Esse site usa cookies e dados pessoais de acordo com os nossos Termos de Uso e Política de Privacidade e, ao continuar navegando neste site, você concorda com suas condições.

< Artigos

Filosofia

Keynes, o homem

24/09/2025

Keynes, o homem

Nota da Edição:

O artigo a seguir reproduz os capítulos três, quatro e cinco do livro Keynes, The Man, escrito pelo economista e filósofo libertário Murray Rothbard. Neste pequeno livro, disponibilizado para download gratuito pelo Mises Institute, o autor procura fazer uma biografia, tanto intelectual quanto pessoal, do economista John Maynard Keynes, de modo a mostrar o contexto no qual Keynes estava inserido e a influência que esses fatores tiveram na construção da economia keynesiana.

_____________________________________________ 

O Apóstolo de Cambridge

A melhor educação disponível para a elite inglesa foi garantida a John Maynard Keynes por seu afetuoso pai. Primeiro, ele foi aluno bolsista no College em Eton, a subdivisão intelectual da escola pública mais influente da Inglaterra. De lá, Maynard seguiu para o King’s College, que, junto com o Trinity, era um dos dois colégios mais influentes da Universidade de Cambridge.

No King’s, Maynard logo foi selecionado para a cobiçada associação à sociedade secreta dos Apóstolos, uma organização que rapidamente moldou seus valores e sua vida. Keynes atingiu a maturidade social e intelectual dentro dos limites desse pequeno e incestuoso mundo de sigilo e superioridade. Os Apóstolos não eram simplesmente um clube social, nos moldes das fraternidades secretas da Ivy League. Eles também se viam como uma elite intelectual consciente de si mesma, especialmente interessada em filosofia e em suas aplicações à estética e à vida.

Os membros dos Apóstolos eram escolhidos quase exclusivamente entre o King’s e o Trinity, e se reuniam todos os sábados à noite, a portas trancadas, para apresentar e discutir artigos acadêmicos[i]. Durante o restante da semana, os membros praticamente viviam nos quartos uns dos outros. Além disso, ser um Apóstolo não era simplesmente um passatempo para estudantes da graduação, tratava-se de uma associação vitalícia, valorizada como tal. Pelo resto de suas vidas, os Apóstolos adultos (conhecidos como “Anjos”), incluindo Keynes, frequentemente retornavam a Cambridge para reuniões e participavam ativamente do recrutamento de novos estudantes de graduação.

Em fevereiro de 1903, aos 20 anos, John Maynard Keynes assumiu seu lugar como Apóstolo número 243 em uma cadeia que remontava à fundação da sociedade, em 1820. Nos cinco ou seis anos formativos seguintes, Maynard passou quase toda a sua vida privada entre os Apóstolos, e seus valores e atitudes foram moldados de acordo com isso. Além disso, a maior parte de sua vida adulta foi vivida entre Apóstolos mais velhos e mais novos, seus amigos ou seus familiares.

Uma razão importante para o efeito poderoso da Sociedade dos Apóstolos sobre seus membros era sua intensa atmosfera de confidencialidade. Como escreve Robert Skidelsky, biógrafo de Keynes:

“Nunca se deve subestimar o efeito da confidencialidade. Grande parte do que tornava o resto do mundo algo estranho brotava desse combustível simples. O segredo era um vínculo que amplificava enormemente a vida da Sociedade em relação aos outros interesses de seus membros. Afinal, é muito mais fácil passar o tempo com pessoas diante das quais não é preciso guardar grandes segredos; e passar muito tempo com elas reforça qualquer que tenha sido a razão que as reuniu para começo de conversa” (Skidelsky, 1983, p. 118; ver também Deacon, 1986).

A incrível arrogância dos Apóstolos pode ser resumida da melhor forma por uma piada kantiana (com fundo de verdade) da Sociedade: a de que somente ela era “real”, enquanto o resto do mundo era apenas “fenomenológico”. O próprio Maynard costumava se referir aos não-Apóstolos como “fenômenos”. Tudo isso significava que o mundo exterior era visto como menos importante, menos digno de atenção do que a própria vida coletiva da Sociedade.

Era uma piada com um fundo bastante sério (Skidelsky, 1983, p. 118). “Foi graças à existência da Sociedade”, escreveu o Apóstolo Bertrand Russell em sua Autobiografia, “que logo passei a conhecer as pessoas que mais valia a pena conhecer”. De fato, Russel observou que, quando o Keynes adulto deixou Cambridge, viajou pelo mundo com a sensação de ser o bispo de uma seita em terras estrangeiras. “A verdadeira salvação para Keynes”, comentou Russell de forma perspicaz, “estava em outro lugar, entre os fiéis em Cambridge” (Crabtree e Thirlwall, 1980, p. 102).

Ou, como o próprio Maynard escreveu durante seus anos de graduação, em uma carta a seu amigo e co-líder, Giles Lytton Strachey: “Será que é monomania, essa superioridade moral colossal que sentimos? Tenho a impressão de que a maior parte do resto [do mundo fora dos Apóstolos] nunca vê absolutamente nada, são estúpidos demais ou perversos demais” (Skidelsky 1983, p. 118)[ii].

Duas atitudes básicas dominaram esse grupo hermético sob a égide de Keynes e Strachey. A primeira era a crença absoluta na importância do amor pessoal e da amizade, ao mesmo tempo em que desprezavam quaisquer regras ou princípios gerais que pudessem limitar seus próprios egos; e a segunda, sua animosidade e desprezo pelos valores e pela moralidade da classe média. O confronto dos Apóstolos com os valores burgueses incluía o elogio da estética de vanguarda, a defesa de que a homossexualidade era moralmente superior (com a bissexualidade em um distante segundo lugar[iii]), e o ódio a valores familiares tradicionais, como a parcimônia ou qualquer ênfase no futuro ou no longo prazo, em comparação com o presente. (“No longo prazo”, como Keynes proclamaria depois em sua frase infâme, “estaremos todos mortos”).

 

Bloomsbury

Após se formar em Cambridge, Keynes e muitos de seus colegas Apóstolos foram morar em Bloomsbury, uma região pouco elegante no norte de Londres. Ali formaram o hoje famoso Bloomsbury Group, um centro da vanguarda estética e moral que se tornou a força cultural e intelectual mais influente da Inglaterra durante as décadas de 1910 e 1920.

A formação do Bloomsbury Group foi inspirada pela morte do eminente filósofo da Era Vitoriana e liberal clássico Sir Leslie Stephen, em 1904. Os filhos jovens de Stephen, se sentindo libertos com a partida da rígida presença moral do pai, rapidamente montaram uma casa em Bloomsbury e começaram a promover bailes literários às quintas-feiras. Thoby Stephen, embora não fosse um Apóstolo, era amigo próximo de Lytton Strachey no Trinity College. Strachey e outros Apóstolos, bem como outro bom amigo de Strachey em Trinity, Clive Bell, tornaram-se frequentadores assíduos desses bailes.

Depois que Thoby morreu em 1906, Vanessa Stephen casou-se com Bell, e os encontros em Bloomsbury dividiram-se em dois grupos. Como Clive era um crítico de arte em ascensão e Vanessa era pintora, eles estabeleceram os bailes das sextas-feiras [conhecidos como Friday Club], com foco nas artes visuais. Enquanto isso, Virginia e Adrian Stephen retomaram os bailes das quintas-feiras com ênfase em literatura, filosofia e cultura. Eventualmente, o Apóstolo de Trinity Leonard Woolf, amigo e contemporâneo de Keynes, casou-se com Virginia Stephen. No fim de 1909, Keynes mudou-se para uma casa em Bloomsbury, muito próxima à dos Stephens, onde dividiu um apartamento com o artista Duncan Grant, primo de Strachey.

Os valores e atitudes de Bloomsbury eram semelhantes aos dos Apóstolos de Cambridge, ainda que com um viés mais artístico. Com forte ênfase na rebelião contra os valores vitorianos, não é de se estranhar que Maynard Keynes tenha sido um destacado membro de Bloomsbury. Uma característica marcante foi a busca pela arte de vanguarda e formalista, promovida pelo crítico de arte e Apóstolo de Cambridge Roger Fry, que mais tarde retornaria a Cambridge como professor de Arte. Virginia Stephen Woolf se tornaria uma importante representante da ficção formalista. E todos eles buscavam energicamente um estilo de vida de bissexualidade promíscua, como foi revelado na biografia de Strachey escrita por Michael Holroyd (1967).

Como membros do círculo cultural de Cambridge, o Bloomsbury Group desfrutava de riquezas herdadas, ainda que modestas. Mas, com o passar do tempo, a maior parte do financiamento das várias exposições e projetos de Bloomsbury veio de seu leal integrante, Maynard Keynes. Como escreve Skidelsky, Keynes “acabou dando a Bloomsbury força financeira, não apenas por ganhar muito dinheiro por conta própria [em grande parte por meio de investimentos e especulação financeira], que gastava generosamente em causas de Bloomsbury, mas também por sua capacidade de organizar apoio financeiro para seus empreendimentos.” De fato, a partir da Primeira Guerra Mundial tornou-se quase impossível encontrar qualquer empreendimento, cultural ou doméstico, do qual membros de Bloomsbury participassem e que não se beneficiasse de alguma forma da generosidade de Keynes, de sua perspicácia financeira ou de seus contatos (Skidelsky, 1983, p. 250; ver também pp. 242–251).

 

O Filósofo Mooerita

O maior impacto na vida e nos valores de Keynes, sua grande experiência de conversão, não veio da economia, mas da filosofia. Poucos meses após a iniciação de Keynes nos Apóstolos, G.E. Moore, professor de filosofia no Trinity que havia se tornado um Apóstolo uma década antes de Keynes, publicou sua obra-prima, Principia Ethica (1903). Tanto na época quanto em suas lembranças três décadas depois, Keynes testemunhou o enorme impacto que o Principia tivera sobre ele e seus colegas Apóstolos.

Em uma carta escrita na época de sua publicação, ele afirmou que o livro “é uma obra estupenda e fascinante, a maior sobre o assunto” [itálico de Keynes]; e, alguns anos mais tarde, escreveu a Strachey: “É impossível exagerar a maravilha e a originalidade de Moore. (…) É incrível pensar que apenas nós conhecemos os rudimentos de uma verdadeira teoria da ética”. E, em um artigo apresentado em 1938 ao Bloomsbury Group, com o título My Early Beliefs, Keynes recorda que o efeito do Principia “sobre nós, e as conversas que o precederam e o seguiram, dominaram, e talvez ainda dominem, todo o resto”. Ele acrescentou que o livro “foi excitante, estimulante, o começo de um novo renascimento, a abertura de um novo céu na terra” (Skidelsky 1983, pp. 133–34; Keynes [1951] 1972, pp. 436–49). Palavras muito fortes sobre um livro técnico de filosofia!

Qual era a fonte disso? Primeiro, o carisma pessoal que Moore exercia sobre os estudantes em Cambridge. Mas, além desse magnetismo pessoal, Keynes e seus amigos não se sentiam atraídos tanto pela doutrina de Moore em si, mas pela interpretação particular e pelo viés que eles próprios davam a essa doutrina. Apesar de todo o entusiasmo, Keynes e seus amigos aceitavam apenas o que consideravam ser a ética pessoal de Moore (isto é, aquilo que chamavam de “religião” de Moore), ao mesmo tempo em que rejeitavam totalmente sua ética social (isto é, aquilo que chamavam de sua “moral”).

Keynes e seus colegas Apóstolos abraçaram entusiasticamente a ideia de uma “religião” composta por momentos de “contemplação apaixonada e comunhão” com objetos de amor ou amizade. Contudo, repudiavam toda moral social ou regras gerais de conduta, rejeitando totalmente o penúltimo capítulo de Moore sobre “Ethics in Relation to Conduct”. Como Keynes afirma em seu artigo de 1938:

“Em nossa opinião, uma das maiores vantagens de sua [de Moore] religião era que ela tornava a moral desnecessária. (…) Rejeitávamos totalmente qualquer responsabilidade pessoal de obedecer a regras gerais. Reivindicávamos o direito de julgar cada caso individual por seus méritos, e a sabedoria para fazê-lo com sucesso. Esta era uma parte muito importante de nossa fé, mantida de forma violenta e agressiva, e para o mundo exterior era nossa característica mais óbvia e perigosa. Rejeitávamos inteiramente a moral costumeira, as convenções e a sabedoria tradicional. Éramos, ou seja, no sentido estrito do termo, imoralistas” (Keynes [1951] 1972, pp. 142–43).

Observadores contemporâneos perspicazes resumiram com precisão a atitude de Keynes e seus colegas Apóstolos. Bertrand Russell escreveu que Keynes e Strachey distorciam os ensinamentos de Moore; eles “almejavam uma vida de repouso entre tons alegres e bons sentimentos, e concebiam o bem como consistindo nas paixões mútuas de admiração de uma claque da elite” (Welch 1986, p. 43). Ou, como observou de forma inteligente Beatrice Webb, o Moorismo entre os Apóstolos era “nada mais do que uma justificação metafísica para fazer o que se quer, e o que os outros desaprovam” (ibid.).

Surge então a questão: quão seriamente esse imoralismo, essa rejeição de regras gerais que restringiriam o ego, marcou a vida adulta de Keynes? Sir Roy Harrod, discípulo e biógrafo hagiográfico, insiste que o imoralismo, assim como qualquer outro aspecto desagradável da personalidade de Keynes, foi apenas uma fase adolescente, rapidamente superada por seu herói.

Mas muitos outros aspectos de sua carreira e pensamento confirmam o imoralismo de toda a vida de Keynes e seu desprezo pela burguesia. Além disso, em seu artigo de 1938, apresentado aos 55 anos, Keynes confirmou sua contínua adesão às suas opiniões juvenis, afirmando que o imoralismo é “ainda minha religião sob a superfície. (…) Permaneço e sempre permanecerei um imoralista” (Harrod 1951, pp. 76–81; Skidelsky 1983, pp. 145–46; Welch 1986, p. 43).

Em uma contribuição notável, Skidelsky demonstra que o primeiro livro acadêmico importante de Keynes, A Treatise on Probability (1921, não estava desconectado de suas demais preocupações. Ele surgiu de sua tentativa de consolidar sua rejeição às regras gerais de moralidade propostas por Moore. O início do Tratado começou com um artigo, que Keynes leu aos Apóstolos em janeiro de 1904, sobre o capítulo rejeitado por Moore, “Ethics in Relation to Conduct”. Refutar Moore sobre probabilidade ocupou os pensamentos acadêmicos de Keynes desde o início de 1904 até 1914, quando o manuscrito do Tratado foi concluído.

Ele concluiu que Moore era capaz de impor regras gerais às ações concretas por meio de uma teoria empírica ou “frequentista” da probabilidade, ou seja, através da observação das frequências empíricas, poderíamos ter certo conhecimento das probabilidades de classes de eventos. Para destruir qualquer possibilidade de aplicar regras gerais a casos particulares, o Tratado de Keynes defendia a teoria clássica a priori da probabilidade, na qual as frações de probabilidade são deduzidas puramente pela lógica e não têm relação com a realidade empírica. Skidelsky ilustra o argumento feito por Keynes de forma clara:

“O argumento de Keynes, então, pode ser interpretado como uma tentativa de libertar o indivíduo de perseguir o bem (…) por meio de ações egoístas, uma vez que ele não é obrigado a ter certo conhecimento das prováveis consequências de suas ações para agir racionalmente. É, em outras palavras, parte de sua campanha contínua contra a moral cristã. Isso teria sido valorizado pelo seu público, embora a conexão não seja óbvia para o leitor moderno. De forma mais geral, Keynes associa racionalidade à conveniência. As circunstâncias de uma ação tornam-se a consideração mais importante nos julgamentos sobre sua provável retidão. (…) Ao limitar a possibilidade de conhecimento certo, Keynes aumentou o espaço para o julgamento intuitivo” (Skidelsky 1983, 153–54).

Não podemos entrar nas intricadas questões da teoria da probabilidade aqui. Basta dizer que a teoria a priori de Keynes foi demolida por Richard von Mises (1951) em seu trabalho da década de 1920, Probability, Statistics, and Truth. Mises demonstrou que a fração de probabilidade pode ser usada de forma significativa apenas quando incorpora uma lei empiricamente derivada de entidades que são homogêneas, aleatórias e infinitamente repetíveis.

Isso significa, é claro, que a teoria da probabilidade só pode ser aplicada a eventos que, na vida humana, se restringem àqueles como a loteria ou a roleta de cassino. (Para uma comparação entre Keynes e Richard von Mises, ver D.A. Gillies [1973, pp. 1–34].) A propósito, a teoria da probabilidade de Richard von Mises foi adotada por seu irmão Ludwig, embora eles concordassem em muito pouco em outros assuntos (L. von Mises [1949] 1966, pp. 106-15).

 

Notas:

[i] Questionando-se por que o eminente historiador constitucional Frederic W. Maitland não teve influência sobre os Apóstolos nessa época, apesar de ser membro, Derek Crabtree responde que Maitland teve a infelicidade de ocupar sua cadeira no Downing College, uma das faculdades menos influentes de Cambridge (ver Crabtree 1980, pp. 18–19).

[ii] Quando o filósofo John E. McTaggart, professor da Trinity e apóstolo desde a década de 1880, se casou tardiamente, ele garantiu aos apóstolos que sua esposa era simplesmente “fenomenológica” (Skidelsky 1983, p. 118).

[iii] Bertrand Russell, que era dez anos mais velho que Keynes, não gostava do grupo Keynes/Strachey, que dominou os membros da graduação do grupo durante a primeira década do século XX, principalmente por causa da convicção de ambos de que a homossexualidade era moralmente superior à heterossexualidade.

 

Este livro foi originalmente publicado no Mises Institute.

 

Recomendações de leitura:

A Imoralidade da Economia Keynesiana

Assim como o socialismo, o keynesianismo também irá cometer suicídio – mas é preciso paciência

_____________________________________________

Nota: as visões expressas no artigo não são necessariamente aquelas do Instituto Mises Brasil.

Sobre o autor

Murray N. Rothbard

Murray N. Rothbard (1926-1995) foi um decano da Escola Austríaca e o fundador do moderno libertarianismo. TambÉm foi vice-presidente acadêmico do Ludwig von Mises Institute e do Center for Libertarian Studies.

Comentários (0)

Deixe seu comentário

Há campos obrigatórios a serem preenchidos!