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Filosofia

O indivíduo que age e a sociedade

Uma análise da praxeologia de Mises

30/07/2025

O indivíduo que age e a sociedade

Uma análise da praxeologia de Mises

Nota do editor:

O artigo a seguir aprofunda a praxeologia de Ludwig von Mises conforme exposta em seu livro Nationalökonomie, de 1940. O livro, escrito em alemão, é precursor da sua magnum opus Ação Humana, originalmente publicada em 1949 em inglês.

Neste artigo, o professor Antony Mueller confronta a ideia coletivista de que a sociedade tem vida em si própria. Ao contrário, ele explica a partir da praxeologia misesiana, a sociedade só existe nas ações dos indivíduos que a compõem.

Esse insight é particularmente valioso em análises de políticas que ignoram o indivíduo ou o reduzem a um mero acessório da assim chamada “sociedade”. É precisamente nessa subjugação do indivíduo ao coletivo que consiste a mentalidade socialista.

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Para Ludwig von Mises, a essência da sociedade está na cooperação humana; ela é uma “união da ação”. Essa cooperação entre pessoas em uma sociedade é resultado do comportamento consciente.

“A ação, cujo efeito constituiu e constitui diariamente a sociedade, não visa nada além da ação conjunta e da cooperação com outros para alcançar determinados fins individuais” (p. 115).

Em comparação com o isolamento, a participação na sociedade traz vantagens ao indivíduo, com base na divisão do trabalho. Nesse sentido, sociedade significa a colaboração de muitos indivíduos. O ser humano prefere a sociedade ao isolamento porque sua produtividade aumenta ao atuar em conjunto com outros. Não é difícil imaginar as dificuldades de uma existência solitária — ou até que a sobrevivência talvez nem fosse possível assim.

Desde o nascimento, o ser humano está inserido na sociedade. A vida humana é sempre vida em sociedade. Do ponto de vista praxeológico, a sociedade não é um ente autônomo com capacidade própria de agir. Ela existe por meio da ação de indivíduos; não está acima deles, mas resulta do fato de que as pessoas se reúnem para alcançar com mais facilidade e eficiência seus objetivos individuais.

Somente indivíduos podem agir. O que aparece como um coletivo é, na verdade, composto por ações individuais. O coletivo em si não age, nem pode agir, pois é apenas uma construção conceitual.

Perguntar se o indivíduo deveria servir à sociedade é tão sem sentido quanto perguntar se o objetivo da sociedade seria servir ao indivíduo. Somente indivíduos agentes podem ter fins. Atribuir objetivos à sociedade é misticismo social, não pensamento racional. A praxeologia desmascara o engano de quando se exige do indivíduo que “sirva à sociedade” e alerta para o perigo desse antropomorfismo.

Como aponta Andreas Tiedtke em seu Kompass zum lebendigen Leben (2021), o antropomorfismo (atribuir características humanas a entidades abstratas) e a hipostasia (tratar conceitualmente um termo abstrato como se fosse um ente real) levam ao erro de atribuir realidade e eficácia a construções mentais. O exemplo mais comum é tratar o estado como um “ser superior”, quando na verdade o estado consiste de indivíduos que agem segundo planos coletivos. O estado não é um ser de carne e osso — é uma abstração.

“Só porque algo tem um nome, não significa que haja, na realidade, um objeto ou sujeito que o represente” (Tiedtke, p. 42).

Por meio de antropomorfismos e hipostatizações, constroem-se falsos antagonismos e invocam-se conflitos que não existem na realidade. Para a praxeologia, há harmonia entre sociedade e indivíduo, pois ambos se fundamentam na cooperação por meio da divisão do trabalho. Os conflitos surgem apenas quando se atribui à sociedade uma entidade autônoma. Assim, o indivíduo é colocado em oposição à sociedade, tanto como agressor quanto como vítima.

Universalistas e coletivistas representam a sociedade como algo separado do indivíduo. Com isso, criam um suposto conflito entre os interesses sociais e os do indivíduo. Se a sociedade for imaginada como um ente independente com vida e fins próprios, os coletivistas passam a exigir que o indivíduo se submeta a ela, reconhecendo sua primazia e subordinando seus próprios fins à “ordem social”.

Essa linguagem metafórica — como se a sociedade tivesse existência própria, vida e vontade — representa um risco imenso. Quem se opõe a essa “ordem” imaginária é rotulado como maligno. A exigência coletivista de submissão do indivíduo assume dimensões religiosas e raízes ancestrais.

“O coletivismo retoma visões de mundo primitivas, nas quais se crê que o ser humano deve obedecer a leis impostas por forças superiores, cuja execução é delegada a autoridades sagradas” (Mises, p. 116 e seg.).

Quando se nega que a sociedade seja obra humana e se atribui a ela uma origem sobre-humana, o indivíduo passa a ser tratado como uma peça numa engrenagem que deve funcionar segundo o “bem comum” fictício. Ele é impedido de reconhecer seus próprios interesses e de seguir seu próprio caminho. Ao hipostasiar a sociedade, o coletivismo infantiliza o indivíduo e o transforma em súdito. A consequência destrutiva disso é que as ideias de uma “sociedade ideal” divergem. Existem coletivistas de esquerda, direita, globalistas, nacionalistas etc. — e todos alegam possuir a única verdade. Fanáticos, eles não toleram divergências e querem impor sua visão como única.

“O universalismo e o coletivismo conduzem inevitavelmente à luta, que se estende até a destruição ou submissão do adversário” (p. 118).

Por contraste, na visão praxeológica, a relação entre indivíduo e sociedade é determinada pelo fato de que o ser humano reconhece racionalmente as vantagens da divisão do trabalho — vantagens que seriam inatingíveis no isolamento. A sociedade surge do fato de que a busca racional pelos interesses individuais leva, naturalmente, à cooperação. Os frutos da divisão do trabalho não são apenas futuros, mas presentes. O indivíduo escolhe a sociedade porque, em seu cálculo, os benefícios superam os custos. A sociedade é, portanto, um produto da razão.

Ludwig von Mises discorda da ideia anarquista de que uma sociedade sem estado seria viável. Segundo ele, não se pode esperar que todos ajam voluntária e socialmente sem exceção — sempre haverá quem prefira vantagens imediatas por meio de assassinato ou fraude. Enquanto nem todos tiverem esse discernimento racional, será necessário algum aparato coercitivo.

“A convivência e cooperação sociais só são concebíveis dentro de um estado, isto é, de uma organização com capacidade de reprimir ações antissociais de indivíduos ou grupos” (p. 120).

Isso leva Mises à defesa da democracia: o poder do governo deve refletir a opinião pública, e eleições livres servem como instrumento para evitar a guerra civil. Segundo o liberalismo, o estado deve ser organizado de modo que a vontade dos governantes e dos governados se alinhe pacificamente (p. 121).

É um erro, porém, contrapor o suposto “princípio social” do coletivismo ao suposto “princípio individual” do liberalismo. Do ponto de vista praxeológico, não há contradição entre indivíduo e sociedade. O aparente conflito só surge quando se hipostatiza a sociedade como uma entidade independente com fins próprios.

“Se se assume a existência de um ente que, por definição, é superior, mais nobre e mais perfeito do que os indivíduos — fazendo-os parecer inferiores ou meras sombras —, então não se pode evitar as consequências do coletivismo: os fins do ser superior (a sociedade) têm prioridade, o indivíduo só existe por causa do todo, a sociedade é tudo, o indivíduo é nada, e todo meio se justifica para subjugar quem ousar resistir” (p. 122).

O erro dos coletivistas está em não reconhecer que o traço essencial da sociedade é a divisão do trabalho. A sociedade nasce da disposição voluntária dos indivíduos em cooperar — porque isso lhes traz mais vantagens do que perdas. A divisão do trabalho e a união dos esforços produzem mais do que a ação solitária. Isso se deve a três fatores: primeiro, à desigualdade entre os indivíduos; segundo, à distribuição desigual dos recursos naturais, e; terceiro, ao fato de que existem trabalhos que excedem a força do indivíduo e só podem ser realizados pela combinação das forças de vários (pág. 125).

Do ponto de vista da praxeologia, a política atual apresenta falhas graves. Em vez de facilitar a divisão do trabalho reduzindo os custos de transação, ela impõe impostos e regulações que atrapalham a cooperação econômica. O pensamento coletivista domina a política. O sistema representativo é substituído pelo estado partidário. Fala-se em “razão de estado” e em “nossa democracia” — caindo assim na armadilha do antropomorfismo, e agravando os conflitos por meio da hipostasia de estado e sociedade.

A origem da sociedade na divisão do trabalho revela sua essência: cooperação voluntária. A produção em divisão de tarefas rende mais do que o trabalho isolado. Não é necessário um “instinto social” nem um “contrato social” para que as pessoas se unam — basta a percepção prática de que é mais eficiente trabalhar em conjunto. A força que cria e fortalece o vínculo social é a ação humana. A sociedade nasce do reconhecimento racional da produtividade do trabalho cooperativo — esse é o verdadeiro fundamento da vida em sociedade.

A praxeologia não é “inimiga da sociedade” — muito pelo contrário. Para ela, indivíduo e sociedade não são opostos, mas interagem de forma frutífera. O ponto crucial é que, ao contrário do indivíduo, a sociedade não possui existência própria. Ela não age, não tem vontade, nem poder próprio. “Sociedade” é uma construção conceitual. Na prática, o que existe é cooperação entre indivíduos. O ser humano vive em sociedade porque a divisão do trabalho traz benefícios que superam de longe os da vida isolada.

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Nota: as visões expressas no artigo não são necessariamente aquelas do Instituto Mises Brasil.

Sobre o autor

Antony Mueller

É doutor pela Universidade de Erlangen-Nuremberg, Alemanha e, desde 2008, professor de economia na Universidade Federal de Sergipe.

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