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A decisão em favor do Uber e uma interpretação liberal da Constituição Federal de 1988

23/08/2015

A decisão em favor do Uber e uma interpretação liberal da Constituição Federal de 1988

No dia 14/8/2015, o Juiz de Direito Bruno Vinícius da Rós Bodart, da 1a. Vara da Fazenda Pública da Comarca do Rio de Janeiro, proferiu decisão favorável ao UBER, a qual, em resumo, afirma o seguinte:

Ex positis, DEFIRO A ANTECIPAÇÃO DE TUTELA, inaudita altera parte, na forma do art. 273, I, do CPC/1973 e do art. 7o, III, da Lei no 12.016/2009, e determino que o Presidente do Departamento de Transportes Rodoviários do Estado do Rio de Janeiro (Detro/RJ) e o Secretário Municipal de Transportes do Rio de Janeiro, bem como órgãos ou agentes que lhes sejam subordinados ou lhes façam as vezes, abstenham-se de praticar quaisquer atos que restrinjam ou impossibilitem que o impetrante exerça a atividade de transporte remunerado individual de passageiros, em especial por meio da imposição de multas, da apreensão de veículo ou da retenção da carteira de habilitação do condutor, sob pena de multa no importe de R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais) por ato de recalcitrância no cumprimento desta decisão, sem prejuízo da configuração do crime de desobediência (art. 330 do Código Penal).

A decisão por si só já é bastante positiva, pois confirma, sem qualquer autorização legal, o ideal de liberdade, ao autorizar um indivíduo a exercer a sua atividade sem a necessidade de uma legislação específica para isso.

Todavia, o que mais surpreende na decisão do Magistrado, não é somente a autorização que ele dá ao motorista do UBER e sim a fundamentação, ou seja, os motivos que levaram o Juiz a chegar à decisão acima.

Friedrich August Von Hayek, um dos autores que melhor abordou o Direito na Escola Austríaca de Economia, destaca o papel dos profissionais do Direito e faz um aviso importante sobre os engenheiros sociais e a forma que eles usam o Direito com essa finalidade[1]: "o principal instrumento de mudança intencional na sociedade moderna é a legislação."

Com a ressalva de Hayek, fica claro o estrago feito, por quem defende o estado, ao ensino jurídico nos últimos anos. Hoje, nas Faculdades de Direito, passa-se a impressão de que o Direito somente pode existir com a existência do estado, o que ocasiona uma série de consequências, já que a interferência estatal gera resultados que o burocrata não consegue prever:

Os que imaginam ser possível ordenar todas as atividades particulares de uma Grande Sociedade de acordo com um plano coerente deveriam reconsiderar sua posição ante a constatação de que isso não se mostrou possível sem mesmo no que diz respeito a essa parte do conjunto que é a sistema jurídico. O processo de alteração do direito revela, com especial clareza, o modo como as concepções dominantes ocasionam uma mudança continua, produzindo medidas que de inicio ninguém desejara ou previra, mas que, no devido tempo, parecem inevitáveis.

Tal situação é a agravada no Brasil por uma tendência publicista que ocorreu nos últimos anos com o Neoconstitucionalismo, ou seja, a ideia de que a constituição não só era um paradigma para as leis do sistema jurídico brasileiro, como deveria substituir em alguns casos o próprio ramo do Direito, o que afastou em muito a ideia de que o estado não deve regular as relações privadas

Essa ideia publicista e equivocada vem atacando um dos princípios basilares do Direito Civil, o direito do dia a dia, que afirma que "aquilo que não está proibido, está permitido."

A decisão do Juiz de Direito do Rio de Janeiro Bruno Vinícius da Rós Bodart volta a colocar o Direito como uma ordem espontânea que deve ter como premissa o respeito à vida, à liberdade e à propriedade, direitos humanos que estão previstos expressamente na Constituição Federal de 1988.

Tais direitos foram citados nos fundamentos da decisão abaixo, que autorizou o motorista do UBER a seguir exercendo a sua atividade -- ou seja, ele teve o seu direito à livre iniciativa respeitado.

O Juiz de Direito afirma o seguinte:

A Constituição da República estabelece, de forma expressa e categórica, que o nosso Estado Democrático de Direito, bem assim a ordem econômica brasileira, tem como fundamento a livre iniciativa. Trata-se de indiscutível liberdade fundamental garantida a todos os indivíduos pelos artigos 1o, IV, e 170 da Carta Magna. Como densificação dessa garantia, figura também na Constituição o direito ao livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, estabelecido no inciso XIII do artigo 5o.

Complementando a decisão, o Juiz apresenta o conceito de Liberdade e reforça o princípio constitucional da livre iniciativa, destacando que não se pode proibir o ingresso de novos players no mercado:

O conceito de liberdade fundamentalmente protegida implica a existência de um direito fundamental a optar por fazer ou não fazer, é dizer, todos os indivíduos podem optar por exercer ou não determinada atividade econômica, com a garantia de que o Estado não poderá limitar ou proibir arbitrariamente o ingresso de novos agentes no mercado.

Em geral, os liberais/libertários, no qual me incluo, tendem a criticar a Constituição Federal de 1988 (CF/88) por ser intervencionista e ter deixado de lado a lógica econômica em várias das suas passagens. Para se ter uma noção dos absurdos econômicos que se incluem na CF/88, a última Emenda Constitucional tratada pelo Senado e votada em primeiro turno determinou a seguinte aprovação:

da inclusão do transporte no rol de direitos sociais elencados no artigo 6º da Constituição Federal. A mudança no texto constitucional, aprovada em primeiro turno e por unanimidade no Senado Federal, foi sugerida pela Proposta de Emenda Constitucional nº 74.

A PEC 74/2013, de iniciativa da deputada federal, Luiza Erundina, uma das fundadoras da Frente Nacional de Prefeitos (FNP) e presidente da entidade no período de 1989-1992, tem o objetivo de assegurar ao cidadão esse benefício e deverá ser apreciada em segundo turno na mesma Casa.

Entretanto, a própria Constituição -- que possui várias falhas -- também nos dá algumas ferramentas para usarmos ao nosso favor, como o artigo 170 da CF/88 que destaca que a livre iniciativa é um dos fundamentos do estado brasileiro, sendo "vedado ao Estado impedir ou limitar trocas voluntárias entre particulares, a menos que demonstre de forma inequívoca que essa medida é:

(i) necessária para a proteção de um interesse fundamental; e

(ii) adequada para a consecução desse objetivo.

Apesar de entender que o estado não poderia impedir ou limitar as trocas voluntárias de nenhuma forma, na decisão que estamos analisando, o Juiz do Rio de Janeiro limita o estado, ou seja, consegue colocar algum freio na ânsia regulatória que o estado tem.

Além disso, o Magistrado Bruno Bodart afirma que "é necessária a demonstração clara e inequívoca da "falha de mercado", não podendo restar qualquer dúvida, sendo um ônus do estado demonstrar isso, sendo inconstitucional e indevida a ingerência na livre iniciativa em caso de dúvida".

Para ilustrar tal situação, ele cita o livro recém lançado do Milton Friedman pela editora Record (que tem como editor Carlos Andreazza, o qual foi entrevistado por Bruno Garshagen no Podcast 182 do Instituto Mises Brasil):

Note-se que é do Estado o ônus de justificar a regulação, com dados claros, objetivos e confiáveis indicando a existência de notória "falha de mercado", reputando-se inconstitucional e indevida a ingerência na livre iniciativa em caso de dúvida.

Essa ideia foi exposta com maestria pelo ganhador do prêmio Nobel em Ciências Econômicas Milton Friedman: "Devemos desenvolver a prática de analisar tanto os benefícios quanto os custos das propostas de intervenção do governo e exigir uma justificativa muito clara a favor dos benefícios em vista dos custos antes de adotá-las" (FRIEDMAN, Milton; FRIEDMAN, Rose. Livre para escolher. Trad. Ligia Filgueiras. 1a ed. Rio de Janeiro: Record, 2015. p. 62).

Para ilustrar tal situação, o Douto Magistrado citou Friedman, mas poderia claramente ter citado Fredéric Bastiat em "O que se vê e o que não se vê":

Na esfera econômica, um ato, um hábito, uma instituição, uma lei não geram somente um efeito, mas uma série de efeitos.  Dentre esses, só o primeiro é imediato.  Manifesta-se simultaneamente com a sua causa.  É visível.  Os outros só aparecem depois e não são visíveis.  Podemo-nos dar por felizes se conseguirmos prevê-los. 

Entre um bom e um mau economista existe uma diferença: um se detém no efeito que se vê; o outro leva em conta tanto o efeito que se vê quanto aqueles que se devem prever. 

E essa diferença é enorme, pois o que acontece quase sempre é que, quando a consequência imediata é favorável, as consequências posteriores são funestas e vice-versa.  Daí se conclui que o mau economista, ao perseguir um pequeno benefício no presente, está gerando um grande mal no futuro.  Já o verdadeiro bom economista, ao perseguir um grande benefício no futuro, corre o risco de provocar um pequeno mal no presente. 

Ou ainda poderia citar Hayek[2] que trata do mesmo assunto:

Sou suficientemente idoso para ter ouvido muitas vezes, de homens mais velhos, que certas consequências da sua política, que eu previa, jamais ocorreriam; e mais tarde, quando elas de fato ocorreram, para ter ouvido, de homens mais jovens, que essas mesmas consequências tinham sido inevitáveis e totalmente independentes daquilo que de fato tinha sido adotado.

Na decisão em análise, o Juiz questiona se "no caso do transporte individual de passageiros, se há justificativas legítimas[3] para que o Estado, por meio de regulação, impeça a entrada de novos agentes no mercado."

Além disso, o Magistrado observa algumas alegações que os estatistas utilizam para regulamentar as trocas voluntárias. O primeiro argumento trata da assimetria de informações entre fornecedor e consumidor:

Em um mercado com muitos prestadores do serviço, é caro e ineficiente que cada usuário certifique-se da habilidade de todo motorista com que se defronta. Nesse cenário, a intervenção do Estado serviria para reduzir os custos de transação típicos do setor através, por exemplo, da fixação de padrões mínimos de segurança, higiene e conforto, além de critérios objetivos para a formação de preços. Garantir-se-ia, com isso, a qualidade do serviço prestado pelos fornecedores ao impedir a circulação de motoristas despreparados e carros precários, bem como ao reduzir os custos de barganha na definição de preços de cada corrida.

Ora, o estado nunca conseguiu nada disso. Na realidade, o que se vê, é que a regulação estatal nunca livrou o consumidor de deparar-se com condutores que desrespeitam as leis de trânsito ou condutores pouco cordiais, com veículos em péssimo estado de conservação e com a prática das chamadas "corridas no tiro".

O Juiz da decisão em favor do UBER destaca que a "evolução da tecnologia tem beneficiado e protegido os usuários do serviço de forma muito mais intensa que os poderes públicos foram capazes ao longo do tempo."

E, na decisão que está sendo analisada, o Magistrado passa a tratar diretamente do serviço UBER e destaca como o estado não tem qualquer interesse no benefício do consumidor quanto às tarifas fixadas:

Aplicativos como o Uber permitem que os usuários controlem diretamente a qualidade dos serviços, por meio de avaliações ao final de cada corrida. O motorista que preste serviços cuja qualidade, higiene e conforto sejam pouco conceituadas entre os usuários é descredenciado. Como apontam os professores de economia João Manoel Pinho de Mello (Insper) e Vinicius Carrasco (PUC/Rio), a plataforma Uber "faz uso de mecanismos de avaliação por parte dos consumidores que induzem incentivos para que os motoristas criem a reputação de prover bons serviços."

Além disso, o credenciamento depende do preenchimento de diversos requisitos, como a apresentação de certidões negativas de antecedentes criminais, de carteira nacional de habilitação válida com permissão para o exercício de atividade remunerada, da frequência a cursos de direção segura e boas maneiras, assim como da posse de carro em funcionamento regular, de modelo recente.

Note-se também que o estabelecimento de tarifas fixas sequer é necessário, na medida em que o usuário é informado previamente sobre o valor do serviço para o trajeto pretendido. Aliás, o mero fato de aplicativos como o Uber lograrem propiciar ao usuário um serviço de melhor qualidade por um preço praticamente idêntico demonstra como as tarifas fixadas pelo Poder Público não são estabelecidas no interesse do consumidor.

Além disso, destaca "que os próprios indivíduos, sem ingerência estatal, conseguiram construir um sistema em que a assimetria de informação é eliminada, não se justificando a regulação por esse aspecto." Ou seja, ele destaca como os indivíduos são quem melhor podem resolver os seus próprios problemas.

O segundo argumento aponta que o estado poderia limitar as trocas voluntárias.  Mais especificamente, o argumento está relacionado ao "excesso de carros em circulação, para aliviar os congestionamentos de trânsito, que poderiam ser compreendidos, em linguagem econômica, como "externalidades negativas":

Outro argumento que poderia ser invocado em favor da regulação seria a necessidade de evitar um excesso de carros em circulação, para aliviar os congestionamentos de trânsito, que poderiam ser compreendidos, em linguagem econômica, como "externalidades negativas".

Ocorre que, para surtir efeito, um expediente dessa natureza deveria abranger todos os tipos de veículos em circulação nas vias públicas, não apenas aqueles que prestam o transporte individual de passageiros. Seria necessário que o Governo limitasse a própria compra de veículos ou instituísse restrições à circulação total de automóveis em certas localidades ou certos períodos.

Some-se ainda o fato de que muitos clientes de serviços como o Uber lançam mão dessa opção precisamente para não ter de utilizar seu automóvel particular, pelo que o impacto sobre o tráfego não é inequívoco: o aumento de prestadores de serviço, por um lado, eleva a quantidade de carros em circulação, mas, por outro, reduz o uso do transporte próprio. Portanto, a mera limitação ao número de prestadores de serviço de transporte individual de passageiros é medida manifestamente inadequada aos objetivos a que se propõe.

Pelos argumentos dos estatistas, não se vê qualquer necessidade de regulação desse tipo de serviço por uma questão de mercado. Na realidade, impedir a entrada de novos players viola claramente a livre iniciativa e é, como dito acima, completamente inconstitucional.

É necessário destacar que tanto os táxis como a UBER podem conviver de forma harmônica, já que existem vantagens em cada um dos serviços oferecidos, conforme destaca a decisão:

Nem se diga que a vedação da atividade econômica de transporte privado individual de passageiros seria justificada como forma de resguardar os interesses daqueles que se dedicam à modalidade pública dessa atividade. É possível a convivência harmônica entre esses profissionais, dada a clara distinção entre os serviços prestados por eles.

Os táxis dispõem de lastro oficial ao serem certificados pelo Poder Público. A existência de uma permissão concedida Município ainda é um ativo valioso neste setor, sobretudo se considerarmos que nem todas as pessoas conhecem aplicativos como o Uber ou têm acesso a tecnologias. A caracterização própria dos táxis confere-lhes ainda poder de obter clientela nas vias públicas, sem contar a autorização para utilizar faixas exclusivas, agregando maior celeridade para seus usuários. Gozam, ainda, de desonerações tributárias, seja na aquisição de veículos, seja no que tange ao imposto sobre a sua propriedade. As taxas devidas ao Poder Público pelos detentores de táxi são justificadas pelo custo da fiscalização estatal que lhe é associada: a aferição da regularidade dos taxímetros, da qualidade mecânica e estética dos veículos etc.

Quanto aos motoristas profissionais, a decisão ilustra a dificuldade que havia antes do aplicativo, já que era bem mais difícil conectar quem precisava de um motorista e quem queria prestar o serviço:

Os demais motoristas profissionais que prestam serviços em caráter privado não gozam dos mesmos benefícios. Na realidade, até o advento de aplicativos de mobilidade, esses trabalhadores possuíam grande dificuldade para angariar clientes. Muitos atuavam em casos muito específicos, como o transporte de convidados de festas e eventos, o dos noivos após o casamento etc. Aqueles que anunciavam seus serviços "de porta em porta" possuíam renda ainda mais eventual, como o caso de um idoso cujas limitações físicas demandavam os serviços de um motorista em certa situação peculiar. Devido à baixa (ou oculta) demanda, quando contratados como empregados, esses profissionais obtinham salários demasiadamente reduzidos.

A criação do UBER demonstra a vantagem da destruição criativa, a possibilidade da inovação e de como os indivíduos, por meio da tecnologia, podem resolver os seus próprios problemas, no caso, a conexão entre quem precisa de motorista e quem quer ser um motorista:

A utilização da tecnologia para conectar os consumidores aos prestadores de serviço permitiu o descortino da demanda latente, atraindo profissionais para a área, aumentando a renda dos trabalhadores e reduzindo o desemprego. Nenhuma pessoa poderia defender seriamente que a atividade desses profissionais deveria ser proibida antes da criação dos aplicativos, ao menos não sem ferir de morte a garantia da livre iniciativa insculpida nos artigos 1o, IV, e 170 da Constituição. Não há motivos, portanto, para defender semelhante proibição justamente quando a tecnologia permitiu sensível melhoria de vida para os trabalhadores (e para os consumidores de serviços).

O Juiz passa então a analisar a legislação infraconstitucional que regulamentaria a utilização de táxi, que é uma permissão da administração pública. A primeira legislação infraconstitucional trata sobre o regime de concessão e permissão da prestação de serviços públicos previsto no art. 175 da Constituição Federal, a que estabelece o seguinte no seu artigo 16:

Art. 16. A outorga de concessão ou permissão não terá caráter de exclusividade, salvo no caso de inviabilidade técnica ou econômica justificada no ato a que se refere o art. 5o desta Lei.

A decisão a favor do UBER destaca que não há qualquer obrigação de exclusividade, em respeito à previsão acima, além de não existir inviabilidade técnica ou econômica no caso dos motoristas do UBER:

Sendo estreme de dúvidas que não cabe ao Governo fornecer aos cidadãos serviço de veículo particular com motorista, salta à vista o paradoxo que seria pretender um regime de exclusividade para uma atividade econômica propriamente dita, quando até mesmo nos casos de serviços públicos essa situação seria excepcionalíssima. Não se verifica, em juízo de delibação, qualquer inviabilidade técnica ou econômica que justifique a instituição de um monopólio ou oligopólio protegido pelo Estado no que diz respeito à atividade de transporte individual de passageiros, consoante argumentado acima, revelando-se perfeitamente possível a convivência dos agentes cadastrados pelo Estado e de outros que atuam a título privado.

Na decisão em análise, o Magistrado informa que o legislador não pode fazer o que quer, visto que a livre iniciativa é uma liberdade fundamental e, faz questão de lembrar, que "compete ao Poder Judiciário atuar como limitador dos poderes do Estado, impedindo a sua expansão desmesurada em desfavor dos indivíduos."

O Juiz trata também dos benefícios recebidos por grupos de pressão, ou seja, que "há forte desequilíbrio entre os grupos de interesse envolvidos, tornando o debate no Legislativo ou perante o Executivo enviesado pelo amplo poder de pressão daqueles que são protegidos pela regulação":

Sobre esse aspecto, colho as precisas considerações de John Blundell e Colin Robinson:

"UM OUTRO MOTIVO PELO QUAL A REGULAÇÃO É CRIADA e pelo qual tende a crescer é que os mais diversos grupos de interesse podem se beneficiar consideravelmente dessa mesma regulação. O processo de lobby, através do qual os grupos de pressão se esforçam para mudar as políticas do governo a seu favor, explica o fato comumente observado de que freqüentemente as políticas do governo parecem ser mais dominadas pelos interesses de produtores e outros grupos organizados do que pelo 'interesse público'.

O motivo subjacente pelo qual os grupos organizados são tão influentes na regulação (e outros setores de formadores de políticas) é de que o benefício potencial da regulação se concentra nos seus membros, enquanto os custos da regulação são diluídos em um grande número de consumidores ou até mesmo na totalidade da população.

(...) os consumidores terão que arcar apenas com pequenos custos se a regulação for implementada. Conseqüentemente, têm pouco incentivo para investir em tempo e em outros custos em que incorreriam caso fizessem oposição à regulação. Muitos consumidores podem não perceber que existem custos envolvidos. Assim, apesar de existirem milhões de 'vitimas invisíveis' de uma regulação e de o total dos custos estar muito acima dos benefícios obtidos pelo grupo organizado, na prática as vitimas podem fazer uma oposição fraca ou até mesmo nenhuma oposição à regulação." (BLUNDELL, John; ROBINSON, Colin. Regulação sem o Estado. Trad. Vera Nogueira. Rio de Janeiro: IL, 2000. p. 24-25)

O descrito acima é chamado de Teoria de Captura, que é uma forma de corporativistas terem benefícios por meio da legislação, algo que, por conta do poder que se dá a burocratas no Brasil, ocorre bastante. Tal situação deixa o corporativista sem a preocupação de prestar um melhor serviço com um menor preço, indo de encontro à lição de Ludwig von Mises no livro As Seis Lições:

Certas expressões usadas pelo povo são, muitas vezes, inteiramente equivocadas.  Assim, atribuem-se a capitães de indústria e a grandes empresários de nossos dias epítetos como "o rei do chocolate", "o rei do algodão" ou "o rei do automóvel".  Ao usar essas expressões, o povo demonstra não ver praticamente nenhuma diferença entre os industriais de hoje e os reis, duques ou lordes de outrora.  Mas, na realidade, a diferença é enorme, pois um rei do chocolate absolutamente não rege, ele serve.  Não reina sobre um território conquistado, independente do mercado, independente de seus compradores.  O rei do chocolate - ou do aço, ou do automóvel, ou qualquer outro rei da indústria contemporânea - depende da indústria que administra e dos clientes a quem presta serviços.  Esse "rei" precisa se conservar nas boas graças dos seus súditos, os consumidores: perderá seu "reino" assim que já não tiver condições de prestar aos seus clientes um serviço melhor e de mais baixo custo que o oferecido por seus concorrentes.

O Juiz Bruno Bodart fala expressamente dos indícios da Teoria da Captura em sua decisão, já que a proibição beneficia tão somente os taxistas que são beneficiados pelas escassas permissões outorgadas e prejudica toda a população que passaria a contar com o UBER com uma opção para se transportar por meio de um serviço melhor:

Na hipótese, há indícios significativos de que a iniciativa estatal é fruto de captura regulatória e não está voltada à promoção do melhor interesse público. A rigor, a consistência jurídica da escolha proibitiva é frágil. De um lado, existe um serviço bem qualificado e cada vez mais utilizado pela sociedade. De outro, há a oposição ferrenha de governantes à atividade; oposição essa fomentada, é bom que se frise, por grupos de interesse que, afortunados pelas escassas permissões outorgadas, logram rendas extraordinárias na exploração do serviço.

Os beneficiários dessas rendas extraordinárias geradas por conta das permissões são os maiores interessados na impossibilidade de novos players entrarem no mercado, já que isso poderá quebrar esse absurdo mercado de licenças que é descrito na decisão:

Recente reportagem do jornal "O Globo" informou que apenas três grupos controlam 58% (cinquenta e oito por cento) dos táxis de empresas na cidade, enquanto o periódico "Extra" denunciou que um grupo de quinze empresas de aluguel de táxis fatura R$ 6.700.000,00 (seis milhões e setecentos mil reais) por mês com as chamadas "diárias". A notória sobreposição do número de motoristas de táxi ao número de detentores de permissões bem demonstra que a escassez artificial de licenças não é gerada nem em benefício dos trabalhadores, subjugados pelo pagamento de "diárias", nem em favor dos consumidores, muitas vezes reféns de serviços de baixa qualidade. Como bem alerta Thomas Sowell, "Government is neither a monolith nor simply the public interest personified" (Basic Economics. 4a ed. New York: Basic Books, 2011. p. 415).

Logo em seguida, o Juiz de Direito destaca que "não se pode jamais perder de mira que, em um Estado de Direito, a regra é a liberdade individual e profissional; a regulação é a exceção."

Essa visão do Direito como garantidor de Liberdade precisa ser reiterada todos os dias por quem defende a Liberdade no Brasil e no caso do UBER é claríssima:

Todo o expendido conduz à inevitável conclusão de que o legislador ou o administrador não podem editar norma jurídica que restrinja arbitrariamente ou proíba a atividade de transporte privado de passageiros, sob pena de frontal ofensa ao postulado da liberdade de iniciativa albergado como elemento fundante da nossa ordem jurídica pela Constituição (artigos 1o, IV, e 170).

O Supremo Tribunal Federal, instituição que deve ser a guardiã da Constituição Federal de 1988, editou a Súmula Vinculante 89, que tem poder vinculante para todo país, para que a livre iniciativa fosse preservada e o Juiz de Direito Bruno Bardot fez a relação com o transporte de passageiros:

"Súmula Vinculante 89 - Ofende o princípio da livre concorrência lei municipal que impede a instalação de estabelecimentos comerciais do mesmo ramo em determinada área". Pelos mesmos motivos, ofende o princípio da livre concorrência (art. 170, IV, da Constituição) Lei ou Decreto de qualquer dos entes da Federação que impeça a coexistência dos transportadores de passageiros sob o controle do Estado e aqueles que exercem a mesma atividade em caráter privado.

A Lei Federal nº 12.468/2011 regula a profissão de taxista e estabelece que é "atividade privativa dos profissionais taxistas a utilização de veículo automotor, próprio ou de terceiros, para o transporte público individual remunerado de passageiros, cuja capacidade será de, no máximo, 7 (sete) passageiros".

Todavia, a legislação infraconstitucional não pode ir de encontro ao que a constituição expressa, razão pela qual o Juiz de Direito Bruno Bodart faz a interpretação baseada no princípio constitucional da Livre Iniciativa, bem como destaca que o transporte público municipal não se confunde com o serviço privado de transporte:

A interpretação pouco refletida do dispositivo conduziria à construção normativa de que tão somente os sujeitos beneficiados com a outorga, pelo Poder Público, de um número limitado (e escasso) de permissões seriam autorizados a trabalhar no ramo do transporte urbano individual de passageiros. Ao criar um nicho de mercado para a privativa atuação de determinados profissionais, vedando o livre ingresso de agentes no setor, incorre a referida norma em grave e frontal agressão a um dos fundamentos da República Brasileira: a livre iniciativa, com o corolário da liberdade profissional. Desse modo, o diploma fere de morte as garantias básicas albergadas nos artigos 1o, IV, 5o, XIII, e 170, caput e IV, da Carta Magna.

A única interpretação compatível com a Constituição consiste em extrair do art. 2o da Lei Federal no 12.468/2011 o mero reconhecimento de que determinados profissionais, os taxistas, atuam sob credenciamento do Poder Público, com todas as benesses que essa condição oferece (lastro oficial, obtenção de clientela em logradouros públicos, utilização de faixas exclusivas, desonerações tributárias etc.) -- e, por isso, são caracterizados como transportadores públicos de passageiros. Contudo, deve ser resguardada a coexistência de atuação no mercado entre esses profissionais e aqueles que atuam sem os benefícios conferidos pela chancela do Governo, exercendo o transporte privado individual de passageiros. O mesmo ocorre em diversos outros setores: há os educadores públicos e os privados; os médicos públicos e os privados; os advogados públicos e os privados etc.

A mera oferta ao público não é a característica que distingue esses profissionais, motivo pelo qual semelhante critério é inservível para a distinção entre os transportadores públicos e os particulares. Entendimento diverso equivaleria a qualificar como "públicos" todos os profissionais conhecidos: "eletricistas públicos", "chaveiros públicos", "encanadores públicos"...

Idêntica interpretação deve ser conferida ao art. 12 da Lei no 12.587/2012, segundo o qual os "serviços de utilidade pública de transporte individual de passageiros deverão ser organizados, disciplinados e fiscalizados pelo poder público municipal, com base nos requisitos mínimos de segurança, de conforto, de higiene, de qualidade dos serviços e de fixação prévia dos valores máximos das tarifas a serem cobradas".

A disciplina do Poder Público municipal deve ser dirigida apenas àqueles que desejam auferir os benefícios da prestação do serviço de transporte em caráter público, sem qualquer tipo de restrição aos que se dedicam à atividade em caráter privado. Nesse sentido, o próprio art. 3o da Lei no 12.587/2012 esclarece que o transporte público convive em harmonia com a existência do transporte urbano privado de passageiros.

Por fim, passa a tratar do Decreto Municipal no 40.518/2015 do Rio de Janeiro, que "dispõe sobre as penalidades para o transporte remunerado irregular de passageiros no âmbito municipal"

Tal decreto, segundo o Magistrado -- e compartilho desta opinião --, é "manifestamente inconstitucional e ilegal":

O art. 1o do aludido ato normativo do Executivo fixa punições (multa e apreensão do veículo) para todos aqueles que "estiverem explorando a atividade de transporte de passageiros sem a prévia autorização, concessão ou permissão do Poder Público Municipal". Ao fazê-lo, cria odiosa restrição de mercado, já que sabidamente não há emissão de "autorização, concessão ou permissão" para qualquer indivíduo interessado em trabalhar no ramo.

Evidente, por conseguinte, a ofensa aos princípios da livre iniciativa, da liberdade profissional e da livre concorrência (artigos 1o, IV, 5o, XIII, e 170, caput e IV, da Constituição). Deve-se recordar, quanto ao ponto, que a Constituição da República estabelece como regra ser "assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos" (art. 170, parágrafo único).

Na hipótese, não há qualquer "inviabilidade técnica ou econômica" que justifique a exclusividade dos autorizatários, concessionários ou permissionários na prestação do serviço, pelo que o ato do Prefeito Municipal descumpre manifestamente o preceito previsto no art. 16 da Lei Federal no 8.987/95, dispositivo que assegura a atuação concorrente da iniciativa privada mesmo nos casos de delegação de serviços públicos.

Quanto ao transporte individual de passageiros, que sequer caracteriza serviço público, a exclusividade é ainda mais aviltante às liberdades asseguradas constitucionalmente.

Além disso, a forma usada, Decreto Municipal, pelo chefe do executivo do município do Rio de Janeiro, viola o princípio da legalidade (art. 84, IV, da Constituição da República e art. 107, IV, da Lei Orgânica do Município do Rio de Janeiro), ou seja, seria preciso que a lei fosse criada pelo poder legislativo. Contudo, ainda que houvesse uma lei nesse sentido, seria completamente inconstitucional.

A Constituição Federal de 1988 está longe de ser a ideal para quem acredita na Liberdade. Ao mesmo tempo, essa mesma constituição possui uma série de ferramentas que podem ser usadas na defesa dessa palavra tão bela. Precisamos de cada vez mais juristas pensando e defendendo a Liberdade, algo que já vem ocorrendo em todo Brasil e esta decisão analisada é só mais uma prova disso.


[1] Hayek, Friedrich August von. Direito, Legislação e Liberdade. Ed: Visão, ano 1985, p. 408. Link https://eplsanta.wordpress.com/direito-legislacao-e-liberdade/. Acessado em 22/8/2015.

[2]Hayek, Friedrich August von. Direito, Legislação e Liberdade. Ed: Visão, ano 1985, p. 174. Link https://eplsanta.wordpress.com/direito-legislacao-e-liberdade/. Acessado em 22/8/2015.

[3]Nota do Autor: É óbvio que não se deve impedir a entrada de novos players no mercado, todavia o juiz usa de "armas" que estão na Constituição para limitar o poder do estado.


Sobre o autor

Rodrigo Saraiva Marinho

Rodrigo Saraiva Marinho é advogado, professor de Direito, mestre em Direito Constitucional pela UNIFOR, membro do Conselho Editorial da Revista Mises, presidente do Instituto Liberal do Nordeste, membro do Conselho de Administração do Instituto Mises ...

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