Anarquia e Bitcoin
Desde o fim dos anos 1980 até o início dos 2000, os Cypherpunks – um grupo de criptógrafos, matemáticos, cientistas da computação e ativistas – trabalharam para construir o que declararam ser um “Vale de Galt no ciberespaço” criptoanarquista. Esse local virtual permitiria que indivíduos ao redor do mundo estabelecessem relações comerciais, com o direito à propriedade garantido, contratos sendo firmados e utilizando-se de sua própria moeda digital nativa. Esses Cypherpunks são vastamente creditados por terem influenciado diretamente o desenvolvimento de projetos como Tor, clientes anônimos de redirecionamento de e-mails, criptografia PGP de e-mail, OTR para criptografia de bate-papo, BitTorrent, Wikileaks, o Silk Road, e, obviamente, o Bitcoin, tudo isso durante a existência formal do grupo e depois disso.
Como a própria existência do Bitcoin deriva do conjunto de ideias que esses Cypherpunks adotaram, vale a pena explorar suas raízes anarquistas.
Segundo Timothy C. May, um dos fundadores dos Cypherpunks e um de seus membros mais influentes, a criptoanarquia foi um conceito inspirado nas obras do economista David D. Friedman, do autor de ficção científica Vernor Vinge e da filósofa Ayn Rand.
O livro de Friedman, As engrenagens da liberdade, publicado primeiramente em 1973 e hoje em sua terceira edição, defende o anarcocapitalismo, explorando como várias sociedades ao longo da história, em graus variados, protegeram a propriedade, solucionaram disputas, garantiram contratos e se defenderam sem o Estado.
May faz referência ao conto True Names de Vinge. No fim das contas, Friedman também impactou o pensamento de Vinge. Em uma entrevista, Vinge cita ter sido inspirado por As engrenagens da liberdade, dizendo que Friedman instigou nele uma profunda “revolução intelectual interna”.
A inspiração de Friedman para a anarquia
De onde veio a anarquia de David Friedman? Friedman enviou-me um e-mail confirmando que o livro de Robert Heinlein, The Moon is a Harsh Mistress, foi uma influência primária da anarquia. Em uma entrevista sobre o conto, Friedman declara que:
“[…] provia uma imagem fictícia de uma sociedade na qual a lei e o cumprimento da lei são endógenos […], feitos dentro do próprio sistema. Até onde sei, era uma imagem internamente coerente [...]. Até onde posso afirmar pela leitura, não há razão específica pelo qual não teria funcionado sob aquelas circunstâncias [...]. Uma vez convencido de que era possível existir uma sociedade na qual a lei e a execução da lei fossem internas ao sistema de mercado, em vez de impostas de fora, isso me interessou na questão de como se poderia fazer algo equivalente no mundo em que, de fato, eu vivia…”.
Friedman destaca rapidamente que, se tivesse mais conhecimento de história e antropologia na época, poderia não ter precisado da ficção de Heinlein para chegar a essas conclusões, já que ele mais tarde descobriu que não havia escassez de exemplos do mundo real.
Ele também dedicou As engrenagens da liberdade a seu pai, o economista Milton Friedman, a F.A. Hayek, a Robert Heinlein e a Robert Schuchman. Quando perguntado sobre a contribuição de Hayek para o seu livro, ele responde que foi a “distinção entre uma organização e uma ordem autogerada” de Hayek. Friedman era intrigado pela ideia de que “uma economia de mercado não tem um propósito” da forma que clubes ou corporações têm. Isso significa dizer que muitos indivíduos, com seus diferentes objetivos individuais, ainda podem coordenar seus planos. Nas palavras de Friedman, “um conjunto de pessoas com propósitos diferentes ainda conseguem interagir e coordenar suas atividades”.
A influência de Friedman sobre May
Em 1988, Timothy May defendeu uma sociedade criptoanarquista em seu “Crypto Anarchist Manifesto” e mencionou repetidamente Friedman e As engrenagens da liberdade em um mailing-list Cypherpunk e em outros escritos.
Entretanto, além da anarquia em geral, May também teve a oportunidade de verificar os escritos de Friedman sobre moeda. A segunda edição do livro de Friedman, publicada em 1989, na época em que os Cypherpunks estavam só começando, contém um capítulo chamado “Um mercado para a moeda”. Esse capítulo (que também cita a obra do economista Lawrence H. White sobre moedas privadas) afirma que, “em vez de discutir se o governo deveria retornar ao padrão ouro, deveríamos pensar se o governo deveria mesmo produzir dinheiro”, e que se poderiam desenvolver moedas privadas que “não dependessem da sabedoria ou benevolência de pessoas designadas para administrar a oferta monetária”. Aqui vemos a ideia de Hayek de concorrência de moedas integrada às ideias mais anarquistas de Friedman – que foram rapidamente adotadas pelos Cypherpunks.
A paixão de May pela criptoanarquia era compartilhada pelo Cypherpunk e engenheiro de computação Wei Dai, cujo ensaio de 1998, “b-money”, descreveu como uma criptomoeda poderia funcionar (e que, a propósito, foi listado nas referências do artigo técnico de Satoshi Nakamoto sobre o Bitcoin). Em seu ensaio, Dai escreveu que “estava fascinado pela criptoanarquia de Tim May”.
Nota: Embora tenha esbarrado nas ideias de Murray Rothbard (outro pioneiro no pensamento anarcocapitalista), não encontrei menções a Rothbard em qualquer escrito de May da era Cypherpunk. Então, os escritos de May sobre o anarcocapitalismo, seu conceito de “criptoanarquia”, tiveram em Friedman sua principal influência.
A influência (tardia) de Timothy C. May sobre Friedman
May notou que Friedman estava ficando interessado na combinação das ideias de criptografia e anarquia. Ele escreveu no mailing Cypherpunk como Friedman “converteu-se” à criptoanarquia, tendo inclusive realizado uma palestra a respeito em Los Angeles.
Friedman afirmou em uma apresentação no Independent Institute em 2001 que “a história fundamental dessas ideias é que eu as roubei de um monte de pessoas chamadas ‘Cypherpunks’, cujo líder era Tim May – e ele roubou algumas delas de mim... e eu as roubei de volta dele”. Friedman até dedicou seu livro Future Imperfect a May (entre outros), e, de fato, o livro aborda as próprias contribuições de Friedman a muitas das mesmas ideias tecnológicas com as quais os Cypherpunks lidavam.
Conclusão
Timothy May previu – e alguns Cypherpunks trabalharam para criar – uma sociedade digital (às vezes) oculta (inspirada pelas obras fictícias de Ayn Rand e Vernor Vinge) que essencialmente existiria em um estado de anarquia (inspirado por David Friedman). No contexto do ciberespaço, isso significava que indivíduos de todo o mundo, com objetivos muito diferentes, poderiam coordenar seus planos, graças à interconectividade de computadores ao redor do mundo, software de código aberto e inovações tecnológicas em criptografia.
O Bitcoin em si é uma moeda que poderia ser melhor considerada existindo em um estado de anarquia. De fato, foi projetado, mas sua governança descentralizada opera de forma que nenhuma parte envolvida (mineradores, operadores de node, programadores, usuários, corretoras, desenvolvedores de carteiras ou processadores de pagamentos) a controlam. Assim, ela tem governança, regras objetivas que cada parte precisa seguir, mas, como protocolo, não está submetida a nenhum Estado.
A leitura de Friedman sobre a ficção científica de Heinlein permitiu que ele imaginasse uma sociedade “na qual a lei e a execução da lei fossem internas ao sistema de mercado, em vez de impostas de fora”, e quando começou a buscá-la, encontrou muitos exemplos disso no mundo real.
Para além da ficção, Friedman também pegou a ideia de uma “ordem autogerada” e levou às suas conclusões lógicas: a anarquia – para além do que Hayek se sentiu confortável em fazer. Sua forma criativa de pensar sobre como indivíduos com fins muito diferentes poderiam coordenar seus planos era instrumental para o pensamento dos Cypherpunks, cujas ideias e trabalhos eventualmente nos levaram ao que hoje chamamos de Bitcoin.
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