Crônicas do (in)devido processo legal
Nosso país vem enfrentando uma das maiores crises institucionais de sua existência. Mas, talvez, essa seja a mais grave. Ao longo de sua história, o Brasil tem flertado continuamente com o autoritarismo, mesmo em períodos nominalmente democráticos. Desde o centralismo colonial e imperial, passando pela manipulação política das oligarquias na Primeira República, até o Estado Novo de Getúlio Vargas e a ditadura militar de 1964-1985, a concentração de poder e a supressão de liberdades foram características recorrentes. Mesmo nas fases democráticas, o país viveu tensões entre forças que buscam maior controle estatal e movimentos que defendem as liberdades civis, evidenciando que o autoritarismo sempre esteve à espreita, moldando a dinâmica política nacional. O direito sempre esteve no meio desses embates.
No correr desse texto, é bom lembrar do que foi ressaltado por Hans Kelsen, a ciência do direito deve ser separada das ideologias políticas para preservar sua objetividade e imparcialidade. Contudo, infelizmente, o Judiciário brasileiro tem se afastado dessa pureza teórica, adotando posturas que frequentemente extrapolam os limites das normas jurídicas, o que reforça a tendência preocupante de politização do Judiciário.
Para começar a tratar do papel que o judiciário teve – e tem – em nossa realidade histórica, recorro a uma dessas curiosidades da vida. Hoje, um colega criminalista me brindou com um voto cintilante que me inspirou a escrever esse texto. No julgamento do HC n.º 32.600, em 15 de julho de 1953, o saudoso Ministro Nelson Hungria, disse o seguinte:
“Sr. Presidente, a ordem contra a qual resistiu o paciente era, pelo menos formalmente, ilegal, e não se concebe resistência como crime quando oposta a ordens ilegais.
Resistir a estas, já ensinava o velho Farinácio, muito antes da ‘Declaração dos Direitos do Homem’, não é apenas um direito, é o cumprimento de um dever cívico. Em face da ilegalidade, para resistir, para impedir que se consume a arbitrariedade, civis civis est miles.
Não tenho dúvida em acompanhar o voto do senhor Ministro-Relator.”
Vamos dissecar as expressões da época e o latim. O “velho Farinácio” mencionado no voto do Ministro Nelson Hungria é uma referência ao jurista e advogado italiano Prospero Farinacci (ou Farinácio, em português), que viveu entre 1554 e 1618. Farinacci foi uma figura de destaque no direito penal e canônico da sua época e é mais conhecido por sua obra “Praxis et Theoricae Criminalis” (Prática e Teoria do Direito Penal), que foi amplamente utilizada por advogados e juízes na Europa.
Farinacci foi uma das principais autoridades em direito penal no final do Renascimento, e suas obras foram amplamente citadas e influentes em questões de crimes, penas, e no entendimento das resistências a ordens ilegais. A citação do nome de Farinacci no contexto do voto de Hungria indica a invocação de uma autoridade histórica para sustentar o argumento de que resistir a ordens ilegais não é apenas um direito, mas um dever cívico.
Por sua vez, a expressão “civis civis est miles” é em latim e pode ser traduzida como "um cidadão é um soldado". No contexto do voto do Ministro Nelson Hungria, essa frase sugere que, em determinadas circunstâncias, especialmente quando confrontado com a ilegalidade ou a arbitrariedade, cada cidadão tem o dever de resistir como se fosse um soldado, defendendo a legalidade e os direitos fundamentais. Ou seja, a cidadania impõe não apenas direitos, mas também deveres, incluindo a resistência a ordens injustas ou ilegais.
A Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen nos lembra que o direito deve ser compreendido como um sistema normativo autônomo, livre de influências morais ou políticas. No entanto, a recente atuação do Judiciário brasileiro, especialmente em casos de censura nas redes sociais e outras decisões controversas, revela um desvio dessa concepção, onde as normas jurídicas são reinterpretadas à luz de valores contemporâneos que não necessariamente refletem o texto constitucional.
O Poder Judiciário e a advocacia, por vezes, foram um ponto de equilíbrio nas nossas tristes aventuras totalitárias. Sobral Pinto, advogado de renome e defensor incansável dos direitos humanos, destacou-se de forma singular durante os períodos de autoritarismo no Brasil. Seu nome é sinônimo de coragem e integridade, especialmente durante o Estado Novo de Getúlio Vargas. Ele foi notável por sua defesa de presos políticos, como Luiz Carlos Prestes e Harry Berger, em um contexto de extrema repressão e brutalidade. Sobral não apenas lutou dentro dos limites estritos da lei, mas também recorreu a argumentos humanitários inovadores, como o uso da Lei de Proteção aos Animais, para melhorar as condições de encarceramento de Berger, cuja situação era desumana ao ponto de ser comparável ao tratamento cruel dispensado a animais.
Atuações corajosas de advogados como Sobral Pinto foram fundamentais para pressionar o Judiciário a cumprir seu papel constitucional. A integridade de Sobral era tamanha que ele nunca hesitou em criticar qualquer desvio das normas legais, mesmo que isso significasse enfrentar diretamente o poder estabelecido. Sua defesa dos direitos fundamentais serviu como um bastião de resistência contra os abusos do poder, reafirmando a importância do Estado de Direito em tempos de crise. Sua firmeza e intransigência em questões de justiça tornaram-no uma figura influente, cujo impacto reverberou não apenas nos tribunais, mas também na consciência pública brasileira.
Essa é a essência do legado de Sobral Pinto: um advogado que se recusou a ser domesticado pelo poder e que, com sua tenacidade, contribuiu para preservar as liberdades fundamentais em momentos críticos da história do Brasil. A diferença é que, na época, Sobral podia contar com as Cortes de nosso país.
Persistiu-se, nessa linha, por mais um tempo. Já no período democrático, o Ministro Maurício Corrêa proferiu voto dizendo o seguinte:
“Ninguém é obrigado a cumprir ordem ilegal, ou a ela se submeter, ainda que emanada de autoridade judicial. Mais: é dever de cidadania opor-se à ordem ilegal; caso contrário, nega-se o Estado de Direito. Precedentes. 2. Ainda que o paciente tenha se ocultado para não se submeter a ordem de prisão ilegal, este fato não foi o único fundamento suficiente do segundo decreto de prisão, baixado por outra autoridade judiciária em outro processo; a nova ordem de prisão atende às previsões dos arts. 312, 313, I, e 315 do CPP. 3. ‘Habeas-corpus’ originário, substitutivo de recurso ordinário em ‘habeas-corpus’, conhecido, mas indeferido.” (HC 73454, Relator(a): MAURÍCIO CORRÊA, Segunda Turma, julgado em 22/04/1996, DJ 07-06-1996 PP-19827 EMENT VOL-01831-01 PP-00125)
Nessa época, os juízes brasileiros ainda costumavam ser técnicos e mantinham distância da política. Seguia-se a linha das fortes palavras do Ministro Aliomar Baleeiro em voto contundente proferido no Supremo Tribunal Federal:
“Por vezes, sustentei que não aplicar o dispositivo indicado, ou aplicar o não indicado, assim como dar o que a lei nega, ou negar o que ela dá, equivale a negar vigência de tal lei. E ainda continuo convencido disso, pois nenhum juiz recusa vigência à lei, salvo casos excepcionalíssimos de direito intertemporal ou de loucura furiosa.” (RTJ 64/677)
Diante desse cenário, os advogados se sentiam confortáveis em defender o direito de forma contundente e implacável. Essa coragem, inclusive, se manteve viva por boa parte da operação Lava Jato. O atual Ministro Zanin, então advogado, defendeu o Presidente Lula com firmeza e sem se curvar. Na época, os criminalistas foram enxovalhados e escrevi, em março de 2017, um artigo no CONJUR em sua defesa. Critiquei, na ocasião, a redução das garantias processuais em nome de uma suposta justiça popular, alertando para os perigos de um Estado policialesco que desrespeita direitos fundamentais. Advogados criminalistas são os defensores dessas garantias, essenciais para todos os cidadãos, em face de um Estado que se agiganta e compromete liberdades individuais. No texto adverti que a verdadeira solução contra a corrupção está na redução do tamanho do Estado, não na diminuição das proteções legais garantidas pela Constituição.
Obviamente, fui enxovalhado por colegas liberais e conservadores. Faz parte. Não há como agradar a todos. Mas prossegui criticando o que via como uma escalada totalitária do judiciário do país. Por ocasião da prisão do Presidente Temer, escrevi, em 22 de março de 2019, um artigo para o Instituto Liberal, alertando sobre o perigo de decisões judiciais que extrapolam suas competências e invadem a seara legislativa, argumentando que isso poderia abrir caminho para o totalitarismo. Disse que, ao desrespeitar a separação de poderes e reduzir as garantias individuais, o Judiciário contribuiria para a concentração de poder e o enfraquecimento do Estado de Direito, o que poderia levar ao autoritarismo. Os argumentos terminaram com a mensagem de que a defesa de princípios liberais e da Constituição é essencial para evitar esse risco.
Aquele artigo foi publicado 8 dias após a instauração do Inquérito 4781, conhecido como o Inquérito das Fake News, que foi instaurado pelo STF em março de 2019 para investigar notícias falsas, ameaças e ataques ao tribunal e seus membros. Conduzido pelo Ministro Alexandre de Moraes, o inquérito é controverso, recebendo críticas por supostamente ultrapassar os limites constitucionais e ser uma resposta do Judiciário a pressões de diversas naturezas, incluindo as oriundas da Operação Lava Jato. A investigação gerou debates sobre liberdade de expressão e o papel do STF.
Em agosto de 2019, a Folha de São Paul publicou matéria abordando a manifestação da então procuradora-geral da República, Raquel Dodge, contra o inquérito das fake news, instaurado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) para investigar notícias falsas, ameaças e calúnias contra seus ministros. Dodge teria comparado o STF a um “tribunal de exceção” e considerado o inquérito ilegal e inconstitucional, argumentando que ele fere o sistema penal acusatório previsto pela Constituição de 1988. Ela defendeu que o órgão responsável pela acusação não pode ser o mesmo que julga, criticando a ausência de participação do Ministério Público Federal no caso. Dodge também se opôs à condução do inquérito pelo Ministro Alexandre de Moraes e à possibilidade de seus colegas serem investigados no âmbito do inquérito. Ela já havia tentado arquivar o inquérito anteriormente, mas O Ministro Moraes manteve as investigações. A matéria também abordou as controvérsias e críticas sobre a instauração e condução do inquérito pelo STF, incluindo questões de competência, foro, e liberdade de expressão. Vale lembrar, por oportuno, um trecho de obra do magistral Mauro Capelletti:
“O juiz que decidisse a controvérsia sem pedido das partes, não oferecesse à parte contrária razoável oportunidade de defesa, ou se pronunciasse sobre o seu próprio litígio, embora vestindo a toga de magistrado e a si mesmo se chamando de juiz, teria na realidade cessado de sê-lo.” (Juízes Legisladores?”, Sergio Antonio Fabris Editor, 1999.)
Desde o nascimento do “Inquérito do fim do mundo” – na expressão do Ministro Marco Aurélio Mello –, infelizmente, o texto da Lei foi gradativamente ficando em um segundo plano no Brasil. Mais recentemente, inclusive, o Ministro Luiz Roberto Barroso, por quem tenho profundo respeito e admiração intelectual, proferiu as seguintes palavras: “O Poder Judiciário no Brasil, após a Constituição Federal de 1988, viveu e vive ainda um vertiginoso processo de ascensão institucional. Deixou de ser já há um tempo um departamento técnico especializado. Passou a ser um poder político na vida brasileira. Houve mudança na natureza, no papel, na visibilidade, nas expectativas que existem em relação do Poder Judiciário”. A fala se deu na abertura do 7º Encontro do Conselho de Presidentes de Tribunais de Justiça do Brasil, realizado em Porto Alegre, no dia 05 de julho de 2023.
Gradativamente, o nosso Supremo Tribunal Federal enveredou em um caminho, por assim dizer, tortuoso. Nos esquecemos da advertência de Lord Devlin:
“é grande a tentação de reconhecer o judiciário como uma elite capaz de se desviar dos trechos demasiadamente embaraçados da estrada do processo democrático. Tratar-se-ia, contudo, de desvio só aparentemente provisório; em realidade, seria ele a entrada de uma via incapaz de se reunir à estrada principal, conduzindo inevitavelmente, por mais longo e tortuoso que seja o caminho, ao estado totalitário”. (“Judges and Lamakers”, em Modern Law Ver., 39 (1976), pág. 16, Apud, Mauro Capelleti, “Juízes Legisladores?”, Ed. Sergio Antonio Fabris Editor, 1999, pág. 93.)
Kelsen sustenta que o Judiciário deve limitar-se à aplicação das normas jurídicas, respeitando a separação de poderes que é fundamental para a manutenção do Estado de Direito. No Brasil, contudo, observamos uma tendência crescente de juízes agirem como legisladores, reinterpretando ou mesmo criando normas, o que compromete a estabilidade do sistema jurídico e ameaça a integridade das nossas instituições democráticas. Essa situação não pode acabar bem. Em artigo brilhante para a revista Veja, publicado no dia 4 de junho de 2024, Fernando Schüler, argumenta que, em uma democracia, os cidadãos têm o direito de expressar livremente suas opiniões e suspeitas, enquanto os tribunais devem permanecer fiéis à objetividade das leis. Ele criticou a tendência de judicialização excessiva e o risco de juízes se tornarem atores políticos, lembrando que o papel do Judiciário é garantir a aplicação imparcial das leis, não agir sob influências externas ou pessoais.
Há uma preocupante mutação de papel do Judiciário brasileiro, que, ao ultrapassar suas funções tradicionais, arrisca-se a se tornar um poder político, desviando-se dos princípios republicanos. A advertência de Lord Devlin, destacada no texto, alerta que esse caminho pode levar ao totalitarismo. A análise de Fernando Schüler, que ressalta que o poder de uma autoridade para decidir sobre a liberdade de expressão não é absoluto, reforça a importância de o Judiciário manter sua objetividade e imparcialidade. Aliás, como Schüler pontuou em um tweet recente, em 29 de agosto de 2024[1], restrições a direitos sem o devido amparo legal configuram abuso de poder, destacando ainda mais o risco de comprometimento do Estado de Direito e das liberdades democráticas.
Diante dessas preocupações pertinentes, parece que a interpretação constitucional no Brasil poderia ser positivamente influenciada pelos princípios defendidos por Antonin Scalia, conforme exposto em “A Matter of Interpretation: Federal Courts and the Law”. Na obra, Scalia enfatiza que as palavras da Constituição devem ser interpretadas de acordo com o significado que tinham no momento de sua adoção, evitando que os juízes reinterpretem o texto à luz das circunstâncias ou valores contemporâneos. Ele argumenta que o papel dos juízes não é legislar a partir do tribunal, mas aplicar o texto legal dentro de seu “alcance limitado de significado”. Isso é particularmente relevante no contexto brasileiro, onde a preservação da separação de poderes é essencial para manter a integridade do Estado de Direito. Ao se ater rigorosamente ao texto original, o Judiciário brasileiro pode evitar o risco do ativismo judicial e garantir que suas decisões permaneçam dentro dos limites da Constituição, sem usurpar as funções legislativas. Essa abordagem não só preserva a objetividade necessária no exercício da jurisdição, mas também evita que o Judiciário se torne um poder político, comprometendo a ordem democrática.
Pois bem. A mudança no papel do Judiciário brasileiro fica ainda mais evidente quando observamos as recentes decisões monocráticas e sigilosas do Ministro Alexandre de Moraes no âmbito do Inquérito das Fake News. Essas decisões, ao que tudo indica, resultaram em censura direta nas redes sociais, especialmente no Twitter, com perfis sendo removidos e conteúdos bloqueados sem o devido processo legal e sem a transparência necessária. O uso excessivo de sigilo nessas decisões impede a fiscalização pública e levanta sérias preocupações sobre a proteção da liberdade de expressão, um dos pilares mais fundamentais de uma democracia saudável.
Saliente-se, por oportuno, que essa transformação do Judiciário em um agente político, tomando decisões que muitas vezes extrapolam seus limites constitucionais, gera um ambiente de incerteza jurídica que desincentiva investimentos. Empresas, especialmente as multinacionais, avaliam o risco regulatório e jurídico antes de alocar capital em um país. Quando as decisões judiciais parecem ser arbitrárias ou motivadas politicamente, isso aumenta o risco percebido de operar no Brasil. Esse cenário desencoraja investimentos estrangeiros diretos e pode resultar na fuga de capitais, prejudicando o crescimento econômico e a geração de empregos.
A intervenção judicial nas redes sociais, que deveria ser uma exceção rigorosamente justificada, parece ter se tornado uma ferramenta para controlar o discurso público, sufocando opiniões contrárias e enfraquecendo o debate democrático. Isso é especialmente preocupante em um ambiente digital onde a liberdade de expressão deveria ser amplamente protegida. Ao impor censura sem transparência e sem permitir o contraditório, o Judiciário não só excede suas funções, mas também coloca em risco as liberdades individuais que é encarregado de proteger, dentre elas a liberdade de expressão. Vale lembrar os dispositivos da nossa Constituição Federal sobre o tema:
Artigo 5º, inciso IV: “É livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato.”
Artigo 5º, inciso IX: “É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença.”
Artigo 220: “A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo, não sofrerão qualquer restrição, observando o disposto nesta Constituição.”
A interpretação que o Ministro Alexandre de Moraes vem dando ao exercício da liberdade de expressão, conforme expresso em suas decisões recentes, contrasta significativamente com os princípios defendidos por Antonin Scalia e Bryan Garner em Reading Law. Scalia e Garner defendem que a interpretação das leis deve ser fundamentada no texto claro e objetivo das normas jurídicas, de modo a preservar a segurança jurídica e a previsibilidade das decisões judiciais. Eles argumentam que os juízes devem evitar interpretações criativas que alterem o significado original do texto legal para acomodar valores ou circunstâncias contemporâneas, sob pena de violar a separação de poderes.
Ao adotar uma postura expansiva na interpretação das leis, especialmente ao justificar a censura nas redes sociais com base em um conceito amplo de “subversão da ordem e incentivo à quebra da normalidade institucional e democrática”, Moraes não só ultrapassa os limites estabelecidos pelo texto constitucional, mas também enfraquece a objetividade e a imparcialidade que são fundamentais para o exercício da jurisdição. Essa interpretação extensiva permite que o Judiciário atue como legislador, criando novas normas a partir do tribunal, o que é explicitamente criticado por Scalia e Garner.
Por sua vez, Carlos Maximiliano, em Hermenêutica e Interpretação do Direito, ressalta a importância de uma interpretação jurídica que respeite a letra da lei e o contexto histórico de sua criação, evitando que o intérprete projete seus próprios valores ou interesses sobre o texto. Ele defende que a interpretação deve ser realizada de forma restritiva quando o direito fundamental em questão é a liberdade, de modo a proteger os indivíduos contra a arbitrariedade do Estado.
Ao desconsiderar o caráter excepcional que a censura deveria ter em um Estado Democrático de Direito, e ao aplicar uma interpretação ampliada das normas constitucionais para justificar a remoção de conteúdos nas redes sociais, o Ministro Alexandre de Moraes adota uma abordagem hermenêutica que desrespeita os princípios de interpretação defendidos por Maximiliano. Essa postura não apenas compromete a liberdade de expressão, mas também estabelece um precedente perigoso para o futuro da jurisdição constitucional no Brasil, onde decisões judiciais podem ser utilizadas como ferramentas de controle social, em vez de garantias de direitos fundamentais.
Diante dessas considerações, percebe-se que a abordagem interpretativa adotada pelo Ministro Alexandre de Moraes diverge dos princípios fundamentais da interpretação jurídica, tanto em termos de respeitar o texto e a intenção original das leis, conforme defendido por Scalia e Garner, quanto em termos de preservar a liberdade individual contra a intervenção estatal arbitrária, conforme sustentado por Carlos Maximiliano.
A atuação do Judiciário nas redes sociais deve, também, ser analisada à luz do Marco Civil da Internet, que estabelece diretrizes claras para o uso da internet no Brasil, garantindo a liberdade de expressão e a proteção dos dados pessoais. O Marco Civil determina que a remoção de conteúdo só deve ocorrer mediante ordem judicial específica, com respeito ao contraditório e à ampla defesa[2]. As decisões sigilosas e sem transparência do Ministro Alexandre de Moraes, que acabam resultando em censura prévia, desrespeitam essas garantias e violam o devido processo legal previsto na própria constituição. A falta de transparência e o uso indiscriminado de ordens de remoção não só contrariam o espírito do Marco Civil, mas também representam um perigoso precedente de potencial abuso de poder judicial.
A criação do site Twitter Files Brazil destaca como essas práticas estão aparentemente se tornando comuns em nosso país, documentando casos em que decisões judiciais foram usadas para pressionar o Twitter a remover conteúdo ou suspender perfis. Essas ações, que parecem ter as digitais da arbitrariedade, ilustram uma violação dos princípios constitucionais de liberdade de expressão e transparência, e sublinham o perigo de um Judiciário que atua fora dos limites estabelecidos pela Constituição.
Além disso, a recente decisão de bloquear a operação da Starlink no Brasil, tratada em artigo publicado no Instituto Mises, levanta sérias preocupações sobre o impacto dessas medidas na atração de capitais estrangeiros para o país. Empresas globais, especialmente no setor de tecnologia, precisam de um ambiente regulatório estável e previsível para operar e investir. Quando decisões judiciais drásticas, como o bloqueio de serviços inovadores e essenciais, são tomadas de maneira abrupta, sem o devido processo legal, cria-se um clima de incerteza que pode desencorajar investimentos futuros. O Brasil, que necessita de capital estrangeiro para fomentar seu crescimento econômico, corre o risco de se isolar no cenário global, afastando empresas que poderiam trazer avanços tecnológicos e gerar empregos. Para evitar esse cenário, é imperativo que o país adote uma postura mais transparente e equilibrada na aplicação de suas leis, assegurando que o Judiciário atue de forma a proteger, e não a inibir, o desenvolvimento econômico e a inovação.
Não se pode deixar de mencionar a situação dos advogados no presente momento. Em artigo publicado no Instituto Mises, mencionei a forma inusitada com que advogados do tradicionalíssimo escritório Pinheiro Neto foram tratados. Recentemente, advogados que ousam criticar ou questionar decisões do STF têm enfrentado um ambiente hostil, diferente do que ocorria anteriormente, quando críticas semelhantes eram feitas e até elogiadas. Essa postura impõe um clima de medo e incerteza entre os advogados, que se sentem intimidados ao exercer sua função pública na defesa dos direitos de seus clientes. A OAB, aliás, deveria se manifestar firmemente diante dessa situação.
Se continuarmos nesse caminho, corremos o risco de nos afastar ainda mais dos ideais democráticos e nos aproximar de um estado autoritário, onde o poder judicial se torna uma ferramenta de controle social, em vez de um guardião das liberdades e dos direitos fundamentais. O Brasil deve lembrar que a verdadeira força de uma democracia reside em sua capacidade de proteger a liberdade de expressão, mesmo quando ela desafia o status quo.
Resumo da ópera, o momento atual no Brasil apresenta uma nova e preocupante realidade: a influência crescente do Judiciário, em detrimento de sua função de garantir a justiça e os direitos fundamentais. Diferentemente do passado, quando advogados como Sobral Pinto conseguiram utilizar os mecanismos legais para proteger seus clientes contra abusos do Estado, hoje, o papel do Judiciário tem levantado preocupações. As decisões monocráticas e sigilosas, que por vezes resultam em censura prévia e restrições à liberdade de expressão, criam desafios significativos para a defesa dos direitos individuais.
Neste cenário, é essencial que o Judiciário reencontre seu compromisso com a imparcialidade e a legalidade, reafirmando seu papel como guardião das liberdades e da justiça. Um Judiciário forte, equilibrado e justo é fundamental para que o Brasil continue a trilhar o caminho democrático e evite os riscos de qualquer espécie de autoritarismo. É crucial, para o bem do país, que os rumos atuais sejam revistos, garantindo que as instituições se fortaleçam na defesa dos direitos e liberdades de todos os cidadãos.
Notas:
[1] “O direito à liberdade de expressão não é absoluto. Mas o poder de uma autoridade para decidir sobre este direito também não é absoluto. Por isso criamos as leis e o devido processo legal. Restrições a direitos sem o devido amparo legal só tem um nome: abuso de poder.”
[2] Art. 19. Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário.
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Nota: as visões expressas no artigo não são necessariamente aquelas do Instituto Mises Brasil.
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