removam o conteúdo e se comprometam a remover outros semelhantes, sempre que acionarmos pelo sistema de alertas; ou 2) que ao menos removam esse, imediatamente, enquanto discutimos ajustes nas políticas (numa reunião com o senhor)", disse Alvim. "Perfeito", respondeu o juiz.’”
Essas revelações trazem à tona uma discussão central sobre a liberdade de expressão e seus inimigos, temas infelizmente recorrentes quando se trata da atuação do STF nos últimos anos. O que está em jogo aqui não é apenas a moderação de conteúdo em uma plataforma digital, mas a própria essência do processo legal e de como ele vem sendo subvertido para fins de controle político, e, por que não dizer, de censura.
O conceito de “indevido processo legal”, que explorei anteriormente, ganha aqui uma nova camada de gravidade. O processo legal, que deveria ser a garantia última da proteção dos direitos individuais contra abusos, está sendo transformado, ao que tudo indica, em uma ferramenta para silenciar o que não se quer ouvir. O que a matéria da Folha de São Paulo expõe, na verdade, não é apenas um "indevido processo legal", mas a completa subtração do próprio conceito de processo. Um processo pressupõe uma estrutura triangular entre duas partes e um juiz, em que há uma acusação formal, um pedido, e a oportunidade de defesa e resposta. O devido processo legal depende da qualidade com que as partes são ouvidas, com acesso aos autos, produção de provas, e neutralidade do julgador.
Contudo, pelos relatos dos jornalistas, parece que se está diante um cenário onde relatórios secretos são produzidos, sem que as partes sequer sejam notificadas, sem que haja acusação formal ou processo judicial em curso, e sem a possibilidade de defesa. As contas de redes sociais são canceladas por ordens secretas, emitidas diretamente a terceiros (como as plataformas digitais), sem que haja qualquer relação processual estabelecida. O que se opera, diante disso, é um mecanismo extrajudicial, onde não há sequer um conjunto de regras que ordene a sequência de procedimentos.
Mesmo abstraindo a noção de processo judicial tradicional, não existe um "processo" claro que guie a produção dos relatórios ocultos, que podem ser elaborados conforme a necessidade do julgador. Falar em processo, sob qualquer ótica, tornou-se ilusório; o que se tem – ao que tudo indica – é uma ação sem qualquer estrutura legal que a sustente, muito menos que respeite as garantias constitucionais e internacionais. As ações do Ministro Alexandre de Moraes, pelo que se consegue vislumbrar das notícias, são um exemplo de como o sistema judiciário pode ser instrumentalizado para silenciar opositores e controlar o debate público, sem respeito às devidas garantias legais.
Muito bem. A partir da análise de Richard Posner sobre a liberdade de expressão, podemos entender essa interferência como uma forma de regulação que não apenas busca controlar o discurso, mas que falha ao subestimar os custos de tal supressão. Posner argumenta que a liberdade de expressão é essencial para garantir a “robustez” do mercado de ideias, permitindo que os cidadãos tenham acesso a um leque diversificado de informações e opiniões. Quando o Estado se torna árbitro do que pode ser dito, há uma perda significativa de informação valiosa que poderia contribuir para a formação de uma sociedade mais bem informada e, portanto, capaz de tomar decisões políticas mais conscientes.
Posner explica que os custos da supressão vão além do impacto imediato: eles se estendem ao longo do tempo, quando ideias são impedidas de alcançar seu público. O controle estatal das narrativas digitais, como o que o Ministro Alexandre de Moraes vem implementando, impõe uma “taxa” sobre a circulação de ideias, diminuindo a competitividade no mercado de informações. Essa abordagem paternalista subestima os benefícios de uma sociedade que tem o direito de escolher livremente em meio a diferentes pontos de vista, prejudicando a evolução natural de novas ideias e soluções que poderiam surgir em um ambiente de livre expressão.
O grande juiz americano e Professor da Universidade de Chicago também adverte sobre o risco de o Estado concentrar o controle sobre a liberdade de expressão, criando uma espécie de monopólio de ideias que suprime a diversidade de pensamento. Ele sugere que, assim como os monopólios econômicos são prejudiciais à inovação e ao bem-estar social, o monopólio político sobre o discurso é igualmente destrutivo, pois elimina as vozes dissidentes que são fundamentais para o progresso democrático.
O Ministro Alexandre de Moraes, em sua busca por controle, desconsidera que o verdadeiro papel do judiciário deveria ser o de garantir a liberdade individual e proteger os cidadãos contra abusos do Estado. No entanto, suas ações recentes mostram o contrário: uma busca incessante por moldar o debate público, controlando o que pode ou não ser dito nas redes sociais.
Elon Musk, ao assumir o controle do X, se apresentou como uma ameaça ao status quo estabelecido. Sua intenção clara de garantir maior liberdade de expressão na plataforma irritou aqueles que, até então, tinham o controle das narrativas digitais. Moraes, evidentemente incomodado com essa mudança, agiu de forma rápida para sufocar qualquer possibilidade de uma rede social menos regulada. O objetivo parece claro: impedir que o X se tornasse um espaço onde o livre debate pudesse florescer, principalmente em um ambiente político tão polarizado quanto o nosso. Há um trecho da matéria publicada na folha que ilustra isso:
“‘Vou ver o que consigo. Mas ele já adiantou que, com a entrada do Musk, a equipe dele deixou de tomar decisões de moderação. Essas decisões estão sendo tomadas por um colegiado, do qual eles não participam’, afirmou.
Às 12h35, logo após terminar a reunião com Hugo Rodríguez e uma pessoa de nome Adela, Alvim mandou algumas mensagens no grupo para informar o juiz auxiliar de Moraes sobre o resultado da conversa.
O representante da plataforma, disse Alvim, deixou claro que fora do período eleitoral as regras a serem seguidas seriam as gerais, sem tratamento específico para o TSE ou para publicações como a enviada pelo juiz auxiliar.
‘Com a entrada do Elon Musk, a moderação caminha cada vez mais para ter como base a proteção da segurança, mais do que a proteção da verdade’, escreveu.
‘Trocando em miúdos, uma mentira desassociada de um risco concreto tende a não receber uma moderação. A moderação só ocorre quando houver discurso violento, discurso de ódio e cogitação de alguma espécie mais palpável de dano (incitação de um ato de depredação ou coisa do tipo). Com o detalhe de que o 'risco à democracia', por não ser tangível, não entra nesse conceito’, disse Alvim.
Ainda segundo o relato dele, para derrubar ou bloquear as publicações com ofensas ao ministro, seria necessária ‘atuação judicial’.
‘Tentei convencê-los a procederem à retirada, apontando que as regras deles preveem como irregulares os casos de assédio, incluindo insulto. Mas, na visão do Twitter, o insulto em si (sem risco de violência) não enseja moderação, porque eles não estão tutelando a honra, mas, de novo, a segurança.’
A explicação dada pelo representante da plataforma era a de que o combate à desinformação seria feito com ferramentas como as ‘notas de comunidade’ – quando o post com desinformação é classificado dessa forma a partir de denúncias de usuários.”
A nova política do X, conforme detalhada na matéria, se alinha com o que a Suprema Corte dos Estados Unidos vem defendendo há décadas: a doutrina do “perigo real e imediato”. Segundo essa interpretação, a restrição da liberdade de expressão só pode ocorrer quando o discurso representa um risco concreto e iminente de violência ou dano real. Elon Musk, ao adotar essa diretriz em sua plataforma, segue a lógica estabelecida pela Corte, na qual o discurso, por mais perturbador ou ofensivo que seja, não pode ser restringido a menos que esteja associado a uma ameaça tangível de ação prejudicial. A Suprema Corte estabeleceu esse princípio em casos icônicos, como Brandenburg v. Ohio (1969), onde determinou que o Estado só pode intervir quando o discurso é “dirigido a incitar ou produzir ações ilegais iminentes”, e, além disso, deve ser “provável que incite ou produza tais ações”. Esse entendimento é precisamente o que o X está tentando implementar, priorizando a moderação baseada em riscos claros à segurança, ao invés de censurar meramente opiniões ou declarações controversas. Ao rejeitar a ideia de controlar o discurso apenas com base na "proteção da verdade", a plataforma segue o mesmo caminho traçado pela jurisprudência americana, que favorece um ambiente de debate robusto, permitindo que as ideias sejam confrontadas no “mercado de ideias”, em vez de serem suprimidas de forma prematura.
Embora a decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos não tenha aplicação direta no Brasil ou em outros países, os princípios da liberdade de expressão defendidos na doutrina do “perigo real e imediato” encontram respaldo em preceitos internacionais, como os contidos na Declaração Universal dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU). O Artigo 19 da declaração estabelece que “todo ser humano tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras.” As tentativas de censura e controle de conteúdo digital, conforme reveladas no caso do Ministro Alexandre de Moraes, violam diretamente esse direito fundamental de disseminação de ideias, uma vez que não há ameaça concreta que justifique a supressão do discurso.
Além disso, o Artigo 30 da Declaração proíbe qualquer interpretação dos direitos nela contidos que justifique ações que visem à destruição dos direitos e liberdades nela estabelecidos. Assim, o controle arbitrário da informação nas redes sociais, sem que haja uma ameaça real ou iminente, vai contra os princípios universais de direitos humanos, protegidos pela ONU e por tratados internacionais que o Brasil é signatário.
Na esfera nacional, a Constituição Federal Brasileira, em seu Artigo 5º, parágrafo 2º, estabelece que os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros decorrentes dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. Além disso, o Artigo 4º da Constituição determina que o Brasil rege suas relações internacionais com base na prevalência dos direitos humanos, entre outros princípios.
Portanto, ao interferir na liberdade de expressão com base em critérios vagos e sem a justificativa de uma ameaça iminente, como se propôs no caso do X, há uma evidente violação de preceitos fundamentais, tanto internacionais quanto nacionais, com os quais o Brasil está comprometido.
Pois bem. Essa série de eventos levanta uma questão importante: estamos, de fato, normalizando o chamei de “indevido processo legal” no Brasil? Se antes o uso do sistema jurídico para fins de repressão política era velado, agora ele se tornou uma prática comum e abertamente apoiada por aqueles que detêm o poder. Não podemos ignorar as implicações de longo prazo desse fenômeno. A censura digital, legitimada por decisões judiciais arbitrárias, cria um precedente perigoso. Se não resistirmos a essas práticas, corremos o risco de institucionalizar o uso do direito como instrumento de controle estatal, enterrando de vez as garantias de liberdade conquistadas a duras penas.
As ações do Ministro Alexandre de Moraes, com todo respeito e acatamento, criam um precedente que ameaça o cerne da democracia liberal no Brasil. Em vez de defender os direitos individuais, o judiciário parece cada vez mais comprometido em controlar o discurso e silenciar aqueles que ousam desafiar a narrativa oficial. O “indevido processo legal”, que supostamente teria sido uma exceção no período eleitoral, está se tornando a regra, e, se isso não mudar, acabará consolidando uma ferramenta de repressão estatal.
Com a lente de Posner, vemos que essa supressão é não apenas um ataque à liberdade de expressão, mas também uma distorção econômica no mercado de ideias, algo que a democracia não pode permitir. Não podemos nos calar diante de tais abusos. A liberdade de expressão, tanto no espaço físico quanto no digital, é um direito fundamental que deve ser protegido, independentemente de quem está no poder.
Na música “Proteção” da Plebe Rude, lançada em um período de censura e repressão no Brasil, a banda canta sobre a ironia da “proteção” oferecida pelo Estado, que, na verdade, esmagava a liberdade dos indivíduos. Assim como na ditadura militar, onde a justificativa era manter a ordem, mas o que realmente se mantinha era o controle sobre o que podia ou não ser dito, hoje vemos o mesmo padrão de intervenção sob o pretexto de proteger a verdade ou a democracia. O que se disfarça de “proteção” é, na realidade, uma sombra que avança sobre a livre expressão, ameaçando sufocar qualquer voz que ouse divergir do discurso oficial. A letra da música, tristemente, reflete o que estamos vivenciando: uma exigência de conformidade imposta pelo aparato estatal, onde discordar significa enfrentar sanções, e questionar o poder resulta em silenciamento. Não esperava ver isso novamente em nosso país.
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Nota: as visões expressas no artigo não são necessariamente aquelas do Instituto Mises Brasil.
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