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Segurança versus liberdade - ansiar pela primeira pode nos deixar sem a segunda

02/04/2014

Segurança versus liberdade - ansiar pela primeira pode nos deixar sem a segunda

A sociedade inteira se terá convertido numa só fábrica e num só escritório, com igualdade de trabalho e igualdade de remuneração. - Lênin (1917)

Num país em que o único empregador é o estado, oposição significa morte lenta por inanição. O velho princípio "quem não trabalha não come" foi substituído por outro: "quem não obedece não come". - Leon Trotsky (1937)


A segurança econômica, assim como a falsa "liberdade econômica", é muitas vezes apresentada como condição indispensável da autêntica liberdade.  Em certo sentido, isso é ao mesmo tempo verdadeiro e importante.  É raro encontrar independência de espírito ou força de caráter entre aqueles que não confiam na sua capacidade de abrir caminho pelo próprio esforço. 

Todavia, a ideia de segurança econômica não é menos vaga e ambígua do que a maioria dos outros conceitos nesse campo; e por isso, a reivindicação generalizada por uma segurança econômica pode tornar-se um perigo para a liberdade.  

Com efeito, quando a segurança é entendida num sentido absoluto, o empenho geral em conquistá-la, em vez de possibilitar uma maior liberdade, torna-se a mais grave ameaça a ela.

Há um tipo de planejamento estatal que, visando a um tipo específico de segurança, exerce um efeito insidioso sobre a liberdade: é o planejamento que se destina a proteger indivíduos ou grupos contra uma eventual redução de suas rendas, redução essa que, embora imerecida, ocorre diariamente numa sociedade competitiva.  É o planejamento contra aquelas perdas que impõem duras privações, e que, contudo, são inseparáveis do sistema de concorrência. 

A reivindicação desse tipo de segurança é, pois, apenas um outro aspecto da exigência de que deve haver uma "justa remuneração" para cada indivíduo, uma remuneração proporcional aos méritos subjetivos e não aos resultados objetivos do esforço individual.  

Mas essa espécie de segurança ou de justiça não parece conciliável com a livre escolha da ocupação.

Todos nós conhecemos a trágica situação do homem altamente treinado cuja especialidade, adquirida com esforço, perde de súbito todo o valor por causa de alguma invenção muito benéfica para o restante da sociedade.  O último século está repleto de exemplos dessa espécie, alguns deles atingindo ao mesmo tempo centenas de milhares de pessoas.

O fato de um homem vir a sofrer grande redução dos rendimentos e amarga frustração de todas as suas esperanças sem por isso ter sido responsável, e apesar de sua dedicação e de uma excepcional habilidade, indubitavelmente ofende o nosso senso de justiça. As reivindicações das pessoas assim prejudicadas de que o estado intervenha em seu favor a fim de salvaguardar-lhes as legítimas expectativas conquistarão por certo a simpatia e o apoio popular. 

A aprovação geral a tais reivindicações fez com que, na maioria dos países, os governos decidissem agir, não só no sentido de amparar as possíveis vítimas de tais dificuldades e privações, mas também no de assegurar-lhes o recebimento de seus rendimentos anteriores e assim protegê-las contra as vicissitudes do mercado.

Contudo, para que a escolha das ocupações seja livre, a garantia de uma determinada renda não pode ser concedida a todos.  E se for concedida a alguns privilegiados, haverá prejuízo para outros, cuja segurança será, ipso facto, diminuída.  É fácil demonstrar que a garantia de uma renda invariável só poderá ser concedida a todos pela abolição total da liberdade de escolha da profissão. 

O que ocorre constantemente é a concessão parcial dessa espécie de segurança a este ou àquele grupo, do que decorre um aumento constante da insegurança daqueles sobre os quais recai o ônus.  Não admira que, em consequência, aumente também de modo contínuo o valor atribuído ao privilégio da segurança, tornando-se mais e mais premente a sua exigência, até que, no final, nenhum preço, nem o da própria liberdade, pareça excessivo.

O problema reveste-se de importância ainda maior porque, no mundo que conhecemos, torna-se improvável que um indivíduo dê o melhor de si por muito tempo, a menos que seu interesse esteja diretamente envolvido. A maioria das pessoas necessita, em geral, de alguma pressão externa para se esforçar ao máximo.  Assim, o problema dos incentivos é bastante real, tanto na esfera do trabalho comum como na das atividades gerenciais. A aplicação da engenharia social a toda uma nação -- e é isto o que significa planejamento -- gera problemas de disciplina difíceis de resolver.

A política governamental hoje adotada em toda parte, de conceder o privilégio da segurança ora a este grupo, ora àquele, vai rapidamente criando condições em que o anseio de segurança tende a sobrepujar o amor à liberdade.  Isso porque, a cada vez que se confere segurança completa a um grupo, aumenta-se a insegurança dos demais.

Se garantirmos a alguns uma fatia fixa de um bolo de tamanho variável, a parte deixada aos outros sofrerá maior oscilação, proporcionalmente ao tamanho do todo. E o aspecto essencial da segurança oferecida pelo sistema de concorrência -- a grande variedade de oportunidades -- torna-se cada vez mais restrito.

No sistema de mercado, a segurança só pode ser concedida a determinados grupos mediante o gênero de planejamento conhecido como 'regulação'.  O "controle", isto é, a limitação da concorrência (leia-se "da produção") de modo que os preços finais assegurem um ganho "adequado", é o único meio pelo qual se pode garantir um certo rendimento aos produtores numa economia de mercado. 

Isso, porém, envolve necessariamente uma redução de oportunidades para os demais.  Para que o produtor, seja ele dono de empresa ou operário, receba proteção contra a concorrência de preços mais baixos, outros, em pior situação, serão impedidos de participar da prosperidade relativamente maior das indústrias controladas. Qualquer restrição à liberdade de ingresso numa profissão reduz a segurança de todos os que se acham fora dela.

E, à medida que aumenta o número daqueles cujo rendimento é assegurado dessa forma, restringe-se o campo das oportunidades alternativas abertas aos que sofrem uma perda de rendimento -- enquanto que, para os que são atingidos por qualquer mudança, diminui do mesmo modo a possibilidade de evitar uma redução fatal da sua renda.

E se, como vem acontecendo com frequência, em cada categoria em que ocorre uma melhora de condições permite-se que seus membros excluam os demais para garantir a si mesmos o ganho integral sob a forma de salários ou lucros mais elevados, os que exercem profissões cuja demanda diminuiu não têm para onde se voltar, e a cada mudança produz-se grande número de desempregados. Não há dúvida de que foi em grande parte por causa da busca de segurança por esses meios nas últimas décadas que aumentou a tal ponto o desemprego e, por conseguinte, a insegurança para vastos setores da população.

Numa sociedade em que a mobilidade ficou tão reduzida como resultado dessas restrições, é de absoluta falta de perspectiva a situação daqueles que se encontram fora do âmbito das ocupações protegidas, e um abismo os separa dos privilegiados possuidores de empregos a quem a proteção contra a concorrência tornou desnecessário fazer concessões para dar lugar aos que estão de fora. 

Em consequência, em vez de preços, salários e rendimentos individuais oscilarem, são agora o emprego e a produção que ficam sujeitos a violentas flutuações.  Nunca houve pior e mais cruel exploração de uma classe por outra do que a exercida sobre os membros mais fracos ou menos afortunados de uma categoria produtora pelos que já desfrutam de posições estáveis, e isso foi possibilitado pela "regulamentação" da concorrência.  Poucas coisas têm tido efeito tão pernicioso quanto o ideal da "estabilização" de certos preços (ou salários), pois, embora ela garanta a renda de alguns, torna cada vez mais precária a posição dos demais.

Assim, quanto mais nos esforçamos para proporcionar completa segurança interferindo no sistema de mercado, tanto maior se torna a insegurança; e, o que é pior, maior o contraste entre a segurança que recebem os privilegiados e a crescente insegurança dos menos favorecidos.  E quanto mais a segurança se converte num privilégio, e quanto maior o perigo para os que dela são excluídos, mais será ela valorizada. 

À medida que o número dos privilegiados aumenta, e com ele o hiato entre a sua segurança e a insegurança dos demais, vai surgindo uma escala completamente nova de valores sociais.  Já não é a independência, mas a segurança, que confere distinção e status; o que faz de um homem um "bom partido" é antes o direito a uma pensão garantida do que a confiança em sua capacidade -- ao passo que a insegurança se converte numa terrível condição de pária, à qual estão condenados para sempre aqueles a quem na juventude foi negado ingresso no porto seguro de uma posição assalariada.

Essa evolução foi acelerada por outro efeito das doutrinas socialistas: o deliberado menosprezo por todas as atividades que envolvem risco econômico, bem como a condenação moral dos lucros que compensam os riscos assumidos, mas que só poucos podem obter.  Não podemos censurar os nossos jovens quando preferem o emprego seguro e assalariado do funcionalismo público ao risco do livre empreendimento, pois desde a mais tenra idade ouviram falar daquele como sendo uma ocupação superior, mais altruísta e mais desinteressada.  A geração de hoje cresceu num mundo em que, na escola e na imprensa, o espírito da livre iniciativa é apresentado como indigno e o lucro como imoral, onde se considera uma exploração dar emprego a cem pessoas, ao passo que chefiar o mesmo número de funcionários públicos é uma ocupação honrosa.

Numa sociedade em que o indivíduo conquista posição e honras quase exclusivamente em função de ser um servidor assalariado do governo; em que o cumprimento do dever prescrito é considerado mais louvável do que a escolha do próprio campo de atividade; em que todas as ocupações que não conferem um lugar na hierarquia oficial ou o direito a um rendimento fixo são julgadas inferiores e até certo ponto aviltantes -- seria demais esperar que a maioria prefira por muito tempo a liberdade à segurança.

E quando só se pode optar entre a segurança numa posição de dependência e a extrema precariedade numa situação em que tanto o fracasso quanto o êxito são desprezados, poucos resistirão à tentação da segurança ao preço da liberdade.  Tendo-se chegado a esse ponto, a liberdade torna-se quase um objeto de escárnio, pois só pode ser alcançada com o sacrifício de grande parte das boas coisas da vida.  Nessas condições, não surpreende que um número cada vez maior de pessoas se convença de que, sem segurança econômica, a liberdade "não vale a pena", e se disponha a sacrificar esta em troca daquela.

Nada é mais funesto do que o hábito, hoje comum entre os líderes intelectuais, de exaltar a segurança em detrimento da liberdade.  Urge reaprendermos a encarar o fato de que a liberdade tem o seu preço e de que, como indivíduos, devemos estar prontos a fazer grandes sacrifícios materiais a fim de conservá-la.  Para tanto, faz-se mister readquirir aquela convicção que Benjamin Franklin expressou numa frase aplicável a tanto a indivíduos quanto a nações: "aqueles que se dispõem a renunciar à liberdade essencial em troca de uma pequena segurança temporária não merecem liberdade nem segurança".

 

Artigo originalmente publicado em 1944.

Sobre o autor

Friedrich A. Hayek

Friedrich A. Hayek (1899-1992) foi um membro fundador do Mises Institute. Dividiu seu Prêmio Nobel de Economia, em 1974, com seu rival ideológico Gunnar Myrdal por seus trabalhos pioneiros sobre a teoria da moeda e das flutuações econômicas.

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