As criptomoedas trarão um renascimento dos direitos de propriedade?
O direito à propriedade é considerado um direito humano fundamental, reconhecido mundialmente em documentos internacionais de direitos humanos, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a Declaração dos Direitos do Homem. Historicamente, esse direito está ligado aos direitos naturais. A Declaração dos Direitos do Homem tratava a propriedade como “um direito inviolável e sagrado.”
Segundo Shane Courtland, Gerald Gaus e David Schmidtz, embora os liberais clássicos concordem sobre a importância da propriedade privada, suas visões variam desde uma perspectiva quase anarquista até aquelas que defendem uma significativa intervenção estatal. Ainda assim, os direitos de propriedade são geralmente considerados direitos de primeira geração, concebidos para limitar o poder do Estado e proteger os indivíduos contra a expropriação.
Em contrapartida, o surgimento do Estado social levou a uma relativização dos direitos individuais em favor dos chamados direitos coletivos, com o objetivo de alcançar a chamada “justiça social.” Essa mudança fez com que, embora os direitos de propriedade continuem sendo considerados “fundamentais,” eles agora estejam sujeitos a diversas limitações e condições, reduzindo seu caráter absoluto. Constituições modernas, como a Constituição Brasileira, refletem essas restrições em diversos artigos, sugerindo que a propriedade passou a ser um direito relativo, em vez de absoluto.
Exemplos práticos, como a baixa pontuação do Brasil no Índice de Liberdade Econômica em relação aos direitos de propriedade e as restrições legais à posse de bens - classificadas como “reprimidas,” com uma pontuação de 49,1 em 100 - ilustram essas limitações. Questões como a desapropriação de terras sem a devida compensação no Brasil e até mesmo a Ordem Executiva 6102 nos Estados Unidos demonstram as restrições impostas aos direitos de propriedade.
Ativos monetários como uma expressão da propriedade
Os metais preciosos e outras commodities desempenharam um papel significativo na evolução do dinheiro, pois o uso de bens amplamente demandados facilitou o surgimento de meios de troca, como explicou Carl Menger. O crescimento dos intermediários financeiros contribuiu para a universalização dos métodos de troca. Com o tempo, os estados passaram a controlar o dinheiro, estabelecendo regulamentações e criando moedas. O abandono definitivo do padrão-ouro nos Estados Unidos em 1971 marcou a transição para o dinheiro fiduciário, respaldado apenas pela confiança política.
Fernando Ulrich destaca que, há muito tempo, os indivíduos têm sido restringidos em sua escolha de moeda, sendo obrigados a utilizar o dinheiro emitido pelo Estado, frequentemente sujeito à desvalorização. Friedrich von Hayek criticou os governos por não fornecerem uma moeda sólida e por abusarem de seu poder quando não estão limitados pelo padrão-ouro. De qualquer forma, devido aos seus benefícios como meio de troca, o dinheiro continua sendo uma das principais expressões dos direitos de propriedade, conferindo aos seus detentores um poder significativo sobre outros ativos de mercado, tanto no presente quanto ao longo do tempo, conforme apontado por Menger.
Desvantagens da moeda controlada pelo Estado
Friedrich von Hayek argumentava que a política monetária é uma causa significativa da instabilidade econômica, destacando que a gestão das finanças públicas e a regulação da moeda são frequentemente objetivos conflitantes. A concentração dessas funções em uma única autoridade resultou em consequências desastrosas, tornando o dinheiro um fator central das flutuações econômicas e facilitando gastos públicos descontrolados. Hayek enfatiza a necessidade urgente de separar as políticas fiscal e monetária para preservar uma economia de mercado funcional e a liberdade individual.
Outro problema do monopólio estatal sobre a moeda é a perda do controle individual sobre o dinheiro. A regulamentação governamental pode impor restrições ao uso da moeda. Hayek alerta que o controle estatal sobre a moeda internacional e a movimentação de capitais representa uma ameaça tanto para a economia global quanto para a liberdade pessoal. Exemplos históricos, como o confisco de poupanças individuais no Brasil ou a apreensão de ouro nos Estados Unidos, ilustram esses riscos. Saifedean Ammous relaciona os problemas do dinheiro fiduciário à relativização dos direitos de propriedade, argumentando que os indivíduos nunca possuem controle total sobre o dinheiro emitido pelo Estado, apenas o detêm sob a permissão do governo.
Bitcoin e seu impacto na ordem jurídica
A transição do padrão-ouro para o dinheiro fiduciário permitiu a emissão desenfreada de moeda e o crescimento descontrolado da dívida estatal. Friedrich von Hayek argumentava que, embora o controle governamental sobre o dinheiro tenha parecido justificável historicamente, ele resultou em sérios problemas, incluindo práticas monopolistas que restringem a liberdade de escolha dos consumidores.
Os avanços tecnológicos recentes, especialmente o surgimento do Bitcoin e seu sistema baseado em blockchain, desafiam esse monopólio ao viabilizar a criação de “moedas privadas,” tornando realidade a proposta de Hayek. O Bitcoin funciona como um ativo digital que não depende do controle estatal nem de qualquer autoridade centralizada, permitindo que indivíduos gerenciem seus recursos financeiros sem intermediários.
O Bitcoin é um ativo digital escasso, existindo exclusivamente dentro de sua blockchain, o que impede o problema do duplo gasto. Seu suprimento é regulado por uma rede descentralizada, composta por milhares de nós ao redor do mundo, que também garantem a integridade da rede. Isso impede que sua oferta seja manipulada da mesma forma que o dinheiro fiduciário. Além disso, o Bitcoin pode atuar como reserva de valor, e sua aceitação crescente no mercado reforça sua utilidade como moeda.
As transações podem ocorrer de forma peer-to-peer (P2P) ou por meio de exchanges, embora estas últimas introduzam intermediários, reduzindo ligeiramente um dos princípios centrais do Bitcoin. No entanto, os usuários podem transferir seus fundos para carteiras privadas, recuperando assim o controle direto sobre seus ativos.
Nesse sentido, o Bitcoin proporciona propriedade e controle absolutos sobre os bens digitais, representando a forma mais pura de direito de propriedade. Ele opera de maneira independente da aprovação estatal, permitindo que indivíduos o utilizem como dinheiro, independentemente das definições oficiais de moeda. A verdadeira liberdade econômica exige a possibilidade de negociar com base em termos mutuamente acordados, sem a imposição de um monopólio governamental sobre a emissão de dinheiro.
Conclusão
A natureza descentralizada do Bitcoin, armazenada em uma rede global, aumenta sua independência da autoridade estatal, reafirmando os direitos de propriedade clássicos. O surgimento do Bitcoin e sua estrutura de blockchain revitalizam os direitos de propriedade, proporcionando um ponto crucial de resistência contra as violações e relativizações repetidas desses direitos, aproximando-os de seu conceito clássico de serem invioláveis.
Este artigo foi originalmente publicado no Mises Institute.
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Nota: as visões expressas no artigo não são necessariamente aquelas do Instituto Mises Brasil.
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