Os liberais eram opositores radicais das guerras e do militarismo
Um dos elementos mais desastrosos do movimento conservador americano no período pós–Segunda Guerra Mundial foi o seu empenho em desvincular a ideologia do “liberalismo clássico” de suas raízes históricas na política externa antiguerra e anti-intervencionista. O que hoje chamamos de liberalismo clássico, a ideologia de John Locke, Thomas Jefferson, Frédéric Bastiat, Richard Cobden e Herbert Spencer, manteve-se coerente em sua oposição ao poder estatal em todas as esferas, tanto internacionais quanto domésticas.
Isso era verdade nos Estados Unidos até o início do século XX, quando os chamados liberais, hoje reconhecidos como “liberais clássicos” ou “libertários”, eram caracterizados pelo anti-imperialismo, pela contenção nos gastos militares e por uma filosofia geral que atualmente é depreciada sob o rótulo de “isolacionismo”.
Entretanto, depois da Segunda Guerra, o novo movimento conservador conseguiu neutralizar a antiga oposição liberal laissez-faire à intervenção em assuntos estrangeiros, sob o pretexto de combater os comunistas. Os conservadores substituíram as antigas facções laissez-faire por uma nova ideologia incoerente, que alegava favorecer a “liberdade e o livre mercado”, mas ao mesmo tempo promovia gastos militares desenfreados e uma política externa intervencionista interminável. Tudo isso, é claro, deveria ser feito em nome da “liberdade” e da “democracia”.
Muitos conservadores americanos que se consideram “liberais clássicos”, ou, de algum modo, herdeiros ideológicos do laissez-faire, caíram nesse engodo histórico já há muitas décadas.
A verdadeira história do liberalismo clássico: a oposição ao estado e às suas guerras
Para compreender melhor a dimensão dessa guinada, e o quanto ela representou uma vitória para as forças do militarismo, precisamos primeiro considerar quão intimamente a ideologia do liberalismo laissez-faire esteve associada ao sentimento antiguerra nos anos formativos do liberalismo.
Na sua obra sobre a história do pensamento político, o historiador Ralph Raico observa que a ideologia que hoje chamamos de liberalismo clássico considerava a oposição à guerra e à intervenção estrangeira como parte central de sua própria identidade. Mesmo liberais moderados, como o primeiro-ministro britânico William Gladstone, colocavam a paz em posição de destaque em seus programas políticos. Raico escreve:
“A exaltação da paz caracterizou o movimento liberal clássico desde o século XVIII, pelo menos desde Turgot, passando pelo século XIX até mesmo Gladstone, que, francamente, não era tão liberal assim. Seu slogan na Grã-Bretanha vitoriana era: ‘Paz, contenção e reforma’”.
Esse liberalismo pró-paz era a forma padrão de liberalismo na Grã-Bretanha por meio da Escola de Manchester, de Richard Cobden, e também na França, através de divulgadores e estudiosos, como os editores liberais radicais do jornal político Le censeur européen. No cabeçalho de cada edição do jornal aparecia a frase “paix et liberté” (paz e liberdade).
Entre os editores do jornal estava Charles Dunoyer, uma figura de destaque da escola liberal francesa, e aliado próximo de Charles Comte, genro de Jean-Baptiste Say. Como a maioria dos liberais de sua época, tanto nos Estados Unidos quanto na Grã-Bretanha, Dunoyer se opunha aos exércitos permanentes. Ele escreveu:
“Qual é a produção dos exércitos permanentes da Europa? Consiste em massacres, estupros, saques, incêndios, vícios e crimes, na privação, ruína e escravidão dos povos. Os exércitos permanentes foram a vergonha e o flagelo da civilização”.
Da mesma forma, as ideias de Dunoyer refletiam-se nos escritos de Frédéric Bastiat, que buscava abolir o exército permanente da França. Em um panfleto de 1847, com o título The Utopian, Bastiat lembrou seus leitores que os gastos militares representam, em geral, um enorme desperdício de dinheiro, e que a exploração dos contribuintes poderia ser amplamente reduzida caso o tamanho das forças armadas francesas fosse drasticamente diminuído. Especificamente, Bastiat propunha abolir “todo o exército”, com exceção de “algumas divisões especializadas”, que deveriam ser compostas por voluntários, já que Bastiat, evidentemente, também defendia o fim do recrutamento obrigatório. Ele desejava substituir o exército estatal por uma milícia de cidadãos privados armados. Como Bastiat afirmou: “Todo cidadão deve saber duas coisas: como prover sua própria existência e como defender seu país”.
Nesse ponto, Bastiat também ecoava os sentimentos americanos. Nos Estados Unidos, a oposição ao militarismo assumia a forma de uma veemente rejeição a uma força militar centralizada e a um exército permanente. Além disso, a ausência de tributação direta também dificultava o financiamento de um grande aparato militar.
Liberais, como George Mason, deixaram claro que o poder militar dos Estados Unidos deveria residir principalmente na propriedade privada de armas e nas milícias localmente controladas nos diversos estados. Culturalmente, os americanos do século XIX viam as tropas federais com grande desconfiança. Embora fosse considerado louvável servir por um período nas milícias voluntárias, os americanos viam os soldados que trabalhavam em tempo integral nas tropas federais como parasitas vivendo às custas do governo. (A cultura moderna de bajular funcionários públicos, pelo menos os da esfera militar, e agradecê-los por seu “serviço” teria sido considerada bizarra na América liberal clássica do século XIX.) Essas avaliações refletiam as opiniões de muitos membros da geração fundadora dos Estados Unidos, incluindo James Madison, que, segundo Raico, “escreveu sobre a guerra como talvez o maior de todos os inimigos da liberdade pública, gerando exércitos, dívidas e impostos, ‘os instrumentos conhecidos por subjugar a maioria sob a dominação de poucos’”.
Além disso, Raico mostra que as ideias de Dunoyer eram típicas dos liberais da chamada “escola industrialista”, que foi pioneira na teoria liberal da exploração. Ao contrário do mito moderno de que os liberais clássicos rejeitavam noções de conflito de classes, foram, na realidade, os próprios liberais que desenvolveram essa ideia. Nessa perspectiva, a classe que “vive dos impostos” explora a classe que “paga impostos”, que é obrigada a sustentar o regime. Para a escola industrialista do liberalismo clássico, a guerra era um dos principais meios pelos quais o regime e seus aliados exploravam as classes produtivas.
Raico observa que “uma posição pró-paz era central para a visão de mundo da escola industrialista, (…) seu ataque ao militarismo e aos exércitos permanentes era feroz e implacável”. Herbert Spencer, um liberal britânico que também exerceu grande influência nos Estados Unidos no final do século XIX, pode igualmente ser incluído entre aqueles que aderiram à teoria da exploração da escola industrialista. Para Spencer, a guerra estatal era um resquício do passado, destrutiva tanto para a liberdade quanto para o progresso econômico. Ou, como Raico resume a visão de Spencer:
“Spencer acreditava (…) que a guerra era adequada apenas ao estágio primitivo da humanidade. O mundo ocidental, no entanto, havia há muito deixado o estágio da militância e entrado no estágio do industrialismo. (…) A guerra, no mundo contemporâneo, era retrógrada e destrutiva de todos os valores superiores. Já no início de sua carreira, em 1848, Spencer sustentava, assim como a Escola de Manchester, que as guerras eram causadas pela ambição desenfreada da aristocracia”.
A referência à aristocracia também era um sentimento comum entre os liberais clássicos, que viam a obsessão do Estado pela guerra como uma característica dos regimes absolutistas e antiliberais da Europa.
Raico compartilhava dessa visão, observando que, no mundo pré-liberal, a maioria das pessoas não passava de peões a serem manipulados em benefício do Estado central e de seus agentes. Segundo Raico:
“Em 1740, Frederico II da Prússia, chamado de ‘o Grande’, provavelmente (…) porque era um assassino em massa, mergulhou o mundo em uma guerra. Depois, quando lhe perguntaram o porquê, ele respondeu: ‘porque eu queria que comentassem sobre mim’. Era possível, nesse mundo anterior ao liberalismo e ao capitalismo, falar da guerra nesses termos porque o liberalismo e a ideologia liberal ainda não haviam transformado a guerra em algo terrível”.
A tradição das classes dominantes de tratar a guerra como um mero capricho era a norma antes do surgimento do liberalismo no século XVIII. O grande liberal francês Benjamin Constant observa essa postura entre os governantes do mundo antigo. Como coloca Raico, Constant acreditava que “os antigos, os gregos e os romanos, apesar de suas conquistas, eram basicamente sociedades fundadas na guerra e na prática constante da guerra, o que incluía, naturalmente, o imperialismo e o saque de outras sociedades”. Essas sociedades não compreendiam o valor dos mercados e da troca voluntária como os liberais o fazem, e, por isso, estruturavam seus sistemas de valores em torno da guerra, do conflito e da força. Como afirmou Constant:
“A guerra, portanto, precede o comércio. Uma é impulso selvagem, a outra é cálculo civilizado. (…) A República Romana, sem comércio, sem letras, sem artigos, não tendo outra ocupação interna além da agricultura (…) e sempre ameaçada ou ameaçando, dedicava-se ao negócio das operações militares contínuas”.
Ludwig von Mises também identificou a antiga fixação pela guerra quando, em seu livro Liberalismo, contradisse diretamente o grego Heráclito, que havia declarado que “a guerra é a mãe de tudo e a rainha de tudo”. Ao contrário, Mises escreveu que “não a guerra, mas a paz é a mãe de todas as coisas”.
Murray Rothbard ecoou esses sentimentos. Em sua história da direita americana do pós-guerra, Rothbard recorda sua percepção, na época, de que a ideologia belicista estava longe de ser uma invenção moderna. Na realidade, o consenso militarista moderno dos sociais-democratas e conservadores após a Segunda Guerra Mundial “foi uma reversão ao antigo despotismo do ancien régime”. Ele prossegue:
“Esse ancien régime era a Velha Ordem contra a qual os movimentos libertários e laissez-faire dos séculos XVIII e XIX haviam surgido como oposição revolucionária: uma oposição em nome da liberdade econômica e da liberdade individual. Jefferson, Cobden e Thoreau, como nossos predecessores, foram ancestrais em mais de um sentido; pois tanto nós quanto eles estávamos combatendo um estatismo mercantilista que estabelecia o despotismo burocrático e os monopólios corporativos em casa, enquanto travava guerras imperialistas no exterior”.
Ao dizer “nós”, Rothbard se referia aos libertários, os verdadeiros herdeiros dos liberais clássicos, e não aos neoconservadores da “Nova Direita”.
Nisso, Rothbard também ecoava os anti-imperialistas da América do final do século XIX, que buscavam conter a trajetória dos Estados Unidos em direção ao militarismo e ao intervencionismo global ao estilo europeu. Raico observa que o movimento anti-imperialista girava em torno dos liberais clássicos Edward Atkinson, um seguidor da Escola de Manchester, e E.L. Godkin, do The Nation, que Raico descreve como “a principal publicação liberal clássica” nos Estados Unidos da época.
Mas talvez o ataque mais famoso contra a guinada americana rumo ao militarismo global, ilustrada pela guerra dos EUA contra a Espanha em 1898, tenha sido a obra de William Graham Sumner. Sumner, um influente liberal clássico e sociólogo de Yale, proferiu uma palestra em 1899, intitulada “A Conquista dos Estados Unidos pela Espanha”. O título era um jogo de palavras, dado que os EUA haviam, em termos militares, derrotado facilmente o exército espanhol. No entanto, Sumner temia que, na realidade, fossem os Estados Unidos, ou, ao menos, o rapidamente agonizante sentimento anti-guerra da América republicana, que tivesse sido derrotado na guerra. Ao contrário, Sumner sustenta que os americanos haviam abandonado a contenção do liberalismo laissez-faire em favor, como coloca Raico, da “grandiosidade do império.” Isso, evidentemente, seria atraente para aqueles que se deleitam no poder e no prestígio do Estado, mas, como observa Sumner, vem com um preço: “guerra, dívida, tributação, diplomacia, um grande sistema governamental, pompa, glória, um grande exército e marinha, gastos extravagantes, negociatas políticas, em uma palavra, imperialismo”.
A derrota dos liberais clássicos anti-intervencionistas no pós-guerra
É desnecessário dizer que a maioria dos americanos modernos, tanto da esquerda quanto da direita, consideraria essas ideias dos liberais do século XIX como ultrapassadas ou ingênuas.
A mentalidade moderna, entretanto, representa o triunfo das forças do militarismo e do intervencionismo sobre o espírito do laissez-faire.
Como e quando isso aconteceu? Na esquerda, o antigo espírito de paz e anti-intervenção foi destruído primeiro pelos esforços de guerra de Woodrow Wilson na Grande Guerra. O golpe final veio com o entusiasmo do governo Roosevelt pela Segunda Guerra, tanto na Ásia quanto na Europa.
Na direita, porém, o fim do sentimento liberal anti-guerra foi mais gradual. Entre os conservadores, o impulso liberal clássico em favor da paz foi destruído pela ascensão do movimento neoconservador.
Murray Rothbard descreve esse processo em The Betrayal of the American Right [A Traição da Direita Americana, em tradução livre]. Rothbard mostra que, embora a chamada Nova Direita ainda contivesse as antigas coalizões libertárias anti-intervencionistas e pró-mercado, os grupos mais conectados ao liberalismo clássico histórico, essa não era a facção dominante. Pelo contrário, essa Nova Direita, em contraste com a Velha Direita, passou a ser dominada por um “bando cada vez mais poderoso de ex-comunistas e ex-esquerdistas”. Esse novo conservadorismo baseava-se principalmente na caça aos comunistas e no fortalecimento do poder estatal para combater comunistas (tanto reais quanto imaginários), dentro e fora do país. Tudo isso foi eventualmente confirmado e consolidado com a ascensão de William F. Buckley Jr. como o principal teórico do chamado movimento conservador. Para Buckley, que chegou a defender o totalitarismo em nome da Guerra Fria, o laissez-faire não passava de um osso conveniente cinicamente jogado aos remanescentes dos antigos liberais laissez-faire, apenas para mantê-los dentro do espectro político da direita.
Isso serviu para neutralizar o movimento laissez-faire durante a Guerra Fria, e essa nova ideologia do conservadorismo acabou por divorciar o velho liberalismo laissez-faire de suas raízes históricas anti-guerra.
Essa mudança ainda pode ser vista hoje na forma como o movimento conservador, e seu braço político, o Partido Republicano, conseguiu enxertar uma aparência de “liberdade e mercados livres” sobre aquilo que permanece, essencialmente, um movimento pró-governo e militarista, favorável a “espalhar a democracia” por meio de um robusto aparato militar e de um estado de vigilância. Suas origens remontam ao anticomunismo militante e pró-governo da década de 1950. Isso continua a ser refletido no movimento conservador atual.
Por décadas, cada vez mais poder federal foi defendido por essa coalizão conservadora em nome de derrotar os comunistas. Esse mesmo impulso, então, transferiu-se sem dificuldades para a “guerra global contra o terror” e para o novo aparato de espionagem implantado contra os próprios americanos após o 11 de Setembro. Até mesmo a atual coalizão “MAGA”, que é relativamente menos nociva do que as coalizões belicistas de Bush e Nixon no passado, promete ainda mais gastos militares e ainda mais vigilância federal em nome da “segurança nacional”. Afinal, um estado federal de segurança e espionagem seria, presumivelmente, necessário para prender pessoas que escrevem artigos de opinião em apoio ao Hamas ou imigrantes que possam conseguir um emprego sem a devida papelada federal.
A esquerda, é claro, perdeu-se quase totalmente nesse aspecto. Qualquer movimento anti-guerra que ocasionalmente exista na esquerda tende a desaparecer completamente sempre que há um democrata na Casa Branca. Pior ainda, a esquerda agora tenta superar a direita em seu próprio jogo, a esquerda rotineiramente acusa seus inimigos ideológicos de serem agentes estrangeiros em um grau que talvez até fizesse Joseph McCarthy hesitar.
Entre os conservadores, no entanto, parece não haver um canto do globo que não exija intervenção dos EUA. Entre os conservadores, no entanto, parece não haver canto do globo que não exija intervenção dos EUA. Essa postura continua apesar do fato de que muitos defensores do “America First” afirmam ser a favor de uma política externa minimalista. Contudo, não há nada de minimalista na contínua intervenção tanto no Oriente Médio quanto na Ucrânia, onde o candidato “America First” assinou um novo acordo de minérios que manterá o governo dos EUA envolvido ali indefinidamente. Não há nada de “America First” no apoio militar aberto e contínuo a um estado israelense que nunca se cansa de tentar arrastar os Estados Unidos cada vez mais fundo em suas guerras regionais. Não há nada de “America First” nos esforços da administração Trump para garantir um orçamento militar de um trilhão de dólares e manter o financiamento de um arquipélago de centenas de bases militares americanas espalhadas pela Europa e pela Ásia.
É claro que qualquer verdadeiro liberal clássico, qualquer verdadeiro opositor do poder estatal sem freios, de Spencer a Jefferson, de Cobden a Bastiat, denunciaria o exército permanente, a despesa militar sufocante e o imperialismo resultante da intervenção global sem fim. Se estivessem aqui para fazê-lo, certamente seriam eles próprios denunciados pelos conservadores, que chamariam os pioneiros do laissez-faire de “pacifistas ingênuos” e talvez até de “traidores” por não abraçarem um estado americano forte.
Este artigo foi originalmente publicado no Mises Institute.
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Liberdade e guerra - uma breve história
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Nota: as visões expressas no artigo não são necessariamente aquelas do Instituto Mises Brasil.
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