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Economia

O cruzamento de ideias econômicas e o Bitcoin

02/10/2023

O cruzamento de ideias econômicas e o Bitcoin

Em um esforço para entender melhor os fundamentos intelectuais do que eventualmente veio a ser conhecido como Bitcoin, temos explorado muito a concorrência entre moedas proposta por F.A. Hayek e a ideia de se construir um “Vale de Galt no Ciberespaço” (uma adaptação do romance A revolta de Atlas, de Ayn Rand). Então, exploramos as raízes anarquistas de David D. Friedman – com importantes contribuições dos autores de ficção científica Robert Heinlein e Vernor Vinge. Cada um desses foi explicitamente citado ao menos uma vez por Timothy C. May, que organizou a mala direta dos cypherpunks durante os anos 1990, onde ele argumentou em favor de uma combinação de mercados online protegidos por uma forte criptografia, um público interconectado globalmente, e uma “moeda de internet” que facilitaria o comércio – e tudo isso podendo existir em um estado de anarquia.

Mas, para nos aprofundarmos, precisamos explorar as influências intelectuais que os economistas Lawrence H. White e George Selgin tiveram sobre, pelo menos, dois dos mais proeminentes cypherpunks – a saber, Nick Szabo e Hal Finney.

Nick Szabo é o homem responsável por engendrar algumas das tentativas de uma moeda nativa da internet estabelecida privadamente, antes do Bitcoin: ‘The God Protocols’ (1999) and ‘bit gold’ (2005, agora considerado um precursor direto do Bitcoin). Hal Finney lançou sua própria tentativa em 2004, chamada de ‘Provas de Trabalho Reutilizáveis’ (RPOW). Nenhuma dessas tentativas de moeda digital foi programada como um produto final; elas foram meramente concebidas por escrito (no caso das RPOW) e com quantidades mínimas de códigos. Apesar de nem Szabo ou Finney terem sido citados no whitepaper do Bitcoin, Satoshi mais tarde afirmou que o Bitcoin foi uma implementação do ‘bit gold’ de Szabo (junto com o ‘b-money’ de Wei Dai). Quanto a Finney, também foi o primeiro destinatário de uma transação com Bitcoin, feita pelo próprio Satoshi, e famosamente twittou “Operando o Bitcoin” em 11 de janeiro de 2009 – apenas oito dias após o Bitcoin ser lançado. Em suma, tanto Szabo quanto Finney fizeram contribuições significativas para a evolução das ideias que levaram inevitavelmente ao que hoje nos referimos como Bitcoin. 

Mas para criar uma moeda digital adequada e escalável, é preciso não apenas ter competência em programação e criptografia, mas também entender o que torna uma moeda boa. O blog de Szabo “Unenumerated” mostra uma visão profunda da história do dinheiro (entre muitos outros tópicos), e uma obra amplamente lida dele (entre os bitcoiners e afins) – “Shelling Out"– contém referências ao economista do século XIX, Carl Menger, que escreveu sobre o surgimento espontâneo do dinheiro. Mas, curiosamente, Szabo e Finney também estudaram a obra de Lawrence H. White e George Selgin.

 

A influência de White e Selgin nos Cypherpunks proeminentes

Um enfoque comum de pesquisa nas carreiras de White e Selgin é a concorrência entre moedas, um tema iniciado por F.A. Hayek durante os anos de alta inflação em 1970, com seu importante livro sobre o tópico: Desestatização do Dinheiro.

Nos anos 1990, White e Finney tiveram um debate amistoso de ideias por meio de três artigos publicados na revista Extropy. Finney argumentou em um artigo de 1993 que a internet criaria a possibilidade de uma moeda nativa da internet (não sustentada por moeda fiat/fiduciária ou bens no mundo real); White respondeu em 1995 que estava cético, debatendo a dificuldade de se evitar o efeito de rede das moedas fiat/fiduciárias; Finney respondeu à altura em 1996.

Em 2010, Finney se referiu ao livro de 1988 de Selgin, The Theory of Free Banking, como uma de suas próprias influências no famoso “Bitcoin Forum”, uma plataforma para discussão dos primeiros bitcoiners. “George Selgin desenvolveu a teoria do setor bancário livre e competitivo em detalhes”, Finney escreveu, “e ele argumenta que tal sistema seria estável, resistente à inflação e autorregulável”.

Em uma aparição no podcast de Peter McCormack What Bitcoin Did [O Que o Bitcoin Fez – tradução nossa] em 2019, Szabo dá crédito a White e a Selgin por terem moldado seu próprio pensamento, explicando que:

“Eu estava pesquisando sobre a história do dinheiro e trabalhando nisso no sentido inverso. Parte da história do dinheiro se deu no setor bancário privado, no qual bancos privados emitiam dinheiro, títulos de dívida, cédulas e George Selgin e Larry White foram os especialistas que li sobre o assunto. Aquilo foi inspirador, mas depois entendemos como tal sistema falhou e foi incorporado pelos bancos centrais e, mais tarde, talvez 100 ou 200 anos depois, os bancos centrais se entregaram ao sistema de moedas fiat/fiduciárias”.

Além da lista de e-mail dos Cypherpunks, White e Selgin participaram de uma lista de e-mail privada distinta com alguns dos Cypherpunks mais proeminentes, chamada “Libtech”, no fim dos anos 1990. Szabo relata, sobre a experiência Libtech, que “Wei Dai, Hal Finney, Larry White, George Selgin, eu e outros estávamos em uma lista de e-mail que eu criei chamada Libtech e foi lá onde propus o Bitgold [sic], e Wei Dai surgiu com o b-money, e tivemos ótimas discussões ali”.

Em uma discussão de 2019 no Twitter, Szabo deu crédito a White e Selgin por influenciarem Finney e ele sobre como um sistema bancário livre poderia funcionar sob o padrão Bitcoin, sugerindo que tecnologias de camada 2, como a Lightning Network, fornecem uma forma mais confiável e prática de realizá-lo.

 

White e Selgin sobre o Bitcoin

White e Selgin criticam o Bitcoin por ângulos diferentes. Para White, o dinheiro ideal é aquele que tem poder de compra estável (um ponto repetidamente enfatizado por Hayek). Já para Selgin, o dinheiro ideal “estabilizaria o gasto nominal” (ele me disse por e-mail), “enquanto permite que o nível de preço varie com mudanças na condição da produtividade total dos fatores”.

No novo livro de White, Better Money: Gold, Fiat, or Bitcoin?, ele escreve que “[porque] a curva de demanda [do Bitcoin] é vertical, o impacto das mudanças de demanda está totalmente no preço e não na quantidade. Nesse sentido, a volatilidade do poder de compra é incorporada ao design do Bitcoin”. Ele segue, dizendo: “a minha visão é a de que a volatilidade do poder de compra do Bitcoin torna seu uso generalizado como meio de troca muito pouco provável... mas só o tempo dirá”.

Selgin chama o Bitcoin de um “synthetic commodity money”, o que significa que, como uma moeda fiat/fiduciária, qualquer uso não monetário é menos óbvio, mas, como uma commodity, “é natural ou inevitavelmente escassa”. (Ele considera “mero uso de investimento” como não monetário.) Ele também argumenta que a vantagem desse tipo de dinheiro “é precisamente isso, já que, ao se recorrer a ele, pode-se evitar o gerenciamento do dinheiro pelos banqueiros centrais ou por forças ocultas da natureza. Em vez disso, a demanda é determinada artificialmente, de uma vez por todas, por restrições de recursos organizadas”. Ele continua dizendo que “um regime monetário desse tipo poderia funcionar melhor que os atuais regimes de moeda fiat/fiduciária ou que potenciais alternativas de moedas-commodity”, mas enfatiza a improbabilidade de qualquer governo vir a adotá-lo.

Em 1989, White sugeriu a possibilidade de uma política monetária com uma oferta de moeda predeterminada, aplicando uma solução proposta por Ronald Coase ao “problema de comprometimento”. Conforme explicado no novo livro de White, para entender o problema de comprometimento coaseano, podemos pensar em compradores em potencial que podem hesitar em comprar, digamos, obras de arte de um artista hoje, pois sabem que o artista pode mais tarde reproduzir cópias delas e vendê-las a um preço mais baixo a futuros compradores, ainda acima do preço do custo marginal de produção do artista. Uma solução para acalmar potenciais compradores seria o artista numerar cada obra (Nº 7 de 100, por exemplo etc.). Satoshi criou uma quantidade negociada similar na política monetária do Bitcoin. White escreve que “apesar de reconhecer, muitos anos antes da introdução do Bitcoin, que um dispositivo de quantidade negociada poderia, a princípio, resolver o problema coaseano de comprometimento para um dinheiro irresgatável de livre mercado, [...] eu não previ que o dispositivo poderia ou iria, na prática, ser usado para lançar com sucesso um meio de troca”.

Contudo, em uma apresentação feita ao Centro de Educação do Mercado na Malásia, White de fato admite que a volatilidade do poder de compra do Bitcoin poderia ser reduzida se seu uso como meio de troca aumentasse substancialmente, conforme tal uso significasse uma demanda menos volátil. Ele também destaca que a integração dos sistemas bancários ao Bitcoin seria de grande ajuda.

 

Conclusão

Os esforços da longa trajetória de Lawrence H. White e George Selgin para entender melhor o dinheiro basicamente contribuíram para o ambiente de ideias que inevitavelmente moldou o pensamento de, pelo menos, dois dos mais proeminentes cypherpunks – Nick Szabo e Hal Finney –, que trabalharam para tornar algo como o Bitcoin uma realidade.

Se a volatilidade do Bitcoin continuará sendo um obstáculo no caminho de sua eventual adoção generalizada como meio de troca, só o futuro dirá. Como o Bitcoin é um sistema antifrágil altamente descentralizado e sem ativos lastreados no mundo real que possam ser confiscadas para interrompê-lo, e como ele já alcançou alguma escala globalmente, parece (para mim) que ele é o único candidato realista para (por uma “forma discreta e indireta”, conforme proposto por Hayek) introduzir algo que o governo não consegue deter. Como tal, a volatilidade pode ser o preço a pagarmos para vencermos a longo prazo.

 

Nota do autor: Eu tenho que agradecer ao capítulo 5 do livro do professor White, Better Money, por ter me alertado sobre diversas fontes referidas neste artigo. Além disso, uma versão similar deste artigo foi originalmente publicada em inglês pelo American Institute for Economic (AIER).

 

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Nota: as visões expressas no artigo não são necessariamente aquelas do Instituto Mises Brasil.

Sobre o autor

Emile Phaneuf III

Possui mestrado (duplo diploma) em Economia pela OMMA Business School Madrid e pela Universidad Francisco Marroquín, bem como mestrado em Ciência Política pela Universidade de Arkansas.

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