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Dinheiro público, gestão privada

As contradições do “Sistema S” à luz da tradição liberal e escola austríaca

18/08/2025

Dinheiro público, gestão privada

As contradições do “Sistema S” à luz da tradição liberal e escola austríaca

Poucos organismos sintetizam, com tamanha discrição e resistência crítica, a degradação silenciosa dos princípios liberais no Brasil quanto o chamado Sistema S. À primeira vista, parecem instituições privadas, voltadas à formação profissional, à cultura e ao apoio empreendedor. Contudo, um exame mais detido revela sua verdadeira natureza: organizações paraestatais, sustentadas por compulsão fiscal e abrigadas sob a sombra de uma arquitetura jurídica que as exime dos controles típicos do Estado, sem sujeitá-las à lógica do mercado.

Trata-se de uma engrenagem de funcionamento híbrido, na qual os tributos assumem nomes eufemísticos – contribuições – e a gestão, embora formalmente privada, opera sob o conforto de receitas garantidas, inquestionáveis, e de uma legitimidade presumida. Aqui se manifesta, com notável sutileza, aquilo que poderíamos chamar de corrupção estrutural de princípios liberais fundamentais: a subversão do consentimento individual, da concorrência livre e da responsabilização institucional.

 

O tributo que não se declara

O financiamento do Sistema S origina-se de contribuições obrigatórias incidentes sobre a folha de pagamento das empresas brasileiras, recolhidas com o rigor da Receita Federal, porém destinadas a entidades cujo caráter público é negado quando lhes convém, e cujo caráter privado jamais se submete às regras do mercado.

O empresário que jamais solicitou auxílio do SEBRAE, tampouco matriculou um funcionário no SENAC ou no SENAI, ainda assim contribui religiosamente, mês após mês, para sustentar estruturas que não lhe pedem autorização, tampouco prestam contas diretamente ao cidadão. A tributação, aqui, vem sem a representação; o gasto, sem a escolha; a estrutura, sem a competição.

Segundo dados oficiais, o Sistema S movimenta anualmente mais de R$ 20 bilhões, dos quais apenas uma fração retorna ao contribuinte na forma de serviços efetivamente consumidos. O restante se dispersa em eventos, convênios, publicidade institucional e consultorias cuja efetividade, muitas vezes, reside mais no papel timbrado do que na realidade concreta do empreendedor.

 

A pedagogia do improviso: promessas formais, resultados difusos

A retórica é bem conhecida: capacitar, apoiar, impulsionar. Mas a empiria insiste em desmenti-la. Segundo o próprio SEBRAE:

- Apenas 57,7% dos microempreendedores individuais (MEIs) sobrevivem mais de cinco anos;

- A mortalidade das microempresas alcança 21,6% no mesmo período;

- Grande parte das soluções oferecidas consiste em cartilhas padronizadas, diagnósticos genéricos e cursos de replicação didática, com escassa adaptação às realidades locais ou aos desafios reais do pequeno negócio.

Essa abordagem top-down, formatada segundo diretrizes centrais e moldes pedagógicos uniformes, remete, com inquietante familiaridade, à política brasileira das “campeãs nacionais”. Entre 2007 e 2014, durante os governos Lula e Dilma, o BNDES destinou recursos vultosos a grandes conglomerados, JBS, Odebrecht, Oi, entre outros, sob o argumento de impulsionar setores “estrategicamente relevantes”.

Embora o Sistema S não pertença formalmente a esse capítulo, sua lógica funcional repete o mesmo erro matricial: direciona recursos públicos a determinados perfis empresariais, sob critérios técnico-burocráticos, sem que o consumidor real possa validar, escolher ou recusar o que está financiando à força.

É um dirigismo difuso, elegante em aparência, mas igualmente imune à crítica concorrencial. Substitui-se o livre jogo das preferências por metas institucionais e prestações de contas internas. O mercado é simulado, mas jamais convocado.

 

Da Salamanca descentralizada à centralização disfarçada

Para compreender a extensão dessa ruptura com a tradição liberal, é necessário recuar alguns séculos, até a Espanha do final do século XV. Com a queda de Granada em 1492, o domínio muçulmano — Al-Andalus — foi encerrado, e logo depois, o Édito de Alhambra ordenou a expulsão dos judeus que se recusassem à conversão. Estima-se que entre 40.000 e 100.000 judeus foram expulsos, enquanto os muçulmanos foram forçados a converter-se entre 1499 e 1502, sendo muitos posteriormente também expulsos entre 1609 e 1610.

Essa violenta transformação cultural e intelectual desarticulou comunidades que dominavam o comércio e a prática econômica, deixando um vácuo de conhecimento e orientação. Coube então aos padres escolásticos, sobretudo na Universidade de Salamanca, assumir o papel de conselheiros morais e econômicos da nova ordem cristã. Não como planejadores, mas como orientadores éticos, a quem os fiéis recorriam com dúvidas reais: é justo cobrar juros? Quanto devo lucrar? Posso reajustar meus preços?

Assim nasceu a Escola de Salamanca, que lançou as bases do valor subjetivo, da justiça nas trocas e da defesa da propriedade privada, três séculos antes de Mises os formalizar como ciência da ação.

Curiosamente, o que muitos chamariam de primitivismo medieval se revela, nesse aspecto, mais próximo do ideal liberal do que os modernos planejadores centralizados. A orientação era ética, voluntária e contextual. Já o Sistema S atual é centralizado, normativo e compulsório. Onde antes havia liberdade de perguntar, hoje há obrigações de seguir. Onde havia prudência pastoral, hoje há pedagogia estatizada.

 

O fio rompido da tradição liberal

A tradição liberal, da qual tanto se desviou o Brasil, reconhece na liberdade individual a pedra angular da prosperidade. John Locke ensinava que a propriedade é uma extensão do corpo e da vontade humana; Adam Smith via na mão invisível do mercado a síntese natural da ordem; Tocqueville advertia contra o poder benevolente que infantiliza.

O Sistema S transgride todos esses pilares: exige sem consultar, entrega sem concorrer e sobrevive sem prestar contas ao mercado. Ele torna o empresário um financiador involuntário de estruturas que não lhe devem satisfação, e o empreendedor, um aprendiz passivo de cartilhas predefinidas.

Não há escolha nem soberania do consumidor, apenas a ilusão de uma ajuda que ninguém foi chamado a demandar.

 

A crítica praxeológica: onde não há escolha, não há ação

Para Ludwig von Mises, a economia é fruto da ação humana voluntária, orientada por fins subjetivamente escolhidos. Sem liberdade de escolha, não há ação, há apenas obediência. E sem preços livres, não há cálculo econômico, há apenas alocação burocrática.

O Sistema S não opera com preços reais, mas com repasses orçamentários. Não responde à concorrência, mas a conselhos e comitês. Seus programas são desenhados sem que haja risco, competição ou feedback real. Onde não há liberdade para errar, tampouco haverá mérito no acerto.

Não se trata, pois, apenas de um desvio técnico, mas de uma inviabilidade epistemológica: o Sistema S não é capaz de gerar o conhecimento prático necessário à evolução econômica espontânea, justamente porque opera fora do campo da ação humana voluntária.

 

A restauração do princípio do consentimento

A crítica ao Sistema S não é fruto de ceticismo radical nem de desdém ideológico. É um apelo à restauração do princípio do consentimento, da responsabilidade individual e da liberdade de escolha. A manutenção compulsória de entidades blindadas à concorrência e sustentadas à força constitui uma corrupção estrutural da ética liberal, revestida de boas intenções e campanhas institucionais.

Não se reforma uma engrenagem assim com manuais de gestão. Reforma-se com coragem moral: a de permitir que cada cidadão escolha onde investir seus próprios recursos; a de submeter essas instituições à prova do mercado real; e a de reconhecer que a prosperidade não se impõe, mas se conquista, a partir de erros e aprendizados.

Como ensinou Mises: a liberdade não é apenas uma condição para o progresso econômico, mas a sua essência. E onde não há liberdade, há apenas simulacro, por mais bem financiado que seja.

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Nota: as visões expressas no artigo não são necessariamente aquelas do Instituto Mises Brasil.

Sobre o autor

Marcos H. Giansante

É médico cirurgião do aparelho digestivo e escritor, com atuação em São Paulo. Pós-graduando em Economia Austríaca, Filosofia, Direito e Ciência Política pelo Mises Academy, programa de formação do Instituto Mises Brasil, contribui para debates acadêmicos e públicos sobre liberdade, ciência e poder estatal a partir de uma perspectiva liberal clássica. Também colabora com o Mises Wire e com a revista MISES Journal.

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