Salvem as crianças!
Quando o assunto é criança, a racionalidade -- especialmente dos pais -- não tem vez. Tudo vale a pena "pelo bem das crianças". Nenhum sacrifício é grande demais, nenhum inconveniente é relevante, a própria análise de custo-benefício é moralmente suspeita. A indústria de artigos para bebês bem sabe disso, e sempre inventa novos produtos "essenciais", que os pais ansiosos (especialmente os de primeira viagem -- meu caso) comprarão sem hesitar. Como será que os bebês sobreviveram por tantos séculos sem nossos 60 tipos de fralda e 300 variedades da chupeta? Sem falar nos CDs educativos para recém-nascidos.
Mas tem coisas que nem o pai mais desesperado do mundo deveria engolir; a lei da cadeirinha nos automóveis é uma delas. A partir de primeiro de setembro, será obrigatório, no transporte de crianças de até sete anos e meio, levá-las numa cadeirinha que é instalada no banco traseiro, e que vem em três tipos, um para cada faixa de idade. Sim, sete anos e meio.
Primeiro ponto: é claro que a cadeirinha aumenta a segurança em caso de acidente. Assim como andar na rua de capacete e colete à prova de balas diminui o risco de se ferir gravemente ou até morrer (tropeções, assaltos, balas perdidas, meteoritos; nunca se sabe). Um toque de recolher às 10 da noite (o que um homem de bem faria na rua a essa hora?) também seria ótimo para a segurança. Aliás, o melhor seria ficar sempre em casa, e só sair em casos emergenciais. Evitaríamos muitas mortes.
Só que evitar mortes não é tudo; existem milhões de considerações relevantes. Cada medida de segurança traz consigo um custo (dinheiro, perda de tempo, dor de cabeça), que pode ou não superar o benefício esperado. Botar o cinto de segurança tem um benefício esperado positivo e o custo é quase nulo, então sempre ponho. Mas algumas vezes, quando vou atrás num carro que não é meu, o cinto está enfiado embaixo do banco. Nesse caso, o trabalho de ter que levantar o banco e pedir para o meu amigo parar, na minha opinião, supera a segurança adicional que eu teria durante o traslado e a sensação reconfortante que o cinto oferece. Posso estar errado, e um acidente terrível acontecer bem dessa vez; ninguém é onisciente. Mesmo assim, pela minha estimação (o trajeto é curto, meu amigo guia bem, não correremos), a segurança extra não compensa o estorvo.
Outro cenário: sua tia-avó vem para o almoço, e ela faz questão de comer sorvete de papaia na sobremesa. A quinze minutos dela chegar, você abre o congelador e constata horrorizado que o sorvete acabou. Considere que há dois jeitos de guiar o carro até a padaria: cautelosamente, que é mais seguro, ou temerariamente, o que aumenta o risco de acidente, mas é mais rápido. Em condições normais de temperatura e pressão, você, sujeito sensato, minimizaria o risco de morte; mas com a tia-avó a caminho, cada segundo é precioso. Aceitar o risco extra é perfeitamente racional: você sabe que o percurso é curto e confia na sua destreza ao volante; sabe que, mesmo guiando apressado, o risco é baixo. E voilà, volta são e salvo com o troféu de papaia em mãos.
Se até coisas básicas como cinto e direção cautelosa admitem exceções, quanto mais o trambolho que são as cadeirinhas infantis. Tiram um assento útil do veículo, são caras (o bebê-conforto, que é o assento para bebês muito pequenos, custa uns 200 Reais) e chatas de instalar. Isso para quem tem um filho. Quem tem três pode desistir de passear legalmente com a família completa. Quando eu era bebê, minha mãe me levava no colo e, a partir de uns 3 ou 4 anos de idade, eu ia atrás sozinho, muitas vezes sem cinto (para poder deitar) -- era ótimo e cá estou, vivo. Hoje em dia, as enfermeiras da maternidade cometeriam suicídio em massa se eu sequer levantasse a possibilidade de transportar o bebê da forma antiga. Por causa da nossa neurose por segurança e saúde, quem não adere aos novos produtos e medidas é visto como um monstro sem coração. Um fenômeno social problemático, mas até aí tudo bem; ninguém é obrigado a seguir a opinião pública. É quando ela vira lei positiva que se torna inaceitável. Vamos admitir em alto e bom som: sim, há situações em que um minúsculo acréscimo na insegurança dos filhos se justifica por outros benefícios. E digo mais: todo pai minimamente são do planeta concorda comigo. Levar o filho a um restaurante aumenta suas chances de contrair doença; mas os benefícios de fazê-lo em geral superam esse risco adicional. QED.
É sintomático da nossa cultura que o único debate acerca da lei seja entre os que querem aplicá-la apenas a veículos de passeio e os que querem aplicá-la a todos os veículos (ônibus, táxis etc.). É inócuo, mas ao menos explicita o absurdo a que ela nos obriga, pois ou se aplica a lei arbitrariamente a apenas alguns casos, ou se chega a situações obviamente estapafúrdias, como um ônibus comum perdendo assentos úteis para instalar cadeirinhas que ficarão sub-utilizadas. E se chega uma criança quando todas já estiverem ocupadas? Ficam ela e o pai barrados na porta? E o taxista, vai guiar por aí com as três variedades de cadeirinha no porta-malas? Um leve inconveniente.
Alguns objetarão que os acidentados custam para a saúde pública, e que, portanto, a lei é bem-vinda. Antes, todos pagavam por um número X de acidentados. Agora, todos pagarão por um número menor, mas há, em contrapartida, o aumento do custo dos pais em comprar e instalar (e desinstalar, e instalar de novo) as cadeirinhas. O custo total é maior ou menor? Impossível saber (não que o governo tenha sequer tentado). Mas podemos ter certeza de que continuará a faltar dinheiro para a saúde, cujos gastos abusivos e onerosos devem-se ao eterno problema da saúde pública..... o fato de ela ser pública. Uns usam, outros pagam, a sociedade perde. Não se corrigirá esse problema sistêmico com leis punitivas para quem possa vir a precisar dos serviços médicos. A real solução, que é também a mais justa, é a única que o sistema não pode aceitar: cada um pagar pelo que utiliza.
Pesamos riscos e oportunidades, custos e benefícios, a todo o momento. O que vale numa situação pode não valer em outra. Se a pessoa julga que um dado benefício supera o risco que ele traz, isso é uma decisão dela e que só ela pode fazer, pois é ela que auferirá os ganhos e arcará com os prejuízos de suas escolhas. Eu usaria o bebê-conforto se não fosse obrigatório? Provavelmente. E a cadeirinha para o bebê de três anos? Provavelmente não. Outras pessoas prefeririam diferentes soluções, o que é ótimo: cada um toma as precauções que julgar cabíveis em suas condições específicas. O justo é também o eficiente.
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