Esse site usa cookies e dados pessoais de acordo com os nossos Termos de Uso e Política de Privacidade e, ao continuar navegando neste site, você concorda com suas condições.

< Artigos

Economia

O papel das ideias

29/05/2023

O papel das ideias

A razão humana

A razão é o traço particular e característico do homem. Não é necessário, à praxeologia, procurar saber se a razão é um instrumento adequado para a percepção da verdade final e absoluta. A praxeologia lida com a razão apenas na medida em que esta habilita o homem a agir.

Todos os objetos que são o substrato da sensação, percepção e observação humanas também passam diante dos sentidos dos animais. Mas somente o homem tem a faculdade de transformar estímulos sensoriais em observações e experiência. E somente o homem pode ordenar suas várias observações e experiências num sistema coerente.

O pensamento precede a ação. Pensar é deliberar sobre a ação antes de agir, e refletir em seguida sobre a ação efetuada. Pensar e agir são inseparáveis. Toda ação está sempre baseada numa ideia específica quanto a relações causais. Quem pensa uma relação causal, pensa um teorema. Ação sem pensamento e prática sem teoria são inimagináveis. O raciocínio pode ser falso e a teoria incorreta; mas o pensamento e a teoria estão presentes em toda ação. Por outro lado, pensar implica sempre imaginar uma futura ação. Mesmo quem pensa sobre uma teoria pura pressupõe que a teoria é correta, isto é, que uma ação efetuada de acordo com o seu conteúdo teria por resultado um efeito compatível com seus ensinamentos. Para a lógica, o fato de esta ação ser factível ou não é irrelevante.

É sempre o indivíduo que pensa. A sociedade não pensa, da mesma forma que não come nem bebe. A evolução do raciocínio humano, desde o pensamento simples do homem primitivo até o pensamento mais sutil da ciência moderna, ocorreu no seio da sociedade. Não obstante, o pensamento em si é uma façanha individual. Existe ação conjunta, mas não pensamento conjunto. Existe apenas a tradição, que preserva e transmite pensamentos a outros, como um estímulo para sua reflexão. Entretanto, o homem não tem como se apropriar dos pensamentos de seus precursores, a não ser repensando-os de novo. Só então, partindo da base dos pensamentos de seus predecessores, terá condições de ir mais adiante. O principal veículo da tradição é a palavra. O pensamento está ligado à palavra e vice-versa. Os conceitos estão embutidos em termos. A linguagem é uma ferramenta do pensamento, como também da ação na sociedade.

A história do pensamento e das ideias é um discurso transmitido de geração em geração. O pensamento de uma época se apoia no pensamento das épocas anteriores. Sem esta ajuda, o progresso intelectual teria sido impossível. A continuidade da evolução humana, semeando para a descendência e colhendo no solo preparado e cultivado pelos ancestrais, se manifesta também na história da ciência e das ideias. Herdamos dos nossos antepassados não apenas uma provisão de vários tipos de bens que são a fonte de nossa riqueza material; herdamos também ideias e pensamentos, teorias e tecnologias, às quais nosso pensamento deve a sua produtividade.

Mas pensar é sempre uma manifestação individual.

 

Visão de mundo e ideologia

As teorias que orientam a ação são frequentemente imperfeitas e insatisfatórias. Podem ser contraditórias e, portanto, inadequadas à ordenação em um sistema amplo e coerente.

Se considerarmos como um conjunto coerente todas as teorias que guiam a conduta de certos indivíduos ou grupos e tentarmos ordená-las tanto quanto possível em um sistema, isto é, um corpo abrangente de conhecimento, pode-se qualificar tal sistema de visão de mundo. Uma visão de mundo é, como teoria, uma interpretação de todas as coisas e, como norma para ação, uma opinião quanto a melhor maneira de diminuir o desconforto na medida do possível. Uma visão de mundo, portanto, é, por um lado, uma explicação de todos os fenômenos e, por outro, uma tecnologia, ambos os termos considerados no seu sentido mais amplo. A religião, a metafísica e a filosofia almejam fornecer uma visão de mundo. Interpretam o universo e aconselham aos homens uma maneira de agir.

O conceito de ideologia é menos amplo do que o de visão de mundo. Ao nos referirmos à ideologia, temos em mente apenas a ação humana e a cooperação social. Problemas decorrentes da metafísica, de dogmas religiosos ou das ciências naturais, assim como das tecnologias que deles derivam, não são considerados. Ideologia é o conjunto de todas as nossas doutrinas relativas à conduta individual e às relações sociais. Tanto a visão de mundo como a ideologia vão além dos limites impostos a um estudo, neutro e acadêmico, das coisas como são na realidade. Não são apenas teorias científicas, mas também doutrinas acerca do que deveria ser, isto é, acerca dos fins últimos que o homem deveria pretender atingir nas suas preocupações terrenas.

O ascetismo ensina que o único meio de que o homem dispõe para remover a dor e atingir a quietude plena, a alegria e a felicidade é a renúncia às preocupações terrenas e mundanas. Não há salvação fora da renúncia ao bem-estar material, da aceitação passiva das adversidades da peregrinação terrestre e da dedicação exclusiva à preparação para a glória eterna. Entretanto, o número daqueles que coerente e sistematicamente adotam os princípios do ascetismo é tão pequeno, que não é fácil citar mais do que alguns poucos nomes. Parece que a passividade completa recomendada pelo ascetismo contraria a natureza. A atração pela vida triunfa. Os princípios ascéticos têm sido adulterados. Até os mais beatos eremitas, contrariando seus princípios rígidos, fazem concessões à vida e às preocupações terrenas. Mas, quando alguém considera um interesse material e substitui ideais puramente vegetativos pelo reconhecimento da importância das coisas deste mundo, por mais que esta atitude seja incompatível com as doutrinas que professa, estará lançando uma ponte que o liga aos que aprovam a realização de fins temporais. Ao fazê-lo, passa a ter algo em comum com todas as demais pessoas.

Sobre coisas que nem o raciocínio puro nem a experiência são capazes de elucidar, o pensamento humano pode diferir tão radicalmente ao ponto impedir a realização de qualquer acordo. Nesta esfera onde a livre fantasia da mente não sofre restrição – nem do pensamento lógico, nem da experiência sensorial —, o homem pode dar vazão à sua individualidade e à sua subjetividade. Nada é mais pessoal do que as noções e imagens sobre a transcendência. Os termos da linguagem são incapazes de transmitir o que é dito sobre o transcendente; ninguém pode afirmar que aquele que escuta lhes atribui o mesmo sentido que lhes é atribuído por aquele que fala. Em relação a coisas que estão além da compreensão, não pode haver acordo. As guerras religiosas são as mais terríveis, porque são empreendidas sem qualquer perspectiva de conciliação.

Mas, quando se trata de coisas terrenas, a afinidade natural de todos os homens e a identidade das condições biológicas necessárias à preservação da vida entram em cena. A maior produtividade da cooperação sob a divisão do trabalho torna a sociedade o principal meio de que dispõe qualquer indivíduo para atingir seus próprios fins, quaisquer que eles sejam. A manutenção da cooperação social e sua progressiva intensificação tornam-se do interesse de todos.

Qualquer visão de mundo e qualquer ideologia que não estejam inteiramente e incondicionalmente comprometidas com a prática do ascetismo e com a reclusão anacorética devem prestar atenção ao fato de que a sociedade é o grande meio para atingir objetivos temporais. Sendo assim, surge uma base comum da qual se deve partir para resolver os problemas secundários e os detalhes da organização da sociedade. Por mais que as várias ideologias sejam conflitantes entre si, estarão sempre de acordo numa questão: a conveniência de se manter a vida em sociedade.

Este fato, às vezes, passa despercebido porque, ao lidar com filosofias e ideologias, as pessoas se preocupam mais com o que essas doutrinas afirmam em relação às coisas transcendentes e impenetráveis e menos com o que postulam em relação às atividades terrenas. Entre as várias partes de um sistema ideológico, frequentemente, existe um abismo intransponível. Para o agente homem, somente os ensinamentos que resultam em preceitos de ação têm realmente importância, e não as doutrinas puramente acadêmicas, que não se aplicam no quadro da cooperação social. Podemos deixar de considerar a filosofia do ascetismo como consistente e inflexível, uma vez que tão rígido ascetismo resultaria, necessariamente, na extinção de seus adeptos. Todas as outras ideologias, ao admitirem a procedência das preocupações terrenas, são forçadas, em alguma medida, a reconhecer o fato de que a divisão do trabalho é mais produtiva do que o trabalho isolado. Reconhecem, portanto, a necessidade da cooperação social.

A praxeologia e a economia não têm condições de examinar os aspectos transcendentes e metafísicos de qualquer doutrina. Mas, por outro lado, nenhum apelo a dogmas e credos, religiosos ou metafísicos, pode invalidar os teoremas e teorias relativos à cooperação social como elaborados pelo raciocínio praxeológico correto. Se uma filosofia admite a necessidade de laços sociais entre os homens, ela se coloca, quanto aos problemas de ação em sociedade, numa posição básica da qual não se pode afastar apelando para convicções pessoais ou profissões de fé insusceptíveis de um rigoroso exame pelos métodos racionais.

Este fato fundamental é frequentemente ignorado. As pessoas creem que diferentes visões de mundo criam conflitos irreconciliáveis. Os antagonismos básicos entre partidos comprometidos com diferentes visões de mundo não podem, dizem essas pessoas, ser resolvidos pelo compromisso. Derivam das profundezas da alma humana e são a expressão da comunhão inata do homem com as forças sobrenaturais e eternas. Não pode haver, jamais, cooperação entre pessoas separadas por diferentes visões de mundo.

Entretanto, se examinarmos os programas de todos os partidos – tanto os programas habilmente elaborados e difundidos, como aqueles que os partidos realmente adotam quando no poder —, podemos facilmente denunciar o caráter falacioso dessa interpretação. Todos os partidos políticos de nossos dias têm por objetivo o bem-estar material e a prosperidade de seus adeptos. Prometem proporcionar condições econômicas mais satisfatórias aos seus seguidores. Neste particular, não há diferença entre a Igreja Católica Romana e as várias confissões protestantes, quando se envolvem em questões sociais e políticas; nem entre o cristianismo e as religiões não cristãs, ou entre os defensores da liberdade econômica e as várias espécies de materialismo marxista, ou entre nacionalistas e internacionalistas, ou entre racistas e amigos da paz internacional. É verdade que muitos desses partidos acreditam que só poderão prosperar a expensas de outros partidos e chegam a considerar a aniquilação ou a submissão de outros grupos como condição necessária à prosperidade do seu grupo. Entretanto, o extermínio ou a submissão de outros não é o objetivo final, mas um meio de atingir aquilo a que visam como objetivo final o florescimento do seu próprio grupo. Se percebessem que os seus próprios desígnios são inspirados por teorias espúrias que não conduzirão aos resultados esperados, mudariam os seus programas.

As declarações pomposas que as pessoas fazem sobre coisas incognoscíveis e que transcendem o poder da mente humana, suas cosmologias, visões de mundo, religiões, misticismos, metafísicas e fantasias conceituais, diferem bastante umas das outras. Mas a essência prática de suas ideologias, isto é, seus ensinamentos relativos aos fins a serem atingidos na vida terrena e os meios para consecução desses fins, mostram muita semelhança. Existem, sem dúvida, diferenças e antagonismos em relação tanto aos fins quanto aos meios. Entretanto, as diferenças em relação a fins não são irreconciliáveis; não se opõem à cooperação e ao ajuste amigável no campo da ação em sociedade. Na medida em que as divergências sejam apenas de meios e modos, são de caráter técnico e, como tal, passíveis de exame por métodos racionais. Quando, no calor de conflitos partidários, uma das facções declara: “não podemos prosseguir nossas negociações com você porque estamos diante de uma questão que afeta a nossa visão de mundo; neste particular devemos ser inflexíveis e fiéis aos nossos princípios, haja o que houver”, basta examinar o assunto mais detidamente para perceber que o antagonismo não é tão sério como parece. De fato, para todos os partidos comprometidos com a promoção do bem-estar material das pessoas e, portanto, em favor da cooperação social, questões de organização social e da condução da ação em sociedade não são problemas de princípios fundamentais nem de visões de mundo, mas apenas questões ideológicas. São problemas técnicos em relação aos quais algum acordo é sempre possível. Nenhum partido preferiria, deliberadamente, a desintegração social, a anarquia e o retorno ao barbarismo primitivo a uma solução que custasse o sacrifício de algum aspecto ideológico.

Num programa partidário, estas questões técnicas têm, certamente, uma grande importância. Um partido está comprometido com certos meios; recomenda certos métodos de ação política e rejeita inteiramente todos os outros métodos e políticas, por julgá-los inadequados. Um partido é um corpo que reúne homens desejosos de empregar os mesmos meios de ação. O que diferencia os homens e forma os partidos é a escolha dos meios. Portanto, para o partido como tal, os meios escolhidos são essenciais. Um partido acaba, se a inutilidade dos meios que recomenda se tornar evidente. Os líderes partidários, cujo prestígio e carreira política estão ligados ao programa do partido, podem ter amplos motivos para recusar a discussão aberta de seus princípios; podem atribuir-lhes o caráter de fins últimos que não devem ser questionados por estarem baseados numa visão de mundo. Mas para as pessoas em nome de quem os líderes partidários pretendem agir, para os eleitores que eles desejam atrair e cujos votos cabalam, as coisas se apresentam de outra maneira. Essas pessoas não fazem objeção a que se examine cada ponto do programa partidário. Consideram tal programa apenas uma recomendação de meios a serem usados para atingir seus próprios fins, qual seja o bem-estar na terra.

O que divide esses partidos que se dizem representativos de uma visão de mundo, isto é, partidos comprometidos com decisões basicamente filosóficas sobre os fins últimos, é apenas um desacordo aparente quanto aos fins últimos. Seus antagonismos se referem ou a crenças religiosas, ou a problemas de relações internacionais, ou a problemas de propriedade dos meios de produção, ou a problemas de organização política. Pode-se demonstrar que todas estas controvérsias são concernentes a meios e não a fins últimos.

Comecemos pelos problemas da organização política de uma nação. Existem defensores de um sistema democrático de governo, da monarquia hereditária, da administração por uma autodenominada elite e de uma ditadura cesarista.¹ É verdade que esses programas frequentemente são recomendados por referência a instituições divinas, a leis eternas do universo, à ordem natural, à inevitável tendência da evolução histórica e a outros conceitos transcendentais.

Tais afirmativas não passam de ornamentos acidentais. Ao apelar aos eleitores, os partidos apresentam outros argumentos. Querem mostrar que o sistema que defendem será mais bem-sucedido do que o proposto por outros partidos na realização dos fins visados pelos cidadãos. Enumeram os resultados benéficos alcançados no passado ou em outros países; atacam o programa dos outros partidos, relatando seus fracassos. Recorrem tanto ao raciocínio puro como à interpretação da experiência histórica para demonstrar a superioridade de suas propostas e a futilidade de seus adversários. O argumento principal é sempre: o sistema político que defendemos os fará mais prósperos e mais felizes.

No campo da organização econômica da sociedade, existem os liberais – que defendem a propriedade privada dos meios de produção —, os socialistas – que defendem a propriedade pública dos meios de produção – e os intervencionistas – que defendem um terceiro sistema que, no seu entender, está equidistante do socialismo e do capitalismo. No entrechoque desses partidos também se discute muito sobre questões filosóficas básicas. As pessoas falam da liberdade verdadeira, de igualdade, de justiça social, dos direitos do indivíduo, de comunidade, de solidariedade e de humanitarismo. Mas cada partido pretende demonstrar, pelo raciocínio e por referências à experiência histórica, que só o sistema por ele recomendado poderá tornar os cidadãos prósperos e felizes. Dizem ao povo que a realização de um programa elevará o padrão de vida a um nível mais alto do que o decorrente da adoção do programa de qualquer outro partido. Insistem na conveniência e na utilidade de seus planos. É óbvio que não diferem um do outro quanto aos fins, mas apenas quanto aos meios. Todos querem proporcionar o mais elevado nível de bem-estar para a maioria dos cidadãos.

Os nacionalistas asseguram que existem conflitos irreconciliáveis entre os interesses de várias nações, mas que, por outro lado, os interesses de todos os cidadãos na mesma nação podem ser harmonizados. Uma nação só pode prosperar à custa de outras nações; o cidadão individual só pode passar bem se sua nação floresce. Os liberais têm uma opinião diferente. Acreditam que os interesses das várias nações se harmonizam tanto quanto os de vários grupos, classes e camadas da população em uma mesma nação. Acreditam que a cooperação internacional pacífica é um meio, mais apropriado, do que o conflito para atingir o fim pretendido tanto por eles como pelos nacionalistas: o bem-estar de sua própria nação. Não defendem a paz e o comércio livre para trair os interesses de sua própria nação em favor de estrangeiros – como acusam os nacionalistas. Ao contrário, consideram a paz e o comércio livre como o melhor meio de enriquecer a sua própria nação. O que separa os partidários do livre comércio dos nacionalistas não são os fins, mas os meios recomendados para atingir os fins comuns tanto a uns como aos outros.

As divergências relativas a credos religiosos não podem ser resolvidas por métodos racionais. Os conflitos religiosos são de natureza implacável e irreconciliável. Todavia, quando uma confissão religiosa se interessa pela ação política e tenta lidar com os problemas da organização social, ela se obriga a levar em conta preocupações terrenas, embora estas possam ser conflitantes com seus dogmas e seus artigos de fé. Nenhuma religião, em suas atividades esotéricas, jamais se aventurou a dizer francamente: a implantação de nossos planos de organização social vos empobrecerá e reduzirá o vosso bem-estar. Aqueles que estão consistentemente comprometidos com uma vida de pobreza se retiram da cena política e se refugiam na reclusão anacorética. Mas igrejas e confissões religiosas que visam a angariar adeptos e a influenciar as atividades políticas e sociais de seus seguidores estão adotando princípios de conduta seculares. Ao lidarem com as questões da peregrinação terrestre do homem, são praticamente iguais a qualquer outro partido político. Ao solicitar apoio, enfatizam, mais do que a glória eterna, as vantagens materiais que prometem conseguir para os seus companheiros de fé.

Somente uma visão de mundo cujos adeptos renunciassem a toda atividade terrena, qualquer que ela fosse, poderia negligenciar a importância das comunicações racionais que provam ser a cooperação social o grande meio para atingir todos os objetivos do homem. Uma vez que o homem é um animal social que só pode prosperar em sociedade, todas as ideologias são forçadas a reconhecer a importância primordial da cooperação social. Necessariamente, visam a mais satisfatória organização da sociedade e, necessariamente, aprovam a preocupação do homem em aumentar o seu bem-estar material. Portanto, todas as ideologias se colocam sobre um mesmo terreno, que lhes é comum. O que as distingue umas das outras não são as visões de mundo nem as questões transcendentes insusceptíveis de um exame racional, mas sim os meios e caminhos que escolhem. Tais antagonismos ideológicos podem ser meticulosamente examinados pelos métodos científicos da praxeologia e da economia.

 

A luta contra o erro

Um exame crítico dos sistemas filosóficos elaborados pelos grandes pensadores da humanidade tem frequentemente revelado fissuras e falhas na impressionante estrutura desses corpos de pensamento universal, aparentemente consistentes e coerentes. Mesmo o gênio, ao delinear uma visão de mundo, nem sempre consegue evitar contradições e silogismos falaciosos.

As ideologias aceitas pela opinião pública são ainda mais infestadas por essas deficiências da mente humana. São, em sua maior parte, justaposições ecléticas de ideias totalmente incompatíveis entre si. Não resistem a um exame lógico de seu conteúdo. Suas inconsistências são irremediáveis e desafiam qualquer tentativa de juntar suas várias partes num sistema de ideias compatíveis umas com as outras.

Alguns autores tentam justificar as contradições das ideologias universalmente aceitas ao ressaltar as alegadas vantagens de um compromisso que, embora insatisfatório do ponto de vista lógico, favoreça o funcionamento tranquilo das relações inter-humanas. Referem-se à falácia muito popular contida na afirmação de que a vida e a realidade são “ilógicas”; sustentam que um sistema contraditório pode revelar sua conveniência ou, mesmo, sua verdade, por funcionar satisfatoriamente; enquanto que um sistema logicamente consistente poderia resultar num desastre. Não há necessidade de refutar novamente tais erros tão populares. O pensamento lógico e a vida real não são órbitas distintas. A lógica é o único meio de que o homem dispõe para dominar os problemas da realidade. O que é contraditório em teoria é não menos contraditório na realidade. Nenhuma inconsistência ideológica pode proporcionar uma solução satisfatória, ou seja, uma solução para os problemas que os fatos da realidade nos apresentam. O único efeito das ideologias contraditórias é esconder os problemas reais e, consequentemente, impedir as pessoas de encontrarem a tempo a política adequada para resolvê-los. As ideologias inconsistentes podem, às vezes, adotar a eclosão de um conflito evidente. Mas certamente agravam os males que escondem e tornam uma solução final mais difícil. Multiplicam as agonias, intensificam os ódios e tornam impossível o ajuste pacífico. É um erro crasso considerar contradições ideológicas como inofensivas ou mesmo benéficas.

O objetivo principal da praxeologia e da economia é substituir os credos contraditórios do ecletismo popular por ideologias consistentes e corretas. Não há outro meio de prevenir a desintegração social e de salvaguardar o constante melhoramento das condições humanas, a não ser aquele que nos proporciona a razão. Os homens devem tentar examinar a fundo todos os problemas que lhes afetam até o ponto além do qual a mente humana não consegue avançar. Não devem se conformar com quaisquer soluções transmitidas pelas gerações anteriores, devem sempre questionar novamente toda teoria e todo teorema; não devem jamais relaxar seus esforços para eliminar as ideias falsas e para encontrar o melhor conhecimento possível. Devem lutar contra o erro, desmascarando as doutrinas espúrias e divulgando a verdade.

Os problemas em questão são puramente de ordem intelectual e, como tal, devem ser tratados. É desastroso deslocá-los para o plano moral e desembaraçar-se dos partidários de ideologias rivais qualificando-os como vilãos. É inútil insistir na afirmação de que nossos propósitos são bons e os de nossos adversários são maus. A questão a ser resolvida é, precisamente, o que deve ser considerado bom ou mau. O dogmatismo rígido, peculiar aos grupos religiosos e aos marxistas, resulta apenas num conflito irreconciliável. Condena de antemão todos os dissidentes como malfeitores, põe em dúvida sua boa-fé, exige-lhes rendição incondicional. Nenhuma cooperação social é possível onde prevaleça uma atitude deste gênero.

Pior ainda é a propensão, bastante popular hoje em dia, para qualificar de lunáticos os partidários de outras ideologias. Os psiquiatras não são capazes de precisar a fronteira entre sanidade e insanidade. Seria absurdo o leigo pretender interferir nesta questão fundamental da psiquiatria. Entretanto, é claro que, se o simples fato de alguém defender opiniões erradas e conformar seus atos a esses erros o caracteriza como doente mental seria difícil encontrar uma pessoa a quem se pudesse atribuir o epíteto de são ou normal. Neste caso, teríamos que considerar como loucas todas as gerações passadas, porque suas ideias sobre os problemas das ciências naturais e, concomitantemente, suas técnicas eram diferentes das nossas. As futuras gerações nos chamarão de loucos pela mesma razão. O homem está sujeito ao erro. Se errar fosse o traço característico da incapacidade mental, então todos deveriam ser considerados como mentalmente incapazes.

O fato de um homem discordar da opinião da maioria de seus contemporâneos não basta para qualificá-lo de lunático. Acaso eram loucos Copérnico, Galileu e Lavoisier? É próprio do curso normal da história que o homem conceba novas ideias, contrárias àquelas de outras pessoas. Algumas dessas ideias são, mais tarde, incorporadas ao sistema de conhecimento considerado como verdadeiro pela opinião pública. Seria admissível aplicar o epíteto “são” apenas às pessoas rústicas, que nunca tiveram ideias próprias, e negá-lo a todos os inovadores?

O procedimento de alguns psiquiatras contemporâneos é verdadeiramente ultrajante. São totalmente ignorantes das teorias da praxeologia e da economia. Seu conhecimento das ideologias atuais é superficial e acrítico. Não obstante, levianamente, chamam de paranoicos os partidários de outras ideologias.

Há pessoas que defendem zelosamente medidas monetárias não ortodoxas, confiantes em que tais medidas farão com que todos prosperem. Seus planos são ilusórios. Entretanto, são a aplicação consistente de uma ideologia monetária inteiramente aprovada pela opinião pública contemporânea e adotada por quase todos os governos. As objeções levantadas pelos economistas contra estes erros ideológicos não são levadas em consideração pelos governos, pelos partidos políticos e pela imprensa.

As pessoas não familiarizadas com a teoria econômica geralmente acreditam que a expansão do crédito e o aumento na quantidade de dinheiro em circulação são meios eficazes para diminuir a taxa de juros e mantê-la abaixo do nível que atingiria num mercado de capitais e empréstimos não manipulados. Esta teoria é completamente ilusória.² Não obstante, serve de guia à política monetária e creditícia de quase todos os governos contemporâneos. Ora, com base nessa ideologia defeituosa, não se podem objetar os planos preconizados por Pierre Joseph Proudhon, Ernest Solvay, Clifford Hugh Douglas e uma legião de outros aspirantes a reformadores. Eles são apenas mais consistentes do que outras pessoas. Querem reduzir a taxa de juros a zero e, assim, abolir ao mesmo tempo a escassez de “capital”. Quem quiser refutá-los terá de condenar as teorias subjacentes às políticas monetárias e creditícias das grandes nações.

O psiquiatra poderia redarguir que o que caracteriza um homem como lunático é precisamente a falta de moderação e a atitude extremista. Enquanto o homem normal é judicioso o bastante para se controlar, o paranoico ultrapassa todos os limites. Essa resposta não é satisfatória. Todos os argumentos usados em favor da tese de que a taxa de juros pode ser reduzida, pela expansão creditícia, de 5 ou 4% para 3 ou 2%, são igualmente válidos para reduzi-la a zero. À luz das falácias monetárias normalmente aceitas pela opinião pública, os monetaristas que defendem medidas não ortodoxas estão certos.

Há psiquiatras que consideram lunáticos os alemães que esposaram os princípios do nazismo, e pretendem curá-los por procedimentos terapêuticos. Estamos novamente diante do mesmo problema. As doutrinas do nazismo são condenáveis, mas na essência não diferem das ideias socialistas e nacionalistas aceitas pela opinião pública de outros países. O que caracterizou os nazistas foi apenas a aplicação consistente dessas ideologias à situação específica da Alemanha. Como todas as outras nações da mesma época, os nazistas desejavam o controle governamental da atividade econômica, bem como a autossuficiência, ou seja, a autarquia econômica para seu próprio país. O traço característico de sua política foi a recusa em aceitar as desvantagens que a adoção do mesmo sistema por outras nações lhes imporia. Não estavam dispostos a ficarem eternamente “prisioneiros”, como diziam numa área relativamente superpovoada, na qual as condições físicas tornavam a produtividade do esforço humano menor do que em outras áreas. Acreditavam que suas grandes cifras populacionais, a favorável posição geográfica de seu país, do ponto de vista estratégico, e a proverbial vitalidade e bravura de suas forças armadas lhes proporcionariam uma boa chance para remediar, pela agressão, os males que deploravam.

Ora, quem aceita como verdadeira a ideologia do nacionalismo e do socialismo, adotando-a como padrão para a política de sua própria nação, não está em condições de refutar as conclusões que os nazistas delas extraíram. O único meio de refutar o nazismo de que dispunham as nações que adotaram aqueles dois princípios foi derrotar os nazistas numa guerra. E, enquanto a ideologia do socialismo e do nacionalismo dominar a opinião pública mundial, os alemães ou outros povos tentarão de novo recorrer à agressão e à conquista, se acaso lhes surgir uma nova oportunidade. Não há esperança de que a mentalidade agressiva seja erradicada, se as falácias ideológicas que a condicionam não forem inteiramente refutadas. Esta não é uma tarefa para psiquiatras, mas para economistas.³

O homem só dispõe de um instrumento para combater o erro: a razão.

 

O poder

A sociedade é um produto da ação humana. A ação humana é conduzida pelas ideologias. Portanto, a sociedade e qualquer ordenamento concreto dos assuntos sociais são fruto de ideologias; as ideologias não são, como supõe o marxismo, o produto de certo estágio da sociedade. Seguramente, os pensamentos e ideias do homem não são uma realização de indivíduos isolados. O próprio pensamento só prospera através da cooperação entre os pensadores. Nenhum indivíduo poderia fazer progredir o seu raciocínio se tivesse necessidade de repensar tudo de novo. O homem só pode avançar seu pensamento porque seus esforços se apoiaram sobre os de gerações passadas, que forjaram as ferramentas do pensamento, os conceitos e as terminologias, e formularam os problemas.

Toda ordem social existente foi pensada e imaginada antes de ser realizada. Esta precedência temporal e lógica do fator ideológico não significa que alguém formule um plano completo de organização social à maneira dos utopistas. O que é pensado antes não é um sistema integrado de organização social que ajuste as ações individuais; o que é e tem que ser pensado antes são as ações de indivíduos em relação aos seus semelhantes e as de grupos de indivíduos já formados em relação a outros grupos. Antes de um homem ajudar seu semelhante a cortar uma árvore, tal cooperação tem de ser imaginada. Antes de se efetuar um ato de escambo, a ideia de mútua troca de bens e serviços tem de ser concebida. Não é necessário que os indivíduos tenham consciência do fato de que essa reciprocidade resulte no estabelecimento de laços sociais e na formação de um sistema social. O indivíduo não planeja e executa ações com o propósito de construir uma sociedade. É a sua conduta e a correspondente conduta dos outros que geram os corpos sociais.

Todo ordenamento social existente é o produto de ideologias previamente pensadas. Numa sociedade, novas ideologias podem surgir e suplantar as mais antigas e assim transformar o sistema social. Não obstante, a sociedade é sempre a criação de ideologias anteriores, tanto no sentido temporal como lógico. A ação é sempre dirigida pelas ideias; realiza o que foi antes pensado.

Se atribuirmos um caráter antropomórfico à ideologia podemos dizer que ela tem poder sobre os homens. Poder é a faculdade ou a capacidade de dirigir ações. Em geral, dizemos apenas que um homem, ou um grupo de homens, é poderoso. Assim sendo, poder se define como a capacidade de dirigir a ação de outras pessoas. Quem tem poder, deve-o a uma ideologia. Somente as ideologias podem conferir a um homem o poder de influenciar a conduta e a escolha de outras pessoas. Alguém só pode vir a ser um líder se estiver apoiado em uma ideologia que torne as outras pessoas dóceis e submissas. O poder, portanto, não é algo tangível e material, mas um fenômeno moral e espiritual. O poder de um rei repousa sobre o reconhecimento da ideologia monárquica por parte de seus súditos.

Quem usa o seu poder para comandar o estado, isto é, o aparato social de coerção e compulsão, governa. Governar é exercer o poder no corpo político. O governo apoia-se sempre no poder, isto é, no poder de dirigir as ações de outras pessoas.

Certamente é possível estabelecer um governo baseado na violenta opressão de pessoas relutantes. O traço característico do estado e do governo consiste no uso da coerção violenta, ou na ameaça de usá-la sobre aqueles que não estão dispostos a ceder voluntariamente. Mas mesmo esta opressão violenta também se baseia no poder ideológico. Quem pretender aplicar a violência necessita da cooperação voluntária de algumas pessoas. Um indivíduo que só possa contar consigo mesmo jamais poderá governar por meio da violência física.4 Necessita do apoio ideológico de um grupo a fim de subjugar outros grupos. O tirano precisa ter um séquito de adeptos que obedeçam, voluntariamente, a suas ordens. Esta espontânea obediência lhe proporciona o aparato necessário para dominar os demais. O sucesso ou o fracasso de sua dominação depende da relação numérica de dois grupos: dos que apoiam voluntariamente e dos que ele domina pela força. Embora um tirano possa governar durante algum tempo apoiado numa minoria, estando essa minoria armada e a maioria não, em longo prazo uma minoria não consegue manter submissa a maioria. Os oprimidos farão uma rebelião para se libertarem do jugo do tirano.

Um sistema durável de governo tem que estar baseado numa ideologia aceita pela maioria. O “verdadeiro” fator – as “forças efetivas” que sustentam o governo e que atribuem aos governantes o poder de usar violência contra grupos minoritários renitentes – é essencialmente ideológico, moral e espiritual. Os governantes que não reconheceram este princípio básico de governo e, confiando na suposta invencibilidade de suas forças armadas, menosprezaram o espírito e as ideias foram finalmente depostos por seus adversários. A interpretação muito comum em diversos livros sobre política e história, que afirma ser o poder um fator “real” não dependente de ideologias, é um equívoco. O termo Realpolitik só tem sentido se usado para designar uma política que considere ideologias comumente aceitas, em contraste com uma política baseada em ideologias não muito conhecidas e, portanto, inadequadas para servir de base a um sistema durável de governo.

Quem interpreta o poder como sendo o poder físico ou “real” de se impor, e considera a ação violenta como a própria origem do governo, vê as coisas do ângulo estreito de um oficial subalterno no comando de uma unidade do exército ou da polícia. A estes subordinados é atribuída uma tarefa específica, na estrutura da ideologia dominante. Seus chefes confiam à sua responsabilidade tropas que não apenas estão equipadas, armadas e treinadas para o combate, como também imbuídas do espírito de obediência às ordens recebidas. Os comandantes dessas unidades menores consideram este fator moral como algo natural, porque eles também estão animados pelo mesmo espírito e nem mesmo podem imaginar outra ideologia. O poder de uma ideologia consiste precisamente no fato de que as pessoas a ela se submetem sem hesitação e sem escrúpulos.

Para o chefe do governo, entretanto, as coisas são diferentes. Ele precisa esforçar-se para preservar a moral das forças armadas e a lealdade do resto da população, uma vez que estes fatores morais são os únicos elementos “reais” sobre os quais repousa a duração do seu domínio. Seu poder definha, se a ideologia que o suporta perde a força.

As minorias também podem, às vezes, assumir o poder por meio de uma maior capacidade militar e estabelecer, assim, o domínio. Mas tal situação não pode ser duradoura. Se os conquistadores vitoriosos não conseguirem converter logo o sistema de dominação pela força num sistema de governo consentido pela adesão dos governados a uma ideologia, sucumbirão em novos combates. Todas as minorias vitoriosas que estabeleceram um sistema de governo duradouro conseguiram prolongar o seu domínio por meio da adoção de uma ideologia, ainda que tardiamente. Legitimaram sua própria supremacia, seja adotando a ideologia dos vencidos, seja transformando-a. Quando não ocorre nem uma nem outra destas duas hipóteses, o grande número de oprimidos desaloja a minoria opressora, quer por rebelião aberta, quer através da silenciosa, mas constante pressão das forças ideológicas.5

Muitas das grandes conquistas históricas puderam durar porque os invasores se aliaram às classes da nação derrotada que tinha o respaldo de ideologia dominante e, assim, foram considerados como governantes legítimos. Foi esse o sistema adotado pelos tártaros na Rússia, pelos turcos nos principados do Danúbio e em grande parte da Hungria e da Transilvânia, e pelos ingleses e holandeses nas Índias Orientais. Um número relativamente insignificante de ingleses podia governar muitas centenas de milhões de indianos, porque os príncipes indianos e a aristocracia proprietária de terras viam na dominação inglesa um meio de preservar seus privilégios e lhe transferiam o apoio que a ideologia aceita pelos indianos em geral dava à sua própria supremacia. O império britânico na Índia foi estável enquanto a ordem social tradicional tinha aprovação da opinião pública. A Pax Britannica salvaguardava os privilégios dos príncipes e dos latifundiários e protegia as massas das agonias de guerras entre principados e de guerras intestinas de sucessão. Nos dias de hoje,6 a infiltração de ideias subversivas provenientes do exterior pôs fim à dominação inglesa e à ameaça de preservação da sua antiga ordem social.

Algumas vezes, minorias vitoriosas devem o seu sucesso a uma superioridade tecnológica. Isto não altera a questão. Em longo prazo, não é possível impedir que a maioria tenha acesso às melhores armas. Foram fatores ideológicos, e não o poder de fogo de suas forças armadas, que garantiram o domínio inglês na Índia.7

A opinião pública de um país pode estar tão dividida ideologicamente, que nenhum grupo seja suficientemente forte para estabelecer um governo durável. Surge, então, a anarquia. As revoluções e os conflitos internos tornam-se permanentes.

 

O tradicionalismo como uma ideologia

O tradicionalismo é uma ideologia que considera a fidelidade a valores, costumes e modos de proceder, transmitidos ou supostamente transmitidos pelos ancestrais, como certa e conveniente. Não é necessário que esses antepassados sejam os ancestrais no sentido biológico do termo, ou possam honestamente ser assim considerados; às vezes, trata-se apenas daqueles que já habitavam o país, ou que eram adeptos da mesma fé religiosa ou simplesmente precursores no exercício de alguma tarefa específica. Para saber quem deve ser considerado um ancestral e qual o conteúdo do corpo de tradição transmitido, é necessário recorrer aos ensinamentos concretos de cada variedade de tradicionalismo. A ideologia destaca alguns dos ancestrais e relega outros ao esquecimento; às vezes, considera como ancestrais pessoas que nem têm relação direta com a suposta descendência. Frequentemente constrói uma doutrina “tradicional” cuja origem é recente e que difere das ideologias realmente sustentadas pelos ancestrais.

O tradicionalismo tenta justificar suas proposições, alegando que deram excelentes resultados no passado. Saber se os fatos confirmam esta assertiva é outra questão. Pela pesquisa, seria possível, em alguns casos, desmascarar erros nas afirmações históricas de uma crença tradicional. Entretanto, isto nem sempre é suficiente para desacreditá-la. Porque a essência do tradicionalismo não está em fatos históricos reais, mas na opinião sobre eles mantida – por mais errada que seja – e no desejo de acreditar em coisas às quais se atribui a autoridade da antiguidade.

 

O meliorismo e a ideia de progresso

As noções de progresso e retrocesso só fazem sentido num sistema teleológico de pensamento. Numa tal estrutura, faz sentido chamar de progresso o aproximar-se da meta desejada, e de retrocesso um movimento na direção oposta. Tais conceitos, se não fazem referência à ação de algum agente e a um objetivo definido, são vazios e desprovidos de sentido.

Uma das deficiências das filosofias do século XIX foi ter interpretado erradamente o significado da mudança cósmica ao introduzir, indevidamente, a ideia de progresso na teoria da transformação biológica. Quando comparamos um determinado estado de coisas com estados anteriores, podemos honestamente usar os termos desenvolvimento e evolução, num sentido neutro. Neste caso, evolução significa o processo que provocou a passagem do estado anterior para o estado atual. Mas devemos prevenir-nos para não cometer o erro fatal que consiste em confundir mudança com melhoria, e evolução com uma passagem para formas superiores de vida. Tampouco é admissível substituir o antropocentrismo religioso e antigas doutrinas metafísicas por um antropocentrismo pseudocientífico.

Não obstante, não é necessário que a praxeologia faça uma crítica desta filosofia. Sua tarefa é refutar os erros contidos nas ideologias correntes.

A filosofia social do século XVIII supunha que a humanidade, finalmente, havia entrado na idade da razão. Enquanto no passado predominaram os erros teológicos e metafísicos, doravante prevaleceria a razão. As pessoas iriam libertar-se cada vez mais das cadeias da superstição e dedicariam todos os seus esforços à melhoria constante das instituições sociais. Cada nova geração daria sua contribuição para essa tarefa gloriosa. Com o tempo, a sociedade se tornaria, cada vez mais, a sociedade dos homens livres, visando ao máximo de felicidade para o maior número de pessoas. É claro que é possível ocorrerem recuos temporários. Mas ao final de tudo triunfaria a boa causa, por ser a causa da razão. As pessoas se diziam felizes por viver uma era de luzes que, pela descoberta das leis que regem a conduta racional, haviam aberto o caminho a uma constante melhoria das condições de vida do homem. Só lamentavam o fato de já serem muito velhas para poder testemunhar todos os benefícios da nova filosofia. “Eu gostaria”, dizia Bentham a Philarète Chasles, “de ter o privilégio de viver os anos que me restam no fim de cada século que se seguir a minha morte; assim, eu poderia testemunhar os efeitos de meus escritos”.8  

Todas essas esperanças se baseavam na firme convicção, própria da época, de que as massas são moralmente boas e razoáveis. As camadas superiores, os aristocratas privilegiados que tinham de tudo, eram considerados depravados. O homem comum, especialmente os camponeses e os operários, eram romanticamente glorificados como nobres e como incapazes de fazer um julgamento errado. Os filósofos estavam, portanto, persuadidos de que a democracia, o governo pelo povo, traria a perfeição social.

Este preconceito foi o erro fatal dos humanitaristas, dos filósofos e dos liberais. Os homens não são infalíveis: ao contrário, erram com frequência. Não é verdade que as massas tenham sempre razão e saibam quais são os melhores meios para atingir os fins. “A crença no homem comum” não é mais bem fundamentada do que a crença nos dons sobrenaturais dos reis, dos padres e dos nobres. A democracia garante um sistema de governo de acordo com os desejos e planos da maioria. Mas não pode impedir as maiorias de serem vítimas de ideias falsas nem de adotarem políticas que não só são inadequadas para atingir os fins pretendidos, como também podem ser desastrosas. As maiorias também podem errar e destruir a nossa civilização. A boa causa não triunfará apenas por ser razoável e conveniente. Somente se os homens forem capazes de adotar políticas razoáveis e suscetíveis de atingir os fins por eles mesmos desejados, a civilização se aperfeiçoará e a sociedade e o estado poderão fazer com que os homens fiquem mais satisfeitos, embora não felizes num sentido metafísico. Se esta condição se concretizará ou não, só o futuro imprevisível poderá revelar.

Não há lugar, num sistema praxeológico, para o meliorismo ou para o fatalismo otimista. O homem é livre no sentido de ter que escolher de novo, diariamente, entre políticas que conduzem ao sucesso e políticas que conduzem ao desastre, à desintegração social e ao barbarismo.

O termo progresso não faz sentido quando aplicado a eventos cósmicos ou a uma visão de mundo abrangente. Não temos informações acerca dos planos da fonte de energia que primeiro moveu o mundo. Mas o problema é diferente, se aplicamos este termo no contexto de uma doutrina ideológica. A imensa maioria da humanidade se esforça para ter uma maior e melhor abundância de comida, roupas, casas e outros bens materiais. Ao considerarem como melhoria e progresso uma elevação no nível de vida das massas, os economistas não estão aderindo a um materialismo mesquinho. Estão simplesmente reconhecendo o fato de que as pessoas são motivadas pelo desejo de melhorar as condições materiais de sua existência. Julgam as políticas do ponto de vista dos objetivos que os homens querem atingir. Quem desdenha a queda na taxa de mortalidade infantil e o gradual desaparecimento da fome e das epidemias, que atire a primeira pedra no materialismo dos economistas.

Só há um critério para avaliar a ação humana: saber se ela é ou não adequada para atingir os fins escolhidos pelos agentes homens.

___________________________________________________

[1] O cesarismo, em nossos dias, é representado pela ditadura bolchevista, fascista ou nazista.

[2] Ver adiante, cap. 20.

[3] Ver Mises, Omnipotent Government, New Haven, 1944, p. 221-228, 129-131, 135-140

[4] Um gangster pode dominar uma pessoa mais fraca ou desarmada. Mas isso não tem nada a ver com a vida em sociedade. É uma ocorrência antissocial.

[5] Ver adiante p. 741-743.

[6] O autor se refere à década de 1940, quando este livro foi escrito. (N.T.)

[7] Estamos lidando neste caso com a preservação do domínio de uma minoria europeia em países não europeus. Quanto às possibilidades de uma agressão asiática ao Ocidente, ver adiante p. 761-763.

[8] 8 Philarète Chasles. Études sur les hommes et les moeurs du XIX siècle, Paris, 1849, p. 89

 

Este artigo foi retirado do capítulo 9 do livro Ação Humana, de Ludwig von Mises. O livro completo pode ser lido aqui.

Sobre o autor

Ludwig von Mises

Ludwig von Mises foi o reconhecido líder da Escola Austríaca, um prodigioso originador na teoria econômica e um autor prolífico. Os escritos e palestras de Mises abarcavam teoria econômica, história, epistemologia, governo e filosofia política.

Comentários (1)

Deixe seu comentário

Há campos obrigatórios a serem preenchidos!