Um liberal clássico no Peru
Nota do Editor:
Nesta semana, perdemos o grande escritor peruano Mario Vargas Llosa. A lista de prêmios e reconhecimentos de Vargas Llosa é merecidamente extensa. Ele foi laureado com o Prêmio Nobel de Literatura e com o Prêmio Príncipe de Astúrias e era um membro ilustre da Real Academia Espanhola. Em 2021, tornou-se um dos célebres "imortais" da Académie Française (um reconhecimento extraordinário para um escritor de língua espanhola).
Além de seu legado literário, Vargas Llosa também foi membro fundador da Fundación Internacional para la Libertad (FIL) e membro ativo da Sociedade Mont Pelerin, firmando sua voz na tradição liberal clássica internacional.
O romancista peruano foi um incansável defensor da liberdade e utilizou seu gênio narrativo para denunciar os regimes autoritários que assolaram a América Latina.
A seguir, publicamos um artigo de 2023, sobre seu livro O Chamado da Tribo.
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Karl Popper argumentava que o espírito tribal, eternamente presente nos assuntos humanos, nos oferece uma falsa ordem igualitária baseada no grupo identitário, com seu líder, seu planejamento e sua coerção. Em troca, abrimos mão da individualidade, da liberdade e da responsabilidade. Mario Vargas Llosa retoma essa ideia em O Chamado da Tribo, recentemente traduzido para o inglês. Nessa obra, ele aponta diretamente o comunismo e o nacionalismo como os ímãs modernos que atraem as pessoas para essa noção ancestral de “tribo” - contra a qual se levanta o indivíduo soberano.
Vargas Llosa, romancista hispano-peruano, ao voltar-se para a não ficção, oferece agora um tributo fundamentado à liberdade. Este livro merece uma nota de gratidão ao autor (já merecidamente consagrado com os maiores prêmios literários do mundo, incluindo o Nobel e o Cervantes). Com O Chamado da Tribo, Vargas Llosa nos lega sua contribuição no campo das ideias políticas. Tem-se a impressão de que se trata de um dever auto imposto, como se ele não quisesse encerrar sua bibliografia sem deixar um guia das ideias do liberalismo clássico que considera mais valiosas. Para isso, mergulha na obra de sete autores, aprofunda-se em seus pensamentos, organiza suas ideias e seleciona trechos emblemáticos. Com sua prosa magistral e extraordinária, consegue transmitir ideias verdadeiramente complexas sem perder nada de sua essência original.
Ele nos apresenta um retrato pessoal e intelectual cativante desses sete pensadores e presta muita atenção às circunstâncias de suas vidas e às pessoas ao seu redor. Adam Smith em suas discussões no clube, na vida universitária e na amizade com David Hume. Ortega em uma Europa com o totalitarismo em ascensão, durante a Guerra Civil Espanhola e depois no período pós-guerra. Hayek com Mises (embora os dois não fossem idênticos). Popper na Nova Zelândia, na London School of Economics, e depois se afastando do pôquer de Wittgenstein. Aron enfrentando toda a intelligentsia francesa, especialmente naqueles dias confusos de maio de 1968. Isaiah Berlin em Washington, DC, durante a Segunda Guerra Mundial e em Leningrado, durante sua noite transformadora e casta com a poetisa Anna Akhmatova. E Jean-François Revel, finalmente, vital, jovial, sábio e avassalador em sua acusação contra os liberticidas.
O interesse de Vargas Llosa pela política e sua visão liberal clássica não são novidade. Mauricio Rojas resumiu isso em Paixão pela liberdade. O liberalismo integral de Mario Vargas Llosa. Os leitores de Vargas Llosa também têm à disposição seus artigos, aparições públicas e vários romances, como Conversa na Catedral e A Festa do Bode. Para muitos de nós, Peixe na Água está na lista de livros favoritos. Esse relato de sua campanha presidencial no Peru, em 1990, é ao mesmo tempo um romance eletrizante e um verdadeiro manual de política liberal clássica.
Em O Chamado da Tribo, Vargas Llosa elogia a honestidade intelectual dos autores sobre os quais escreve (especialmente Jean-François Revel e Raymond Aron). Entretanto, o primeiro autor que devemos aplaudir pela honestidade intelectual é o próprio Vargas Llosa. Ele começa com uma explicação de sua própria jornada intelectual, que começa com Marx - cujas obras ele realmente lê, ao contrário de muitos neomarxistas. Ele se afasta do marxismo ao testemunhar com seus próprios olhos o que significa o socialismo real em Cuba após a revolução e em sua viagem à URSS. Ele fala repetidamente de sua decepção com Jean-Paul Sartre, de quem era um seguidor devoto, e, sem renegar o intelecto de Sartre, ele fornece evidências suficientes para garantir que nenhum leitor esqueça que o pai do existencialismo defendeu os campos de concentração soviéticos.
Vargas Llosa avançou lentamente de sua rejeição inicial a todos os tipos de ditadura rumo ao liberalismo clássico, como um alpinista que escala com cautela, agarrando-se a apoios firmes para ousar subir cada vez mais alto. Ele aponta Popper, Hayek e Berlin como “os três pensadores modernos a quem mais devo, politicamente falando”. Mas Vargas Llosa também destaca duas figuras que não eram intelectuais ou escritores como essenciais para sua chegada ao liberalismo clássico: Margaret Thatcher e Ronald Reagan. Como ele mesmo afirma: “Estou convencido de que ambos [Thatcher e Reagan] deram uma grande contribuição à cultura da liberdade. E, de todo modo, me ajudaram a me tornar um liberal.” Ele não esconde — nem deveria! — sua admiração por esses dois grandes políticos liberais clássicos do final do século XX, que foram decisivos ao demonstrar que liberdade e responsabilidade são superiores, moral e materialmente, ao socialismo.
Quando Vargas Llosa se identifica com o liberalismo clássico, ele o faz sem escolher ou excluir nenhuma de suas correntes. Em vez de tentar nos convencer de uma visão pessoal e restrita desse pensamento, ele nos apresenta uma grande tenda, um espaço amplo que acolhe diversos pensadores cuja característica comum é a crença de que o indivíduo está acima do coletivo, que responsabilidade caminha junto com liberdade, e que o ideal da liberdade é supremo.
Ele não se identifica com o anarcocapitalismo, mas acredita que deve haver um Estado pequeno, porém forte e eficiente, que garanta “liberdade, ordem pública, respeito à lei e igualdade de oportunidades”. Embora seja a favor de que o Estado garanta e até mesmo forneça um sistema educacional de alto nível para todos, ele acredita que a concorrência e a iniciativa privada são essenciais nessa área. Quando fala em igualdade de oportunidades, ele deixa claro que não a identifica com igualdade de renda, porque “isso só seria possível em uma sociedade dirigida por um governo autoritário que ‘igualaria’ todos os cidadãos economicamente por meio de um sistema opressivo”.
Embora rejeite a associação do liberalismo clássico com aquilo que chama de “fórmula econômica dos mercados livres”, Vargas Llosa acredita que a liberdade econômica é “um elemento fundamental” do pensamento liberal clássico. Por isso, critica repetidamente Ortega y Gasset por seu pensamento econômico frágil e sua desconfiança em relação ao capitalismo.
Na concepção de Vargas Llosa sobre o liberalismo clássico, destaca-se a ideia de humildade. Ela se traduz no esforço de limitar o poder em vez de explorá-lo, e na recusa em reivindicar verdades dogmáticas e imutáveis. Por conta dessa necessidade de humildade, Vargas Llosa acredita que a discussão e o debate são essenciais. Ele vê isso na possibilidade sempre aberta de refutação, inspirada em Popper, e na convivência de verdades contraditórias, como leu em Isaiah Berlin. É esse espírito crítico que “derruba os muros da sociedade fechada e expõe a humanidade a uma experiência inédita: a responsabilidade individual.” Por isso, Vargas Llosa sempre dá ênfase à ideia de pluralismo, que considera uma necessidade prática para a sobrevivência da humanidade. O pluralismo, no entanto, não deve ser confundido com relativismo, pois, seguindo Popper, “a verdade tem um dos pés fincado na realidade objetiva.”
Vargas Llosa também nos fala sobre os inimigos do liberalismo clássico. O mais importante é o construtivismo. É em seu capítulo sobre Hayek que ele denuncia com mais enfaticamente “o desejo fatal de organizar a vida da comunidade a partir de qualquer centro de poder”. De forma não menos incisiva, ele rejeita o outro inimigo do liberalismo clássico, que é muito mais traiçoeiro: o mercantilismo. Apontando para Hayek e Adam Smith, ele contrasta o capitalismo com os esquemas mercantilistas de certos empresários e políticos que agem para se proteger da concorrência por meio de regulamentações e políticas protecionistas.
O livro de Mario Vargas Llosa é repleto de alegria e otimismo. A liberdade não conduz ao caos; ao contrário, ela gera aquela ordem espontânea hayekiana, baseada na escolha livre e na responsabilidade individual. É o individualismo que leva Vargas Llosa ao otimismo, em contraste com o pessimismo provocado pelo homem-massa de Ortega y Gassett, fundido em um ser coletivo no qual abdica de sua individualidade. Para Vargas Llosa, a liberdade não existe se não for plena: não pode haver liberdade sem liberdade política, liberdade econômica e liberdade de criação e pensamento. Por isso, o livro é também uma defesa da democracia liberal e uma rejeição a qualquer forma de ditadura.
Nós, liberais clássicos, frequentemente nos queixamos da nossa falta de clareza, estilo e apelo público ao apresentar as ideias de liberdade. Ao ler O Chamado da Tribo, temos em mãos exatamente aquilo que buscamos. Sem ser perfeito, sem ser irrefutável, como diria seu admirado Popper, o que Vargas Llosa escreveu merece ser lido por muitas pessoas, de muitas gerações. É impossível encontrar um cicerone melhor para nos conduzir por um tour refinado pelo jardim exuberante e florescente das ideias de liberdade.
Este artigo foi originalmente publicado na FEE.
Para continuar a leitura:
Não existe meia liberdade; quem é meio livre é meio preso - e o Brasil nem meio livre consegue ser
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Nota: as visões expressas no artigo não são necessariamente aquelas do Instituto Mises Brasil.
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