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As engrenagens por trás do “queijo estatal”

07/10/2025

As engrenagens por trás do “queijo estatal”

Durável, transportável e divisível, em outras palavras, vendável no tempo, no espaço e em diferentes escalas. A Escola Austríaca de Economia reconhece essas como propriedades essenciais do dinheiro sólido. Contudo, além do extraordinário fenômeno social que é o dinheiro sólido, essas mesmas propriedades podem ser úteis para descrever outra das grandes maravilhas da humanidade: o queijo.

São exatamente essas características, combinadas à sua densidade nutricional, que conferiram ao queijo um papel notável na história militar. Desde garantir o abastecimento das legiões romanas da Antiguidade até, de modo surpreendente, garantir o sustento dos mongóis durante a formação do maior império terrestre contíguo da história. Dietas baseadas em grãos e colheitas prendiam os exércitos a territórios fixos; os mongóis, por outro lado, podiam empreender longas e brutais campanhas de conquista longe de casa, carregando carne seca, leite fermentado e queijo duro.

As propriedades de “dinheiro sólido” do queijo também levaram a casos históricos em que ele funcionou como meio de troca ou reserva de valor, duas funções centrais do dinheiro. Aluguéis eram pagos em queijo nos reinos do Mediterrâneo Ocidental durante a Alta Idade Média, e comunidades pastoris do Himalaia pagavam impostos em queijo até bem dentro do século XX. Esse uso de uma mercadoria como forma de escambo é mais um exemplo de como o dinheiro surge espontaneamente e de maneira descentralizada, contrariando a teoria chartalista e da MMT sobre a emergência estatal do dinheiro. Um episódio famoso do queijo sendo usado como reserva econômica de valor ocorreu durante o Grande Incêndio de Londres (1666), quando o diarista Samuel Pepys registrou ter cavado um buraco para enterrar e proteger sua “roda” de parmesão como um bem precioso. Ainda assim, os economistas austríacos ressaltariam, com razão, que o queijo não é dinheiro em sentido estrito, isso exigiria que ele fosse o meio de troca mais amplamente aceito dentro de um determinado território.

Além de nos ajudar a refutar as teorias estatistas falaciosas sobre o dinheiro, o queijo também pode nos ajudar a revelar outra falácia tão comum quanto o próprio ar, a saber: a ideia de que o intervencionismo beneficia a sociedade. Como diz Ludwig von Mises em seu breve e notável livro As Seis Lições, intervencionismo ocorre quando o governo decide interferir nos fenômenos do mercado. E poucas histórias ilustram o intervencionismo de forma tão vívida quanto a do “queijo estatal”. Podemos começar essa narrativa diretamente por seu clímax, o impressionante fato de que o governo dos Estados Unidos atualmente possui cerca de 1,4 bilhão de libras (aproximadamente 635 milhões de quilos) de queijo armazenado, em sua maioria guardado em “cavernas de queijo” no estado do Missouri. Para se ter uma ideia da dimensão disso, essa quantidade seria suficiente para alimentar toda a população norte-americana por cerca de quatro dias, caso todos adotassem uma dieta composta exclusivamente de queijo (do ponto de vista puramente calórico).

Como chegamos a esse ponto não surpreenderá os leitores do livro A Economia em Uma Única Lição de Henry Hazlitt que, seguindo os ensinamentos de Frédéric Bastiat sobre a importância de observar os efeitos não vistos das políticas governamentais, nos leva a considerar os impactos de longo prazo de uma política, rastreando suas consequências não apenas para um grupo, mas para todos. Após uma escassez de laticínios na década de 1970, os preços do leite subiram, e a administração Carter decidiu introduzir subsídios ao setor. Em quatro anos, cerca de 2 bilhões de dólares foram canalizados para a indústria, o que, previsivelmente, levou à superprodução. Os fazendeiros sabiam que o governo compraria o excedente que os consumidores não consumissem. Devido à perecibilidade do leite, o governo processou o excedente em queijo, manteiga e leite em pó.

Embora seja amplamente reconhecido como um desastre econômico, veículos da grande mídia, como o programa Planet Money da NPR, ainda descrevem esse programa de subsídios como algo “bem-intencionado”. No entanto, como sempre, é preciso questionar as próprias intenções do governo. Muitos programas de assistência alimentar que foram apresentados ao público como iniciativas voltadas para ajudar os pobres, na realidade, surgiram da necessidade de se livrar de excedentes, que por sua vez eram resultado direto do intervencionismo estatal. De acordo com Andrew Novakovic, professor de Economia Agrícola na Universidade Cornell, “quase todos os grandes programas de assistência alimentar foram ideias que vieram do setor agrícola, porque tínhamos algum produto em excesso”. Em 1981, o então Secretário de Agricultura dos Estados Unidos declarou aos repórteres da Casa Branca, enquanto segurava em suas mãos um bloco de queijo de cinco libras [aproximadamente 2,3 Kg] já mofando:

“Temos 60 milhões desses que pertencem ao governo (...) Está mofado, deteriorando-se (...) não conseguimos encontrar mercado para isso, não conseguimos vender, e estamos procurando uma forma de doar parte desse queijo”.

Como consequência, a administração Reagan instituiu a distribuição do queijo estatal por meio do Programa Temporário de Assistência Alimentar de Emergência (TEFAP, na sigla em inglês), com o queijo estatal passando a ser distribuído em bancos de alimentos e centros comunitários, tornando-se um verdadeiro “símbolo da cultura americana”.

A intervenção econômica do governo, por menor que possa parecer, pode gerar impactos culturais profundos. A inflação da oferta monetária, por exemplo, já foi apontada como capaz de destruir a civilização. No caso que analisamos, os subsídios ao setor de laticínios e a superprodução resultante levaram à necessidade de impulsionar o consumo de leite entre os cidadãos, algo que se materializou na famosa campanha publicitária “Got Milk?”.

Mises nos alertou que uma política de “meio-termo” entre o capitalismo de livre mercado e uma economia socialista planejada resulta em um sistema econômico instável, funcionando apenas como um método de implantação do “socialismo por prestações”. O caso do “queijo estatal” é um exemplo emblemático dessa lógica, o que começou como subsídios para produtores de leite acabou se transformando em amplos programas de assistência alimentar.

A história do queijo estatal é também a história de grandes corporações do setor lácteo influenciando as políticas governamentais em benefício próprio, às custas de todos os outros produtores, inclusive os pequenos agricultores, e também dos consumidores. Ela nos recorda o quão nocivos podem ser os resultados do intervencionismo dentro de um sistema democrático vulnerável aos interesses de lobby.

A trajetória da indústria do milho nos Estados Unidos é um paralelo claro: os subsídios levaram à superprodução, e logo o xarope de milho passou a saturar os alimentos processados, enquanto o etanol de milho era promovido como um combustível “verde”. O mesmo fenômeno pode ser observado com os óleos de sementes, considerados anteriormente como apenas subprodutos industriais e que, hoje, são agressivamente promovidos nas diretrizes nutricionais oficiais do governo americano.

Os interesses de lobby, é claro, não são monolíticos. A onda de discursos contrários ao consumo de produtos de origem animal aparentemente conquistou o establishment de saúde do governo dos Estados Unidos, superando a influência dos lobistas da indústria do leite. Apesar de sinais recentes de mudança com o novo secretário de saúde, o consumo de laticínios nos EUA vem caindo de forma constante. Essa queda provavelmente reflete um fenômeno mais amplo que pode ser chamado de “comida fiduciária” [fiat food], uma consequência das recomendações alimentares governamentais equivocadas, derivadas de políticas econômicas inflacionárias (em outras palavras, alimentos mais baratos são promovidos para aliviar o peso da inflação sentido pelos consumidores). Essa redução no consumo ajuda a explicar como o governo dos EUA acabou acumulando o já mencionado excedente de 1,4 bilhão de libras de queijo. Do queijo estatal ao xarope de milho rico em frutose, dos óleos de sementes até a própria pirâmide alimentar, o padrão é evidente: as intervenções servem aos lobistas, não à saúde pública.

Para concluir, o “queijo estatal” é mais um fracasso lendário, ou poderíamos dizer legend dairy, do intervencionismo. O intervencionismo compromete tanto a liberdade quanto a prosperidade. O monopólio estatal sobre a lei e a proteção permite que o estado expanda sua influência para parcelas cada vez maiores da economia. Sob essa perspectiva, mesmo um estado mínimo, o chamado “night-watchman state”, pode ser menos viável do que o desmantelamento completo do aparato estatal monopolizado e involuntário.

 

Este artigo foi originalmente publicado no Mises Institute.

 

Recomendações de leitura

O lado invisível da intervenção governamental

Um exemplo prático de como a intervenção estatal afeta o mercado de livros no Brasil

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Nota: as visões expressas no artigo não são necessariamente aquelas do Instituto Mises Brasil.

Sobre o autor

Ludovico Lumicisi

É estudante de graduação em engenharia da computação na Universidade Técnica da Dinamarca (DTU). Ele é bacharel em Administração de Empresas e Sociologia pela Copenhagen Business School (CBS). Formou-se na Mises University em 2025 e foi finalista do Concurso de Redação para Estudantes de Graduação Kenneth Garschina na Austrian Economics Research Conference de 2025. Suas áreas de interesse incluem sociedades sem estado, guerra social e saúde pública.

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