O Fed está nos levando em uma viagem no tapete mágico
A maioria dos americanos percebe que o governo federal dos EUA, nas últimas décadas, gastou de forma tão imprudente que acumula déficits orçamentários anuais cada vez maiores (atualmente, quase 2 trilhões de dólares) e já soma mais de 36 trilhões de dólares em dívida pública. Esses gastos, supervisionados pelo Congresso e pelo Poder Executivo, têm sido excessivos desde os programas da Great Society nos anos 1960, passando pelas guerras no Vietnã e no Oriente Médio, a crise financeira de 2008-2009, os subsídios contínuos do Obamacare e a pandemia de Covid-19 entre 2020 e 2022. No entanto, muitos americanos talvez não saibam que o Federal Reserve System (Fed) - o banco central independente do país, pertencente a bancos comerciais privados membros do sistema - tem adotado recentemente uma postura semelhante, gastando muito além de suas receitas.
As receitas e despesas do Fed
O Congresso criou o Federal Reserve (Fed) em 1913 como um banco central independente, com responsabilidade mínima perante o Congresso e o Poder Executivo. A ideia por trás dessa “independência” era manter a política afastada da administração da oferta de dinheiro e das taxas de juros nos Estados Unidos. Diferente de outros bancos centrais ao redor do mundo, o sistema do Fed é composto por 12 distritos e pertence aos bancos membros - o que inclui todos os bancos com licença federal e aqueles com licença estadual que optam por aderir ao sistema. Cada um desses bancos membros é obrigado a manter ações de capital não negociáveis do banco do Fed de seu respectivo distrito, recebendo sobre elas um dividendo anual de 6%.
Ao contrário de outras agências independentes criadas pelo Congresso, o Fed não recebe financiamento do orçamento federal. Sua principal fonte de receita vem dos juros gerados pelo seu portfólio de 6,5 trilhões de dólares em títulos do Tesouro dos EUA e títulos hipotecários, adquiridos como parte da execução de sua política monetária. Além disso, o Fed arrecada algumas taxas pelos serviços regulatórios e de supervisão que presta ao setor bancário.
As despesas do Fed incluem seus próprios custos operacionais - como salários e infraestrutura -, os juros pagos sobre as reservas dos bancos comerciais mantidas no Fed, os dividendos pagos aos bancos membros por sua participação acionária nos bancos distritais do Fed e o financiamento da Agência de Proteção Financeira ao Consumidor (Consumer Financial Protection Bureau – CFPB), conforme solicitado por seu diretor para cobrir suas operações. Graças à lei Dodd-Frank de 2010, que criou a CFPB, essa agência opera dentro do Fed, de maneira distinta de qualquer outra entidade federal.
Por lei, qualquer “lucro” do Fed (isto é, a receita excedente após cobrir suas despesas e demais obrigações) deve ser transferido para o Departamento do Tesouro dos EUA para ajudar a financiar os gastos do governo federal. Essas remessas beneficiam os contribuintes, pois qualquer falha nesses pagamentos gera um custo adicional para a população.
As remessas anteriores do Fed ao Tesouro
Antes de 2022, o Fed transferia entre 5 e 10 bilhões de dólares por mês ao Departamento do Tesouro dos EUA; entre 2011 e 2021, essas remessas totalizaram mais de 920 bilhões de dólares. No entanto, desde então, o Fed tem operado com um déficit mensal entre 5 e 11 bilhões de dólares, tornando-se incapaz de repassar qualquer valor ao Tesouro. Esses prejuízos acumulados são classificados como um “ativo diferido” (deferred asset), uma espécie de passivo negativo que representa o total do déficit acumulado. Quando o Fed voltar a registrar lucro líquido positivo, ele utilizará esses ganhos para reduzir o valor do ativo diferido até zerá-lo, momento em que poderá retomar as remessas regulares ao Tesouro.
O conceito de “ativo diferido” é reconhecido pelo Conselho de Padrões Contábeis Financeiros (Financial Accounting Standards Board – FASB) e pelos Princípios Contábeis Geralmente Aceitos (Generally Accepted Accounting Principles – GAAP), embora não no contexto dos métodos contábeis do Fed. O banco central não segue as diretrizes do FASB nem do GAAP, pois tem liberdade para definir seus próprios padrões contábeis.
Observadores conhecedores questionaram como o Fed pode gastar de forma sustentável mais do que seus ganhos permitem. O Mises Senior Fellow Alex Pollock e seu frequente co-investigador, o Senior Fellow do American Enterprise Institute Paul Kupiec, abordaram essa questão importante, mais recentemente aqui e aqui. Suas análises sólidas estão corretas ao questionar a estratégia contábil criativa do Fed de classificar uma perda contábil como um “ativo diferido.”
A viagem no tapete mágico do Federal Reserve
Diante da recente situação financeira do Fed, surgem questões óbvias: os prejuízos do Fed são reais? Quem arca com os custos do seu déficit?
Sim, as perdas recorrentes são reais, tanto do ponto de vista contábil quanto econômico. Não se pode ignorar o princípio econômico de que ninguém obtém algo sem custo para si ou para outra parte - nada é realmente “gratuito”, apesar das alegações frequentes em contrário. Toda ação ou escolha sempre envolve um custo de oportunidade, ou seja, o valor das alternativas que foram deixadas de lado.
Uma visão alternativa sobre os déficits operacionais do Fed vem de Jason Furman, professor da Escola de Governo John F. Kennedy da Universidade de Harvard e ex-presidente do Conselho de Assessores Econômicos do governo Obama. Furman argumenta que as perdas do Fed não prejudicam sua capacidade de cumprir suas duas obrigações principais: garantir o máximo emprego e a estabilidade dos preços. Ele também afirma que o Fed nunca foi concebido para gerar lucro, que sua atuação macroeconômica apresentou resultados mistos ao longo do tempo e que insolvência não tem significado no mundo dos bancos centrais. No entanto, ele reconhece que os prejuízos do Fed contribuem para o aumento do déficit orçamentário federal e da dívida pública, o que acaba gerando custos para os contribuintes americanos.
Apesar da explicação de Furman, uma questão permanece: como interpretar as estratégias contábeis questionáveis do Fed - como o tratamento dos repasses ao Tesouro como “ativos diferidos”, o pagamento contínuo de juros e dividendos ao setor bancário e o financiamento integral das operações do CFPB?
O tapete mágico do financiamento do CFPB
Lembre-se de que, por lei, a CFPB não possui outra fonte de receita além dos ganhos do Fed, enquanto o Departamento do Tesouro dos EUA e o setor bancário possuem outras fontes de financiamento. Segundo o Congressional Research Service, o orçamento da CFPB para 2025 é de aproximadamente 810,6 milhões de dólares, com um quadro de 1.758 funcionários.
Sem lucros, como o Fed consegue financiar a CFPB? O economista do American Enterprise Institute (AEI), Paul Kupiec, sugere que o Fed tome emprestados recursos das reservas bancárias que o setor bancário mantém depositadas nos 12 bancos distritais do Fed. No entanto, ele observa que não há conhecimento de qualquer autorização legal que permita ao Fed contrair empréstimos para financiar outra agência governamental, como a CFPB.
Outra possibilidade preocupante surge devido ao poder único do Fed de criar crédito bancário a partir do "nada" - uma capacidade compartilhada por outros bancos centrais ao redor do mundo. Essa criação de crédito - às vezes eufemisticamente chamada de “impressão de dinheiro” - é realizada por meio da compra de ativos, como títulos do Tesouro, no mercado aberto, o que essencialmente monetiza a dívida.
Além disso, o Fed tem literalmente o poder de imprimir dinheiro, ou seja, emitir moeda americana sem limites, gerando um lucro automático para si. Esse lucro é conhecido tecnicamente como seigniorage, que representa a diferença entre o valor nominal da moeda e o custo de sua produção. Por exemplo, uma nota de 100 dólares do Federal Reserve custa apenas 12,6 centavos para ser produzida, mas tem poder de compra de 100 dólares, proporcionando ao Fed um lucro instantâneo de 99,874 dólares, que pode ser utilizado conforme sua conveniência.
Ambas as formas de “impressão de dinheiro” podem gerar fundos utilizáveis para que o Fed financie a CFPB, pague juros e dividendos aos bancos ou, possivelmente, cubra as remessas de lucros não repassadas ao Tesouro. No entanto, essa estratégia certamente levaria a uma rápida inflação de preços e à desvalorização do dólar americano, ao aumentar a oferta monetária. De fato, o primeiro método - comprar títulos do Tesouro para injetar dinheiro na economia - foi exatamente o que impulsionou a inflação de preços entre 2022 e 2024, quando o Tesouro emitiu grandes quantidades de dívida relacionada à Covid-19, e o Fed respondeu criando novo crédito bancário para adquirir essa dívida no mercado
Já estamos lá?
Durante a viagem mágica do Fed, os americanos podem levantar muitas questões: quanto tempo durará a viagem mágica e como ela termina? Quanto custará, no final das contas, os gastos deficitários do Fed para os contribuintes? Quanto tempo levará até que o Fed possa pagar aqueles ativos diferidos que se acumulam a cada ano em que o Fed perde suas remessas de lucro para o Tesouro? As pessoas em posições elevadas entendem o que o Fed está fazendo? E, se elas entendem, estão motivadas a investigar mais a fundo para tomar alguma ação corretiva?
Este artigo foi originalmente publicado no Mises Institute.
_____________________________________________
Nota: as visões expressas no artigo não são necessariamente aquelas do Instituto Mises Brasil.
Comentários (7)
Deixe seu comentário