Mas, e as crianças?
Christopher Ratte, professor de filologia clássica da Universidade de Michigan, foi recentemente transformado em um presidiário, e ainda por cima tomaram-lhe a guarda do filho. O motivo alegado foi proteger a criança contra seu próprio pai. Christopher havia levado seu filho de 7 anos a um jogo de baseball
"O senhor sabia que isso é uma bebida alcoólica?", perguntou o policial.
"Você tá brincando!", respondeu o professor. E antes que ele pudesse examinar a garrafa, o policial tomou-a do professor, dando-lhe voz de prisão; o garoto foi levado a um hospital, onde nenhum vestígio de álcool foi encontrado em seu sangue. Ainda assim, ele foi colocado em um orfanato. Passaram-se dois dias até que a mãe, uma professora de arquitetura, conseguisse permissão para levar o menino para casa. E só uma semana depois é que permitiram que o pai voltasse para sua família novamente.
Esse caso fornece uma notável perspectiva sobre o funcionamento da burocracia. O jornal Detroit Free Press entrevistou todas as pessoas envolvidas e descobriu que ninguém estava feliz com o acontecido. Mas as engrenagens da burocracia continuaram girando, arruinando a vida dessa família sem qualquer bom motivo.
O policial que estava de serviço achou que seria um erro, mas seu supervisor insistiu que ele agisse. Quando a Child Protective Services[1] chegou para levar a criança para seu cruel orfanato, a polícia contestou. Mas a CPS estava apenas fazendo seu trabalho. Ela não tinha outra escolha a não ser levar a criança, já que a polícia havia requerido uma ordem judicial -- também precipitada pelos eventos -- para retirar a criança do pai. Observadores que conhecem o sistema disseram que o único aspecto surpreendente desse caso é que a criança foi devolvida aos pais bem rapidamente. Se o casal fosse pobre, sem instrução e sem conexões, o caso poderia ainda estar parado nos tribunais.
A lição que muitas pessoas vão tirar desse caso é que está sendo dada muita autoridade aos assistentes sociais, que o governo precisa ser reformado de modo a não tomar medidas extremas tão apressadamente, que policiais precisam usar o bom senso antes de abordar e prender famílias, etc. O problema é que todas essas reformas dependem em última instância de o estado usar seu poder discricionário de maneira sensata. E sabemos que isso não vai acontecer.
A questão real diz respeito ao locus do controle. Ele pertence à família ou ao estado? Quando há uma contenda, a quem pertence a presunção da inocência? Não basta dizer: "Temos aqui uma ambiente familiar ruim, portanto é claro que o estado deve controlar as conseqüências." Quando se trata do poder do estado sobre a família, não existe algo como um uso criterioso e sensato desse poder. O estado tem todos os motivos para inventar desculpas com o intuito de destruir famílias, e as famílias não têm outra opção a não ser rastejar e implorar.
Campanhas estatais para o bem-estar das crianças há muito se tornaram uma grande justificativa para se expandir o Leviatã. Esse é o fundamento básico da guerra contra as drogas, que nos roubou tantas liberdades civis. É a base também para a nacionalização da educação que vem ocorrendo, presidência após presidência, com o intuito de se impedir que "qualquer criança seja deixada para trás"[2]. Se a internet chegar a ser regulada nos EUA, assim como é na China e em partes da Europa, será em nome da proteção às crianças. De fato, é possível erigir todo um estado totalitário com a única desculpa de se estar socorrendo as crianças.
Assim ocorreu recentemente no Texas, quando o estado invadiu uma mansão de mórmons fundamentalistas para tirar 416 crianças de suas mães. A polícia estava respondendo a um chamado que alegava estar havendo abuso dentro daquela casa, mas não havia qualquer outra base para essa inacreditável atitude a não ser o desejo de se esmagar uma religião completamente. O estado decidiu que uma igreja dissidente não poderia existir, e assim reivindicou e aplicou todo o seu poder, e justificou ter apenas o interesse das crianças
O objetivo do estado é achar alguma prática que seja universalmente desprezada para assim poder posar como a única maneira de eliminá-la da sociedade. O melhor exemplo atual é a pornografia infantil, uma repugnante e apavorante indústria que todas as pessoas decentes gostariam de ver erradicada da terra. Mas em nome de tal objetivo, o estado invade a privacidade de todos, controla os discursos e expressões, e interfere nas famílias; isso quando não utiliza essa questão como um trampolim para eliminar toda a liberdade.
Assim, é possível perceber o que há de errado com declarações como a seguinte:
"Todos nós temos a obrigação de proteger as crianças contra o abuso e a exploração sexual, e podemos fazer isso aumentando a comunicação entre agências estaduais e federais para ajudar a combater essa repulsiva indústria. Conquanto os direitos de privacidade devam sempre ser respeitados nessa busca por pornógrafos infantis, mais coisas precisam ser feitas para rastrear e processar os pervertidos que exploram crianças inocentes."
Será que realmente queremos desencadear e expandir o estado para solucionar este problema? Se de fato entendemos a dinâmica do estatismo, não. O poder não será usado para resolver o problema; ao contrário, será utilizado para intimidar a população de tais maneiras que as pessoas terão dificuldade em fazer objeções. Mas o grande problema é que as palavras acima não foram escritas por um típico reformador social idealista, ou por um mero assistente social, ou por um burocrata do Ministério da Justiça. Elas foram escritas por um porta-voz do Partido Libertário americano.
Deste modo podemos ver o poder da propaganda -- e suas utilidades. Nem mesmo aqueles que se auto-declaram libertários conseguem enxergar que a autoridade do estado sobre a família é a base para a perda da liberdade, e que o estado sempre representa um perigo maior para a sociedade do que qualquer que seja o problema que ele pretenda resolver. E ainda há um problema adicional: admitir que existam problemas sociais que não podem ser corrigidos sem o estado significa renunciar a todo o embate acerca do futuro da própria liberdade.
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[1] Agência governamental que atua contra negligências e abusos infantis. [N. do T.]
[2] Trocadilho com o programa "No Child Left Behind" (Nenhuma Criança Deixada para Trás), do departamento de educação americano, criado pelo governo Bush e que praticamente nacionalizou a educação básica americana. [N. do T.]
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