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Entendendo a guerra da Rússia e a mentalidade de Putin: a estranha filosofia de Aleksandr Dugin

Tentar interpretar as ações da Rússia sob uma ótica Ocidental não logrará êxito

23/05/2022

Entendendo a guerra da Rússia e a mentalidade de Putin: a estranha filosofia de Aleksandr Dugin

Tentar interpretar as ações da Rússia sob uma ótica Ocidental não logrará êxito

Os russos foram "escolhidos escatologicamente". Eles devem oferecer resistência à falsa fé, à pseudo-religião do liberalismo ocidental e à disseminação de seu mal: modernidade, cientificismo, pós-modernidade e a nova ordem mundial. 

Esta é a tese de Aleksandr Gelyevich Dugin, o proeminente filósofo russo e mentor do presidente Vladimir Putin. Sendo uma "área pivô" geográfica, a Rússia deve recuperar sua posição no coração do continente eurasiano.

Filosofia política

A teoria política de Aleksandr Dugin, baseada no tradicionalismo, quer libertar o socialismo de suas características materialistas, ateístas e modernistas. Ele classifica sua abordagem de "a quarta teoria política" (2012), pois é dirigida contra as outras três ideologias convencionais: comunismo, liberalismo e fascismo. 

Dugin, que leciona sociologia e geopolítica na Universidade Lermontov, de Moscou, está à procura de uma nova ideia política para a Rússia. E ele a encontra na identidade tradicional da região, a qual Dugin associa a "religião, hierarquia e família". Como tal, sua teoria é uma "cruzada" contra a pós-modernidade, a sociedade pós-industrial, o pensamento liberal e a globalização.

Em sua terra natal, Aleksandr Dugin é um muito conhecido geoestrategista e mentor do atual presidente russo, Vladimir Putin. Para Dugin, os EUA são uma ameaça à cultura russa e à identidade da Rússia. Ele deixa sua posição inequivocamente clara ao declarar que:

Acredito firmemente que a Modernidade está absolutamente errada e a Sagrada Tradição está absolutamente certa. Os EUA são a manifestação de tudo que eu odeio – Modernidade, ocidentalização, unipolaridade, racismo, imperialismo, tecnocracia, individualismo, capitalismo.

Aos seus olhos, os EUA são "a sociedade do Anticristo". Os Estados Unidos da América são o país sinistro e alarmante do outro lado do oceano, "sem história, sem tradição, sem raízes […] o resultado de um experimento puro feito pelos racionalistas utópicos europeus". 

Ele lamenta que os EUA estejam impondo sua dominação planetária e vivenciado o triunfo de seu estilo ao redor do mundo. Ele critica o fato de que "única e exclusivamente em si mesmos" os EUA veem as normas do progresso e da civilização.

De acordo com Dugin, os EUA negam a todos os outros "o direito ao seu próprio caminho, a sua própria cultura e ao seu próprio sistema de valores". Sua conclusão, consequentemente, é que enterrar os EUA "é nosso dever religioso". 

A salvação não só da Rússia, mas de praticamente todo o continente eurasiano, é o retorno à sua "Sagrada Tradição". Aos olhos de Dugin, a Rússia deve retornar à sua verdadeira identidade. Um retorno à grandeza da Rússia é uma obrigação moral. E os EUA estariam impedindo o cumprimento deste destino messiânico.

Geopolítica

Na visão de Dugin, a cisão cultural possui uma contraparte geopolítica. Sua grande visão é criar um eixo Paris-Berlim-Moscou que preencha o buraco negro geopolítico deixado na Eurásia após o fim da União Soviética.

Alguns dos conceitos básicos da geopolítica de Dugin remontam ao geógrafo geopolítico inglês Halford J. Mackinder e ao teórico geopolítico alemão Karl Ernst Haushofer (1869-1946). Mackinder (1861-1947) apresentou sua tese de que o coração da Eurásia é o "pivô geográfico da história" em uma reunião da Royal Geographic Society já em 1904.

O prognóstico de Mackinder dizia que, embora a vasta área da Eurásia tenha sido inacessível aos navios, essa desvantagem terminaria porque a Rússia estaria prestes a construir um sistema ferroviário abrangente. Ser inacessível aos navios não seria mais uma desvantagem. Com o sistema ferroviário, o Império Russo estaria a caminho de pressionar "a Finlândia, a Escandinávia, a Polônia, a Turquia, a Pérsia, a Índia e a China". No mundo como um todo, uma Rússia modernizada "ocuparia a posição estratégica central que a Alemanha usufrui na Europa".

À época da apresentação de Mackinder no início do século XX, Londres já estava preocupada com a ascensão da Alemanha como uma potência industrial. E se a Rússia seguisse esse caminho, um novo e potencialmente maior rival surgiria. Impedir qualquer aliança entre Rússia e Alemanha ganhou prioridade estratégica nos círculos de política externa do Reino Unido. 

O conceito de manter o equilíbrio de poder na Europa e anunciar a conquista da Rússia pela Alemanha, ou vice-versa, tornou-se um imperativo estratégico, e motivou a Grã-Bretanha a entrar na Primeira Guerra Mundial, em 1914.

Na década de 1920, a visão geoestratégica de Karl Haushofer, de um eixo que iria de Paris, Berlim e Moscou a Tóquio, ganhou forma na Alemanha e também atraiu estrategistas soviéticos. A teoria geopolítica de Dugin representa a continuação desta linha de pensamento, e segue tanto Haushofer quanto a máxima de Mackinder: "Quem governa a Europa Oriental comanda seu coração. Quem governa seu coração comanda a Ilha-Mundo. Quem governa a Ilha-Mundo comanda o Mundo".

Para Dugin, o conflito entre a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e o Pacto de Varsóvia durante a Guerra Fria situa-se no mesmo contexto da guerra entre Cartago e Roma. Com o fim da União Soviética e a ascensão dos Estados Unidos como a única superpotência, esse conflito histórico atingiu um novo estágio. 

Hoje, a Rússia está sozinha contra uma OTAN ampliada. Com isso, o conflito entre a região atlântica e o coração da Eurásia caminha-se para um confronto.

Uma década antes de a visão de mundo geopolítica de Dugin ganhar destaque, o estrategista geopolítico americano Zbigniew Brzezinski também identificou o coração do Leste Europeu como uma região-pivô. Em seu livro The Grand Chessboard: American Primacy and Its Geostrategic Imperatives (2016), Brzezinski explica que, para manter seu papel primordial no mundo, os EUA devem incluir a Alemanha e o Japão como suas fortalezas nos lados ocidental e oriental do continente euro-asiático para manter a Rússia sob controle.

Quanto à importância da posição geoestratégica da Rússia e de seus vizinhos, não haveria muita diferença entre Aleksandr Dugin e Zbigniew Brzezinski. Para ambos, a Eurásia é o tabuleiro de xadrez sobre o qual a luta pela primazia global continua a ser jogada. A diferença fundamental, no entanto, entre os Estados Unidos e a Rússia é que o colapso da União Soviética deixou os Estados Unidos na posição única de se tornar a primeira superpotência com alcance global.

Para estabelecer essa hegemonia, explica Brzezinski, a Eurásia é o "axial geopolítico", e a Ucrânia seria um estado-pivô geopolítico. Segue-se que "sem a Ucrânia, a Rússia deixa de ser um império eurasiano. […] No entanto, se Moscou recuperar o controle sobre a Ucrânia […] a Rússia automaticamente recupera novamente os meios para se tornar um poderoso estado imperial, abrangendo a Europa e a Ásia."

Crítica

É difícil entender que Dugin reivindique "tradição" e "identidade" quando, na verdade, a história russa dos séculos XIX e XX foi um desastre. 

Foi o apego a tradições imaginárias que lançaram as bases para que as calamidades acontecessem. 

Foi a resistência dos czares contra o liberalismo e o capitalismo, que continuou sob os soviéticos até a atual liderança, que bloqueou o progresso da Rússia.

No século XX, a Rússia experimentou uma catástrofe após a outra. A Guerra Russo-Japonesa de 1905 terminou com uma derrota humilhante e provocou revoltas violentas no país. A Primeira Guerra Mundial custou milhões de baixas e devastou a economia da Rússia. A tomada de poder bolchevique levou à sangrenta guerra civil de 1918-1921, seguida pela guerra russo-polonesa de 1919-1920. A União Soviética começou sua existência paralelamente ao estabelecimento do GULAG, a vasta rede de campos de concentração.

A industrialização forçada e a coletivização das terras agrícolas geraram o Holodomor, a fome com milhões de mortes na Ucrânia e no Cazaquistão. O regime de terror de Stalin prendeu milhões em campos de trabalho forçado.

A Segunda Guerra Mundial de 1941-45 trouxe terríveis baixas militares e civis e foi imediatamente seguida pela Guerra Fria com sua corrida armamentista e envolvimentos caros em muitos países do Terceiro Mundo. A trágica guerra no Afeganistão, que durou mais de dez anos, até 1989, deu o golpe final e levou ao colapso da União Soviética. A tentação fracassada de estabelecer uma economia de mercado não trouxe prosperidade, mas estabeleceu o capitalismo de estado oligárquico.

Igualmente problemática é a análise de Dugin de que guerra e a cultura representam o principal conflito entre a área atlântica e o coração da Eurásia. Para ambos os aspectos, guerra e cultura, seu conceito de "atlanticistas" contra "eurasianos" é fundamentalmente falho. As guerras entre as nações marítimas europeias marcaram a história desde os tempos da Grécia e Roma e atingiram novos patamares após a descoberta da América. 

Da mesma forma, as "potências terrestres" França e Alemanha invadiram a Rússia e ambas foram derrotadas pela Rússia com a ajuda dos "atlanticistas".

Quanto à tese de que há uma cisão cultural fundamental entre a Europa Ocidental e as terras russas, vale lembrar que a Igreja Ortodoxa Russa em muitos aspectos está mais próxima do catolicismo do que a Igreja Católica está do protestantismo no Ocidente. A literatura e a música russas do século XVIII foram profundamente influenciadas pela parte ocidental da Europa, e as contribuições russas repercutiram fortemente na Europa Ocidental. 

Não foi uma ruptura cultural que fez a Rússia adotar o marxismo em vez do capitalismo de livre mercado e os valores do liberalismo clássico. A Rússia importou essas falsas ideologias do Ocidente. Ao optar pelo marxismo do Ocidente em vez do capitalismo liberal do Ocidente, a Rússia cometeu seu maior erro até hoje.

Com relação à atual guerra na Ucrânia, não apenas a política externa da Rússia se tornou refém da geopolítica; ocorreu o mesmo com os EUA. Ao perder a Ucrânia, a Rússia teme perder sua identidade junto com a chance de se tornar um proeminente ator global novamente. Para os EUA, a Ucrânia é vista como o estado-pivô crucial para manter e expandir sua posição hegemônica global. 

Em ambos os países, os formuladores de política externa olham para o mapa geográfico e veem um tabuleiro de xadrez. Ambos parecem acreditar que a autoridade sobre a Ucrânia decide definitivamente seu próprio futuro.

Não seria a primeira vez na história que uma "idée fix", como a determinação geográfica dos assuntos mundiais, coloca em risco a prosperidade e a paz em todos os continentes.

Conclusão

Caso continue seguindo o caminho ideológico de Aleksandr Dugin, a Rússia cometerá outro erro trágico. Em vez de acreditar nas ilusões de uma tradição imaginária, a liderança russa deveria reconhecer que, a não ser com o capitalismo de livre mercado, não haverá liberdade nem prosperidade.

Historicamente, a casa da Rússia não está fora da Europa. São Petersburgo e Moscou são cidades europeias. Se, no entanto, as potências ocidentais não conseguirem integrar a Rússia em um sistema de segurança comum, o país se voltará para a Ásia. Com China, Índia e Irã, novas associações estão disponíveis.

Considerando o papel estratégico "pivô" da Ucrânia, tanto a Rússia quanto os EUA podem estar errados.

Sobre o autor

Antony Mueller

É doutor pela Universidade de Erlangen-Nuremberg, Alemanha e, desde 2008, professor de economia na Universidade Federal de Sergipe.

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