A irônica guerra cambial
Em uma guerra no sentido convencional, o exército mais forte é normalmente o vencedor. Na guerra cambial, o mais fraco é quem ganha. Esta é a doutrina dominante.
Esta semana no jornal inglês Financial Times, nosso Ministro da Fazenda, Guido Mantega, estampou a capa com sua declaração de que "estamos em uma guerra cambial". Até aqui nada surpreendente. A relevância do tema parece ser que Mantega foi o primeiro a deixar de lado os eufemismos e expor claramente o que todos os bancos centrais estão fazendo, mas não querem dizer.
A doutrina é: moeda fraca é saudável para a economia. Moeda enfraquecendo com mais velocidade do que as outras, melhor ainda. A lógica empregada é a seguinte, uma moeda desvalorizada diminui os preços para o mercado externo aumentando a competitividade, logo estimula as exportações. Exportações são benéficas para a economia, importações não. Esse é o legado dos mercantilistas. Infelizmente, é também o legado de outras escolas econômicas, dentre elas a Keynesiana, que de tempos em tempos volta das cinzas ao socorro de governos insolventes.
Por outro lado, a mídia também faz sua parte em perpetuar tais falácias. Somos diariamente inundados por matérias, artigos e entrevistas de especialistas, políticos e empresários denunciando o "mal" causado pelas importações, como a nossa balança comercial pode se "deteriorar" devido à competição externa, que devemos barrar a entrada da concorrência estrangeira e que devemos aumentar nossas tarifas de importação e impor cotas! E se isto não for o suficiente, que desvalorizemos nossa moeda! Moeda forte é coisa do passado!
Não é preciso ser economista para chegar à conclusão de que há algo fundamentalmente equivocado nestas bravatas protecionistas. Basta empregar o reductio ad absurdum para concluir que estas teses carecem de fundamentação:
1) Ora, se exportar é benéfico e importar é maléfico, deveríamos tentar erradicar o último utilizando-se de todas as ferramentas possíveis. Não desperdicemos nossos esforços em atividades que prejudicarão a nação! Mas para alguém exportar, alguém tem que necessariamente importar, ou seja, é impossível todos os países simultaneamente abolirem suas importações.
2) Se é interessante para um país exportar mais do que importa, a mesma lógica deveria ser válida para estados dentro do mesmo país. Portanto, deveríamos impor tarifas no comércio interestadual. Na mesma linha, seria benéfico impor tarifas para o comércio intermunicipal. E por que não entre bairros? Ou então entre ruas, casas e até indivíduos? Não sairíamos todos ganhando?
É visível o quão absurdo se tornam os argumentos mercantilistas quando levados às suas conseqüências lógicas. Exportar e importar nada mais é do que vender e comprar. A fronteira entre os países apenas ofusca nossa compreensão, no entanto, não altera a essência da transação[1]. Por exemplo, imaginemos que o estado de São Paulo declare sua independência e sua soberania seja reconhecida internacionalmente. A partir deste momento, qualquer venda de São Paulo ao estado do Paraná será considerada exportação por aquele e importação por este. Analisando esta situação hipotética, seria sensato impor barreiras alfandegárias para dificultar o comércio entre os dois territórios? Seria a sociedade beneficiada desta forma?[2]
Desde o colapso de Bretton Woods, mais precisamente a partir de 1973, vivemos o chamado sistema de moeda fiduciária flutuante (fluctuating fiat currencies). Sob tal sistema, não há qualquer lastro com dinheiro material (ouro e/ou prata), onde o dólar acabou dominando como a moeda de reserva mundial. Nosso sistema atual é baseado na confiança. O lastro do dólar é a "total confiança e crédito do governo dos EUA" (conforme está escrito nas cédulas do Federal Reserve - Full Faith and Credit of the US Government). Seria mais preciso afirmar que o sistema atual é baseado não na confiança, mas na ignorância total e generalizada. Se a maioria da sociedade compreendesse a inerente insolvência do atual sistema, a realidade dificilmente seria a mesma.
Entretanto, a atual situação de moedas fiduciárias flutuantes não é de todo desconhecida, muito menos seus perniciosos efeitos. Após o mundo viver uma relativamente estável era monetária, durante o padrão-ouro clássico, os governos mundiais foram "obrigados" a suspender o resgate em espécie para financiar suas campanhas na Primeira Guerra Mundial.
A consequência foi um período similar ao que vivemos hoje em dia, com a diferença que naquela época, poucos economistas enxergavam um cenário de papel-moeda sem lastro como ideal[3]. Apesar de bem intencionada, a tentativa de restaurar um padrão-ouro fracassou levando o sistema monetário novamente a experimentar os malefícios de moedas fiduciárias baseadas na "total confiança e crédito" dos governos. Como bem explica Rothbard:
O caos e a desenfreada guerra econômica dos anos 30 ensinam uma importante lição: a grave falha política (sem considerar os problemas econômicos) no esquema monetário para moedas livremente flutuantes de Milton Friedman -- Escola de Chicago. O que os Friedmanites fariam -- em nome do livre mercado -- é cortar completamente todos os vínculos com o ouro, deixando o controle absoluto das moedas nacionais nas mãos de seus governos centrais, os quais emitiriam papel-moeda fiduciário de curso forçado -- e então aconselhar cada governo a permitir que sua moeda flutue livremente em relação às demais moedas, além de abster-se de inflar o seu próprio papel-moeda muito escandalosamente. A grave falha política é entregar o controle total da oferta monetária ao Estado-Nação, e então ter a esperança e a expectativa de que o Estado se absterá de usar tal poder. E como o poder sempre tende a ser abusado, incluindo o poder de falsificar legalmente, a ingenuidade, bem como a natureza estadista deste tipo de programa deveria ser fortemente evidente[4].
Com o objetivo de restaurar a estabilidade monetária e o comércio internacional após a Segunda Guerra Mundial, foi instaurado o sistema de Bretton Woods, o qual durou até 1971. O que sucedeu é o sistema atual, conforme já descrito acima.
Desgraçadamente, a atual guerra cambial pode sim beneficiar alguns poucos, mas certamente empobreceremos todos. Como verificamos, a batalha é atual, mas os argumentos que embasam estas políticas são tão falaciosos quanto antigos.
As consequências de uma chamada guerra cambial são desvalorizações competitivas, uniões monetárias em atrito, controles cambiais, tarifas, cotas e por fim, o colapso do comércio e investimento internacionais[5].
Na atual crise financeira que enfrentamos, fruto das expansões monetárias que induziram a investimentos errôneos em larga escala, governos mundiais tentam desesperadamente estimular suas economias de alguma maneira. Uma via óbvia, ainda que falsa, é estimular as exportações. E, seguindo o título deste artigo, é desencadeada uma guerra cambial, onde a ferramenta utilizada é a desvalorização de suas moedas.
Constantes intervenções na esfera monetária distorcem a estrutura produtiva, promovem benefícios nos setores exportadores em detrimento de todos os demais, dificultando o saudável processo de liquidação de investimentos errôneos e deficitários, impedindo a realocação dos recursos para onde estes podem ser empregados eficientemente.
Em geral, e especificamente no Brasil, a guerra cambial tem o nefasto efeito de desviar o foco dos reais problemas na economia: um estado gigante, uma carga tributária vergonhosa, uma legislação trabalhista rígida e uma burocracia sufocante. Empresários se lançam a defender um câmbio "justo", e esquecemo-nos de tratar dos problemas estruturais. Um câmbio desvalorizado beneficiaria alguns setores no curto prazo. No longo prazo, somente competitividade pode garantir êxito em qualquer mercado. Mises via a política de desvalorização cambial da seguinte maneira:
Se alguém vê a desvalorização cambial não com os olhos de um defensor do governo e de políticas sindicais, mas com os olhos de um economista, é preciso antes de tudo enfatizar que todas as supostas bênçãos são somente temporárias. Além disso, elas dependem da condição de que apenas um país desvalorize enquanto os outros se abstêm de tal política. Se os outros países desvalorizam na mesma proporção, nenhuma alteração no comércio internacional aparecerá. Se eles desvalorizarem com uma intensidade maior, todas estas bênçãos transitórias, quaisquer que sejam, favorecerão este exclusivamente. Uma aceitação generalizada dos princípios de um padrão flexível acaba, portanto, resultando na mútua e crescente desvalorização entre as nações. No final desta corrida está a completa destruição dos sistemas monetários de todas as nações[6].
Mises continua:
As tão faladas vantagens que a desvalorização assegura ao comércio externo e ao turismo são inteiramente devidas ao fato de que o ajuste dos preços domésticos e dos salários às novas condições criadas pela desvalorização requerem algum tempo. Enquanto este processo não termina, a exportação é encorajada e importação, não. Entretanto, isto simplesmente significa que, durante este intervalo, os cidadãos do país cuja moeda foi desvalorizada estão recebendo menos pelo que eles vendem no estrangeiro. Concomitantemente, eles devem restringir o seu consumo. Este efeito pode parecer como uma dádiva na opinião daqueles que medem a saúde de uma nação pela balança comercial[7].
Com um mundo altamente globalizado e integrado, desvalorizações cambiais causam caos no comércio internacional. A recente proposta de Bernanke de lançar um novo pacote de quantitative easing é no mínimo alarmante e assustadora. Explico. Donos da moeda de reserva internacional e da maior economia do planeta, qualquer manipulação no valor do dólar americano tem efeitos que repercutem mundo afora rapidamente. O governo do Zimbábue vem desvalorizando constantemente sua moeda, no entanto, isto tem relativamente poucos efeitos fora de seu próprio território.
Portanto, uma desvalorização da moeda americana é um péssimo sinal para a recuperação econômica e do sistema financeiro. E não adianta querer dar distintos nomes à impressão de dinheiro e à desvalorização monetária. Impressão de dinheiro é, sempre, impressão de dinheiro. O chamado quantitative easing, que pode ser traduzido por "facilidade ou flexibilização quantitativa", é apenas mais um eufemismo para o mesmo fenômeno: impressão de dinheiro. Operações de compra no mercado aberto: impressão de dinheiro. E a conseqüência? Moeda desvalorizada. Por sinal, Robert Mugabe é fã de quantitative easing[8].
O Bank of Japan está seguindo o mesmo modelo, preocupadíssimo com as maldições de uma moeda forte. No Reino Unido, o Bank of England estuda novas medidas de QE. No Brasil, aumentamos nossas reservas cambiais a níveis históricos e o Fundo Soberano Nacional está autorizado a intervir no mercado cambial através do BC. Enquanto isso, a cotação do ouro segue batendo recordes. Aonde isto vai parar? Até que ponto o dólar seguirá como reserva mundial? Até que ponto os banco centrais seguirão uma política de desvalorização? Será a completa destruição dos sistemas monetários nacionais conforme advertiu Mises?
Difícil prever quando. Entretanto, estamos neste perigoso caminho. O que podemos concluir é que haverá maiores turbulências no comércio internacional, e a recuperação será mais lenta do que poderia ser. Em um cenário como este, é imprescindível que a legislação trabalhista seja tão flexível quanto possível, permitindo que as empresas demitam e contratem empregados rapidamente, pois distorções cambiais levarão algumas empresas à beira da falência e outras ao sucesso. É fácil dizer. Politicamente factível? Nem tanto. Ainda assim, imprescindível.
Preocupante é o $1.2 trilhão de dólares de reservas em excesso, depositados no Federal Reserve pelo sistema bancário americano. Não satisfeitos, Bernanke e sua trupe estudam novas medidas de "flexibilização quantitativa". Quantos bilhões serão necessários desta vez? $900 bilhões? Talvez $1 trilhão? Quando esta oferta monetária for liberada de fato na economia, será como tirar o pino da granada. Salve-se quem puder.
Mas, antes, compre ouro, óbvio.
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Leia também: Aflições cambiais
Notas
[1] Logicamente, no mundo atual, exportar e importar normalmente requer o uso de divisas. Em um sistema de padrão-ouro clássico, tal problema não existiria.
[2] Apesar de estas questões "óbvias" já terem sido abordadas em outros artigos do IMB, entendo que o óbvio deva ser repetido exaustivamente. Portanto, para uma análise mais profunda de questões referentes a comércio internacional e balanço de pagamentos sugiro a leitura de Capitalism de George Reismann (Illinois, Jameson Books, 1990) pp. 526-541, Human Action de Ludwig Von Mises (Alabama, Mises Institute, 1998), pp. 447-449 e Man, Economy and State de Murray Rothbard (Alabama, Mises Institute, 2009), pp. 822-826.
[3] Ver Murray Rothbard, What has Government Done to Our Money?, (Alabama, Mises Institute, 2005), p. 89.
[4] Ibid. p. 94.
[5] Ibid. p. 89.
[6] Ludwig Von Mises, Human Action, (Alabama, Mises Institute, 1998), p. 785.
[7] Ibid.
[8] Curiosamente a mídia européia trata destes fenômenos de forma muito mais idônea do que a americana. Neste artigo da BBC pode-se entender bem como funciona o mecanismo de quantitative easing. O leitor atento verá que Robert Mugabe na verdade não utilizou um quantitative easing, pois a impressão de dinheiro no Zimbábue foi para financiar déficits governamentais. No entanto, este é um mero detalhe, o efeito final é aumento da oferta monetária e desvalorização da moeda, seja através da compra pelo BC de títulos diretamente do governo ou de instituições financeiras. Além disso, como didaticamente explica o artigo da BBC, pergunto eu, por que não fazer o sistema mais eficiente. Acabemos com intermediários. Ora, se o objetivo é estimular empréstimos às empresas e aos consumidores, por que não emprestar diretamente? Desta forma o sistema de QE se torna muito mais eficiente e se há algum benefício de fato nesta política, ele será percebido de maneira muito mais rápida.
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