O Papa Leão XIV e a Encíclica Rerum Novarum
Ao ser elevado ao papado, o novo pontífice anunciou que havia adotado o nome de Leão XIV. Para aqueles familiarizados com Leão XIII, essa escolha foi um sinal claro de que os princípios de Leão XIII, tal como expressos em sua encíclica Rerum Novarum, desempenhariam um papel central no novo pontificado. Essa encíclica é considerada o alicerce da Doutrina Social da Igreja Católica.
Nossa tendência inicial pode ser tentar determinar se a orientação da Rerum Novarum era politicamente de esquerda ou de direita. Isso é um erro. A encíclica Rerum Novarum deve ser avaliada por seus próprios méritos, pelo contexto histórico em que foi escrita e pelas oportunidades que ainda oferece nos dias de hoje. Todas as encíclicas estão fora do escopo da infalibilidade papal. É razoável encará-las como uma combinação de boas ideias e erros evidentes. Já se passaram 134 anos desde a publicação da Rerum Novarum, em maio de 1891, o que oferece um tempo mais que suficiente para uma reflexão crítica.
Os papas que sucederam a Leão XIII procuraram expandir os ensinamentos de Rerum Novarum. O quadragésimo aniversário da encíclica foi comemorado com a publicação da encíclica Quadragesimo Anno, de Pio XI, em 1931, durante o governo de Mussolini. Como revelado na própria Quadragesimo Anno, já era evidente naquele momento uma inclinação à esquerda no tratamento da questão da propriedade privada:
“(...) quando o estado alinha a propriedade privada com as necessidades do bem comum, não está cometendo um ato hostil contra os proprietários privados, mas sim prestando-lhes um serviço amigável (...)”.
Na realidade concreta, porém, o estado age de forma coercitiva, e não por meio de cooperação e concorrência. É improvável que Pio IX acreditasse nessa afirmação.
O Papa Francisco publicou a encíclica Laudato Si’ em maio de 2016, como uma extensão tanto da Rerum Novarum quanto da Quadragesimo Anno. Para muitos católicos, a Laudato Si’ foi ainda mais radical, ao criticar o consumismo e a degradação ambiental, além de conclamar a uma ação coletiva para conter o aquecimento global.
Note que Leão XIV não adotou o nome de Francisco II. Isso indica que ele não parece seguir o mesmo caminho de Francisco I. Em vez disso, tudo indica que Leão XIV pretende retomar os princípios da Rerum Novarum. O resultado dessa escolha pode ser um enriquecimento da Doutrina Social da Igreja.
Mas os católicos devem simplesmente se apoiar na Rerum Novarum, ou essa encíclica precisa ser atualizada? Haveria alguma grande fragilidade nela? Sim: sua fixação com a noção de classe social. A palavra “classe” é mencionada 33 vezes em apenas 64 parágrafos. Leão XIII era um intelectual, mas dificilmente teria compreendido a importância de acontecimentos fundamentais que estavam em curso, como a descoberta do Novo Mundo e a Revolução Agrícola Britânica, ambos processos que prepararam o terreno para a Revolução Industrial. É pouco provável que estivesse familiarizado com Richard Cantillon e sua obra Ensaio sobre a Natureza do Comércio em Geral, onde se descreve, pela primeira vez, o papel fundamental do empreendedorismo. Sabemos, por exemplo, que não há nenhuma menção ao empreendedorismo na Rerum Novarum. Isso sugere que Leão XIII possuía um modelo de pensamento econômico muito diferente daquilo que hoje chamamos de Escola Austríaca de Economia. Compare-se essa fixação de Leão XIII em “classe econômica” com a lição claramente apresentada por Cantillon, no Capítulo 13 da Parte I de seu ensaio — A Circulação e Troca de Bens, bem como a Produção de Bens e Mercadorias, são Realizadas na Europa em Condições de Risco:
“Mesmo mendigos e ladrões são empreendedores nessa categoria [pois atuam sob incerteza]”.
Em outras palavras, o empreendedorismo é uma característica independente de classe social. Ele está aberto a todos. A noção de empreendedorismo contribui para uma melhor compreensão da teoria do Hockey Stick of Human Prosperity ("taco de hóquei da prosperidade humana", em tradução livre) do professor Don Boudreaux, que descreve como a humanidade, de forma repentina, passou da pobreza para uma condição de enriquecimento relativo. Leão XIII, por outro lado, mantinha-se obcecado com a estrutura de classes, justamente em um momento histórico em que a divisão em classes econômicas já se tornava irrelevante.
Há outros erros econômicos na Rerum Novarum, incluindo o apelo de Leão XIII por um “salário justo” para o trabalho. No entanto, a ideia de o governo substituir o livre mercado na definição dos valores da força de trabalho é um remédio mais nocivo que a própria doença. É pouco provável que Leão XIV siga por esse caminho.
A oportunidade
A verdadeira oportunidade reside na reavaliação da Rerum Novarum em si, e não na sua extensão por meio da Quadragesimo Anno ou da Laudato Si’. Há um vasto terreno comum possível entre os princípios de Rerum Novarum e os fundamentos do liberalismo clássico. Por exemplo, o parágrafo 15 da Rerum Novarum traz um alerta direto contra os coletivismos:
“(...) é evidente que o princípio central do socialismo, a comunidade de bens, deve ser absolutamente rejeitado, pois ele prejudica justamente aqueles que pretende beneficiar, contradiz diretamente os direitos naturais da humanidade e introduziria confusão e desordem na sociedade. O primeiro e mais fundamental princípio, portanto, para quem deseja aliviar a condição das massas, deve ser a inviolabilidade da propriedade privada. Estabelecido isso, passamos a indicar onde o verdadeiro remédio pode ser encontrado”.
Esse raciocínio continua no parágrafo 19 da Rerum Novarum:
“O grande erro (…) está em adotar a ideia de que uma classe é naturalmente hostil à outra, e que os ricos e os trabalhadores foram destinados, pela natureza, a viver em constante conflito. Essa visão é tão irracional e tão falsa que a verdade está exatamente no oposto. Assim como a harmonia do corpo humano resulta da disposição adequada de suas diferentes partes, da mesma forma, no estado, está ordenado pela natureza que essas duas classes convivam em harmonia e entendimento, a fim de manter o equilíbrio do corpo político. Uma precisa da outra: o capital não pode prescindir do trabalho, nem o trabalho pode existir sem o capital. O acordo mútuo gera a beleza da boa ordem, enquanto o conflito permanente leva inevitavelmente à confusão e à barbárie selvagem. Ora, na prevenção e na erradicação desse tipo de conflito, a eficácia das instituições cristãs é admirável e multiforme. Antes de tudo, não há mediador mais poderoso que a religião (da qual a Igreja é intérprete e guardiã) para aproximar os ricos e os trabalhadores, ao lembrar a cada um de seus deveres em relação ao outro, especialmente quanto às obrigações da justiça”.
O caminho está aberto para construir uma ponte entre a doutrina social católica e o liberalismo clássico. Isso não precisa criar dependência entre os dois campos. Em vez disso, a oportunidade está em demonstrar que o modelo de livre mercado de cooperação/competição social pode proporcionar mais prosperidade às massas do que o modelo de disputa no qual toda política se baseia.
Este artigo foi originalmente publicado no Mises Institute.
Recomendações de leitura:
A doutrina social da Igreja Católica e o capitalismo
O livre mercado e a doutrina social católica
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Nota: as visões expressas no artigo não são necessariamente aquelas do Instituto Mises Brasil.
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