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Direito

Do candidato à reeleição aos presos de 8 de Janeiro

Como a tirania judicial corrói a liberdade

10/09/2025

Do candidato à reeleição aos presos de 8 de Janeiro

Como a tirania judicial corrói a liberdade

Introdução

Tenho oscilado pela vida com uma sensação estranha oprimindo o peito. Embora mantenha minhas atividades profissionais e pessoais mais intensas do que nunca, percebo qual é a origem do meu desconforto: é a vergonha. Mas vergonha de que, se não cometi nenhum ilícito? Descubro que é a vergonha da minha própria cidadania.

Vergonha de caminhar livre pelas ruas, de poder trabalhar todos os dias, de encontrar minha família, de frequentar os restaurantes que gosto, enquanto homens e mulheres comuns permanecem encarcerados há mais de dois anos, privados de defesa, sem que sequer se saiba de qual crime são acusados. Vergonha de um país onde o silêncio da população ecoa mais alto que o clamor da justiça, e onde o tempo, indiferente, apenas consolida a tirania.

Acordo e adormeço com a mesma angústia: ver um candidato à reeleição sendo julgado por um delito que não se caracteriza em lei, e ver cidadãos tratados como criminosos por portarem bandeiras e camisetas, por expressarem desejos e frustrações. O que se pune não são atos, mas intenções; não são delitos, mas opiniões. E esse fardo pesa na consciência de todos que ainda se reconhecem como homens livres.

 

O desejo não é crime

O que se viu em 8 de janeiro não foi uma guerra civil, tampouco um levante armado. Houve depredações localizadas, e estas, quando provadas, devem ser punidas de acordo com o devido processo legal. Mas milhares de brasileiros estavam apenas sentados, vestidos com a camisa da seleção, portando bandeiras, frustrados com o processo eleitoral e com a falta de transparência das instituições. Muitos alimentavam um desejo, uma esperança ou até uma fantasia de reversão política. Ora, desejar não é crime. O que passa na mente de uma pessoa não pode ser equiparado a um ato violento.

Esse diagnóstico de criminalização de opiniões encontra eco até em análises internacionais, como o relatório da Human Rights Watch (2024) sobre liberdade de expressão no Brasil.

 

A farsa da anistia

Hoje se discute uma anistia ampla, como se fosse uma saída nobre para pacificar o país. Mas a anistia só se aplica a crimes consumados. Se não houve crime, não há do que se anistiar. O que se faz, ao falar em anistia, é admitir implicitamente que houve culpa, quando na verdade o que houve foi a punição de manifestações pacíficas e de desejos políticos. Essa distorção jurídica não pacifica, apenas reforça a arbitrariedade.

O que é processo penal e o que é anistia?

No direito penal, um crime precisa cumprir três requisitos:

  1. Tipicidade — o ato precisa estar descrito em lei como crime;
  2. Antijuridicidade — precisa ser contrário ao ordenamento jurídico (não pode haver uma causa que o justifique, como legítima defesa);
  3. Culpabilidade — é necessário que haja intenção ou negligência dolosa por parte do acusado.

Sem esses três elementos, não há crime. E sem crime, não há processo penal válido.

A anistia, por sua vez, é um ato político pelo qual o Estado decide perdoar crimes efetivamente cometidos, apagando suas consequências penais. Serve, em tese, para reconciliar sociedades em momentos de conflito.

Aplicar anistia a pessoas que não cometeram crime, que apenas expressaram desejos ou frustrações, é inverter a lógica: passa a mensagem de que elas são culpadas de algo, mas que generosamente serão “perdoadas”. Essa confusão interessa apenas à tirania, porque transforma inocentes em criminosos presumidos. Até organizações internacionais como a Amnesty International reforçam que o instituto da anistia só pode se aplicar a fatos tipificados como crimes.

 

Tirania institucionalizada

Vivemos sob a sombra de uma tirania disfarçada. O Judiciário acumula funções que não lhe cabem: investiga, acusa e julga concentrando em si um poder que ultrapassa qualquer limite constitucional. O Congresso assiste passivamente, dissimulado, como se o silêncio não fosse uma forma de cumplicidade. O Executivo é vazio, e governa com força emprestada pelos tribunais, preocupado em manter aparências. O resultado é um regime onde a separação dos poderes desaparece e a liberdade individual é reduzida a concessão provisória, realidade denunciada até pelo relatório da Freedom House (2024).

 

O processo eleitoral questionado

Muito antes de 8 de janeiro, já havia sinais de que o processo eleitoral estava longe de ser isonômico. No Nordeste, comprovou-se que o tempo eleitoral gratuito concedido a um candidato foi superior ao destinado ao outro, com horários mais favoráveis, uma desigualdade documentada e não teoria conspiratória.

Além disso, relatórios técnicos independentes já apontaram vulnerabilidades no sistema eletrônico. Os testes públicos de segurança do TSE revelaram falhas que permitiam manipular softwares de urna e alterar registros de votos. Ainda que corrigidas posteriormente, a própria existência dessas falhas mostra a fragilidade de um sistema que não permite comprovante físico de voto, algo que já foi defendido até por ministros do Supremo e depois abandonado pelos mesmos sem explicação.

 

O crime de opinião: ontem e hoje

No século XVI, o padre Juan de Mariana, expoente da Escola de Salamanca, foi perseguido e preso várias vezes. Sua “culpa” não era uma ação violenta, mas a ousadia de escrever e ensinar que um governante que violasse a lei natural e se tornasse tirano poderia e deveria ser enfrentado e afastado em nome da liberdade do povo. Em sua obra De rege et regis institutione (1599), Mariana desenvolveu esse raciocínio como forma de preservar a sociedade contra a arbitrariedade.

O que ocorre no Brasil hoje não é diferente. Homens e mulheres de bem, que apenas manifestaram desejos políticos, estão sendo tratados como criminosos perigosos. O próprio candidato à reeleição é julgado por um “plano” jamais concretizado, por intenções nunca materializadas. Assim como ensinava Juan de Mariana, nenhum governante que fere a lei natural pode ser considerado legítimo; e no Brasil de hoje, não se pune o ato, mas o pensamento.

Essa criminalização de opiniões encontra paralelos atuais em relatórios como os da Reporters Without Borders, que monitoram violações à liberdade de expressão no Brasil.

 

As prisões irregulares em 8 de janeiro

Muitos dos manifestantes foram conduzidos em ônibus do Exército, sob o pretexto de que seriam levados para locais seguros. Não lhes foi lida ordem de prisão, tampouco assegurados seus direitos constitucionais, como o direito ao silêncio e à assistência de advogado, previstos no art. 5º, LXII e LXIII da Constituição e no art. 306 do Código de Processo Penal.

Esse procedimento não foi apenas irregular do ponto de vista jurídico: foi eticamente inaceitável e profundamente desonroso. Ao agir assim, setores das Forças Armadas violaram não apenas a legalidade, mas também a honra militar, fundada na franqueza, na disciplina e no respeito à verdade. Ao ludibriar cidadãos indefesos, utilizaram-se de uma prática incompatível com a ética militar e com o dever de proteção. Essa quebra de honra e de confiança não apenas macula a instituição, mas fragiliza todo o processo judicial, já que nasce de um ato viciado e indigno. Além disso, a conduta pode configurar abuso de autoridade, nos termos da Lei 13.869/2019.

 

As filmagens ocultas e as lacunas da verdade

Outro elemento perturbador é a forma seletiva com que foram divulgadas as filmagens do dia 8 de janeiro. Apenas pequenos fragmentos foram liberados ao público, enquanto vastas horas de gravação permanecem ocultas, estima-se que apenas poucos minutos tenham sido publicados pela Agência Pública. Em contraste, versões oficiais lembram que as gravações internas estariam disponíveis desde abril de 2023, após decisão judicial, conforme nota da Reuters. Isso não elimina o problema central: falta transparência integral e linha do tempo auditável.

Além disso, a linha do tempo oficial apresenta contradições. O intervalo entre o início das movimentações, a chamada de reforços e a efetiva presença de policiamento ostensivo não corresponde à gravidade dos acontecimentos. Houve um lapso que compromete a coerência da narrativa institucional, deixando a impressão de omissão ou de conivência.

A ocultação ou filtragem das provas visuais compromete não apenas a transparência do processo, mas também o direito fundamental de defesa. Sem acesso integral às filmagens e nem mesmo aos autos do processo, não se pode estabelecer uma narrativa fiel dos acontecimentos, nem confrontar as versões oficiais. A verdade, nesse caso, parece submetida à conveniência política.

 

A liberdade diante da tirania

O que estamos vivendo não é a aplicação do Estado de Direito, mas a consolidação de um estado tirânico, em que a lei é interpretada conforme a conveniência política do momento. O problema não se resolve com anistia, mas com a restauração da liberdade: libertar os que estão presos sem crime, restituir a verdade sobre os acontecimentos e colocar o Judiciário novamente em seu devido lugar.

 

Conclusão

Escrever ou falar sobre esse cenário, por si só, já se torna um ato de risco. O medo do afastamento social e do cárcere paira como sombra sobre quem ousa denunciar a tirania. Heidegger descreveu o medo como uma experiência existencial em que o ser se sente lançado diante da ameaça do nada; aqui, ele assume forma concreta: o medo de que a palavra se torne delito.

O Brasil não precisa de anistia, mas de justiça. Não precisa de condescendência com um “crime” que não existiu, mas de coragem para afirmar que o desejo e a opinião não podem ser punidos. Transformar intenções em delitos é próprio de regimes autoritários.

Como lembrou Juan de Mariana há mais de quatro séculos, nenhum poder é absoluto quando fere a lei natural e a liberdade do povo. O que está em jogo hoje não é apenas o destino de um candidato à reeleição ou de alguns manifestantes, mas a própria possibilidade de vivermos como homens livres.

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Nota: as visões expressas no artigo não são necessariamente aquelas do Instituto Mises Brasil.

Sobre o autor

Marcos H. Giansante

É médico cirurgião do aparelho digestivo e escritor, com atuação em São Paulo. Pós-graduando em Economia Austríaca, Filosofia, Direito e Ciência Política pelo Mises Academy, programa de formação do Instituto Mises Brasil, contribui para debates acadêmicos e públicos sobre liberdade, ciência e poder estatal a partir de uma perspectiva liberal clássica. Também colabora com o Mises Wire e com a revista MISES Journal.

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