Esse site usa cookies e dados pessoais de acordo com os nossos Termos de Uso e Política de Privacidade e, ao continuar navegando neste site, você concorda com suas condições.

< Artigos

Política

Como o chamado “socialismo democrático” inverte a lógica da sociedade civil

08/10/2025

Como o chamado “socialismo democrático” inverte a lógica da sociedade civil

Nota da edição:

Nos Estados Unidos, é muito popular entre políticos socialistas - como Alexandria Ocasio-Cortez, Bernie Sanders e agora o candidato à prefeito da cidade de Nova York, Zohran Mamdani – denominar-se “socialista democrático” como uma estratégia de propaganda, de modo a desvincular suas imagens do autoritarismo ditatorial típico de regimes socialistas. O artigo a seguir mostra os vários erros contidos nessa teoria.

_____________________________________________

Nova York está em alvoroço após o vereador da região do Queens, Zohran Mamdani, que se define como um socialista democrático, ter derrubado o ex-governador Andrew Cuomo e conquistado a nomeação democrata para a prefeitura, com base em uma plataforma defendendo o socialismo democrático que busca transformar funções econômicas importantes, como a distribuição de alimentos, em serviços administrados pelo governo, subvertendo a ordem espontânea do mercado dentro da sociedade civil.
No centro da plataforma de Mamdani está sua promessa de lançar uma rede de mercearias públicas, de propriedade da cidade e gerida pelo governo, como uma “opção pública de alimentos” voltada a reduzir os preços e eliminar os chamados “desertos” alimentares.

O socialismo democrático ganhou destaque após o colapso das economias de comando e controle do século XX. Com o descrédito do planejamento centralizado e o autoritarismo evidente dos regimes maoístas e stalinistas, os defensores do socialismo democrático procuraram dissociar sua visão dos antigos mecanismos socialistas de controle estatal. Sua estratégia retórica baseou-se em prefixar o termo “democrático” à palavra socialismo, como se o processo de tomada de decisão fosse capaz de redimir a essência coercitiva do sistema. Ao se distanciar dos legados totalitários do socialismo de estado, essa vertente reconfigura o socialismo não mais como um modelo de organização social, mas como uma ética participativa. Ela adota a linguagem da liberdade, da participação e da justiça, surgindo menos como um programa institucional concreto e mais como um imperativo moral: democratizar a economia, restaurar a igualdade e eliminar a alienação causada por hierarquias movidas pelo lucro.

Mas essa recalibração verbal não resolve, e sim oculta, a continuidade estrutural mais profunda com os modelos socialistas antigos. Essa manobra criou a ilusão de que o coletivismo coercitivo, quando filtrado pelo consentimento da maioria, deixava de ser coercitivo. O adjetivo “democrático” parecia suavizar o substantivo “socialismo” e, ao fazê-lo, não apenas encobria as dinâmicas coercitivas estruturais que permaneciam inalteradas, mas também, em um erro conceitual, realocava de forma equivocada o poder, ao compreender mal a verdadeira fonte da ordem que pretendia reformar. O resultado disso não é apenas um conjunto de reformas econômicas, mas uma inversão completa da lógica de organização da própria sociedade civil: a substituição dos marcos institucionais normativos pela politização procedimental da vida cotidiana, a troca da coordenação espontânea pelo controle eleitoral e o esvaziamento sistemático daquelas estruturas históricas, propriedade privada, common law (direito costumeiro), vida associativa e freios constitucionais, que tornam a sociedade civil possível desde o princípio.

Essa inversão, contudo, não é apenas retórica, mas arquitetônica em sua estrutura: o socialismo democrático não se limita a intervir na sociedade civil para alcançar determinados fins por meio de métodos democráticos, ele reprograma a própria lógica fundamental de funcionamento da sociedade. A sociedade civil, tanto nas perspectivas antigas quanto nas do Iluminismo inglês e escocês, não é um domínio da ação estatal, mas sim uma ordem espontânea de coordenação, contestação e continuidade, caracterizada como uma ecologia dispersa, na qual as normas e a ordem emergem da interação descentralizada, e não de decretos centralizados.

 

Dos fundamentos associativos ao duplo motor do socialismo democrático: “consentimento” populista e controle burocrático

Durante grande parte da tradição política ocidental, a sociedade civil foi compreendida, ainda que nem sempre nomeada dessa forma, como a arquitetura interna da própria vida política. Era o terreno de onde surgiam a coordenação, o juízo e a legitimidade; uma ecologia densa composta por funções, leis, associações e deliberação pública, que constituía o corpo político em si. Aristóteles não via separação categórica entre o cívico e o político: a polis era uma comunidade orgânica, unida por laços de finalidade comum. E, segundo ele, a soma dessas comunidades não forma um estado, pois este é uma associação de famílias e grupos voltada ao bem-estar, orientada para uma vida perfeita e autossuficiente, dentro de uma rede de ordem cívica.

Mesmo quando os contratualistas da modernidade romperam com o naturalismo aristotélico, eles preservaram a identificação entre sociedade civil e o corpo político (commonwealth). Hobbes, apesar de todo o seu absolutismo, situava a unidade cívica no momento em que a multidão conferia sua autoridade a um soberano: “Feito isso, a multidão assim unida em uma só pessoa é chamada de commonwealth; em latim, Civitas, como a personificação de sua vontade combinada”. Portanto, mesmo Hobbes, para quem a soberania era absoluta, via a sociedade civil como o ato de constituição de uma comunidade política, e não como um conjunto de funções delegadas de cima para baixo a partir de um aparato administrativo.

De modo semelhante, Locke, embora rejeitasse as bases filosóficas de Hobbes, ainda concebia a sociedade civil como um todo orgânico, unido pelo direito comum e por uma estrutura judiciária compartilhada, dentro da qual as disputas eram resolvidas e a justiça aplicada. Ele escreveu: “Aqueles que estão unidos em um mesmo corpo, e que possuem uma lei e um sistema de justiça estabelecidos em comum, com autoridade para decidir controvérsias entre si e punir os transgressores, encontram-se em sociedade civil uns com os outros”.

O Iluminismo escocês aprofundou ainda mais essa visão. Adam Ferguson tratou a sociedade civil não como um acréscimo voluntário ao estado, mas como o tecido historicamente diferenciado da vida política, entendendo-a não como um domínio externo ao estado, mas como o próprio tecido diferenciado do corpo político, formado historicamente à medida que costumes, mercados, associações e funções evoluem em conjunto dentro de uma única ordem cívica. A lei e o sistema judiciário articulavam normas que as precediam, da mesma forma que essas normas dependiam da adjudicação e do reconhecimento jurídico para manter sua credibilidade e eficácia. A sociedade civil não era um campo de experimentação para a benevolência do governo, mas sim o tecido que disciplinava o interesse próprio, orientava o comércio e protegia a coordenação da corrupção. Ferguson escreveu que, na ausência desses princípios orgânicos de ordenação da vida civil:

“(…) os homens mergulhariam, se não fossem contidos pelas leis da sociedade civil, em um cenário de violência ou de vileza, que mostraria nossa espécie, alternadamente, sob um aspecto mais terrível e odioso, ou mais vil e desprezível, do que qualquer animal que habita a terra”.

Hegel marca a primeira grande ruptura filosófica, ou “outrificação”, entre o cívico e o político. Enquanto Ferguson via a sociedade civil como o tecido em evolução da vida política, um campo no qual normas, julgamentos e coordenação surgem da ação humana sem um plano deliberado, Hegel a reformula como uma etapa contraditória situada entre a unidade da família e o estado ético, um reino subordinado das necessidades e das particularidades. A legitimidade, que antes era endógena à vida associativa, torna-se exógena, conferida pela arquitetura racional do estado. As contradições internas da sociedade civil, segundo Hegel, só podem ser resolvidas pelo “estado racional universal”:

“Aqui, a família se desfaz, e os membros tornam-se independentes uns dos outros, permanecendo unidos apenas pelo vínculo da necessidade mútua. Esta é a fase da sociedade civil, que frequentemente tem sido tomada como o próprio estado. Mas o estado não surge até alcançarmos a terceira etapa, a etapa da vida ética, ou do espírito, em que tanto a independência individual quanto a substância universal se encontram em uma união gigantesca”.

A subordinação da sociedade civil em Hegel é herdada por Marx e pela tradição socialista. Marx preserva a ideia de sua incompletude ética, mas reorienta seu propósito para a abolição da sociedade civil burguesa, substituindo-a pela unidade proletária sob a ditadura do proletariado. Essa linhagem se mantém ao longo da Segunda Internacional, do centralismo leninista e, posteriormente, do estatismo social-democrata, todos os quais tratam a vida associativa como estruturalmente insuficiente e normativamente subordinada, algo que deve ser reorganizado pelo estado, seja por meio da tomada revolucionária do poder, do planejamento desenvolvimentista ou da incorporação administrativa via políticas de bem-estar social.

O socialismo democrático faz de sua novidade operacional um motor duplo. De um lado, na entrada, encontra-se o “consentimento populista”, enraizado em uma retórica moralizada de participação e igualdade, que transforma qualquer queixa, real ou imaginada, e qualquer promessa de provisão em um estoque elástico de autorização política mediada pelo estado. Enquanto isso, sua máquina operacional funciona por meio da padronização do controle burocrático: programas verticalmente integrados que reúnem em uma única estrutura administrativa a definição de regras, o financiamento e a execução. Esses dois subsistemas se retroalimentam. Cada nova rodada de provisão visível, seja na forma de escolas, clínicas médicas, mercearias, transporte ou relações interpessoais antes orgânicas, amplia o palco no qual o consentimento é organizado, fornecendo a “prova” de que o cuidado centralizado “funciona”. Cada expansão obtida pela politização do consentimento autoriza um novo alcance institucional. Esse ciclo recompensa promessas megalomaníacas de resultados e pune a manutenção silenciosa ou a organização independente e orgânica dentro da sociedade, elevando a autoridade em detrimento da adaptabilidade.

Por baixo da substituição da sociedade civil orgânica, desenvolve-se uma espiral jurídica da qual o socialismo democrático luta para escapar: ele passa da legibilidade à discricionariedade e, depois, à opacidade. Conduzir uma sociedade heterogênea com base em fins ideológicos requer um plano simplificado, mas essa simplificação entra em colapso diante da diversidade real. Para lidar com isso, o estado se expande e espalha a arbitrariedade entre assistentes sociais, inspetores, presidentes de conselhos, responsáveis por compras e as incontáveis mãos da administração pública. Exercida atrás de um vidro procedimental, essa discricionariedade gera opacidade, aplicações seletivas da lei, critérios em constante mudança e o poder silencioso das exceções. Tudo isso se soma à influência crescente da política sobre a vida cotidiana e as relações humanas.

O regime é “democrático” em sua autorização, mas indeterminado em sua operação concreta. Os cidadãos se deparam com regras claras em sua formulação, porém imprevisíveis em sua aplicação, de modo que a experiência vivida é a de uma arbitrariedade revestida de justificativa pública. Constitucionalmente, a propriedade é redefinida, deixando de ser um direito de experimentação, passando a ser uma permissão condicional e revogável, atrelada a mandatos de uso e obrigações de serviço. O direito administrativo substitui o common law: a formação de precedentes e a compreensão jurídica se deterioram; a adjudicação migra para tribunais criados para produzir decisões uniformes, e não para adequação e fundamentação racional; a autoridade legal se desloca da congruência com expectativas sociais para a imposição de jurisdições ideológicas. As associações não são abolidas, mas colonizadas, dependentes de subsídios, sincronizadas com a política eleitoral e convertidas em “parcerias” que funcionam como administração delegada. Os freios e contrapesos formais permanecem, ainda que, na prática, a separação entre criar regras, julgá-las e executar serviços entre em colapso. Assim, a ordem política torna-se mais majoritária em suas cerimônias e menos livre em sua estrutura.

O socialismo democrático, ao fundir a autorização populista com o comando burocrático, inverte a lógica da sociedade civil: a coordenação espontânea cede lugar ao controle eleitoral, e a propriedade e os precedentes legais são substituídos pela discricionariedade administrativa. A busca por legibilidade gera discricionariedade, opacidade, associações colonizadas e uma provisão cada vez mais politizada. A ordem política torna-se mais majoritária em suas cerimônias, ao passo que sua estrutura se torna menos liberal. As relações humanas passam a ser cada vez mais politizadas. O espaço para a liberdade autônoma e dissidente regride gradualmente.

 

Este artigo foi originalmente publicado no Mises Institute.

 

Recomendações de leitura:

A cidade de Nova York se tornará o novo paraíso socialista?

Socialismo democrático é totalitarismo

_____________________________________________

Nota: as visões expressas no artigo não são necessariamente aquelas do Instituto Mises Brasil.

Sobre o autor

Vibhu Vikramaditya

Um acadêmico de economia e libertário com interesses de pesquisa em teoria do capital, teoria monetária e ciclos de negócios, escrevo sobre eventos na economia de um ponto de vista legal e econômico com uma perspectiva pró-liberdade e acredito que salvaguardar a liberdade e os direitos de cada indivíduo é o ato mais importante para a paz, prosperidade e crescimento.

Comentários (0)

Deixe seu comentário

Há campos obrigatórios a serem preenchidos!