As areias movediças na interpretação constitucional
Em um artigo resenha com o título “A Lei da Areia Movediça”, David Gordon expõe uma alegação “perniciosa”, que é avançada com base em “falsos pretextos”, de que a jurisprudência promulgada pelo Supremo Tribunal dos Estados Unidos representaria o verdadeiro significado da Constituição. Gordon considera esta alegação “perniciosa” porque, embora pareça estar admirando o método da common law da mesma forma que libertários como Friedrich Hayek e Bruno Leoni o fizeram, na verdade, tais alegações “camuflam o seu estatismo numa linguagem de common law”. Os defensores dessas teorias apoiam o ativismo judicial radical ao rejeitar totalmente a possibilidade de que “a Constituição tenha um significado original discernível que a Suprema Corte tenha distorcido”. Eles negam que alguém possa determinar o significado da Constituição lendo a Constituição - argumentam que a Constituição significa o que a Suprema Corte diz que significa, mesmo nos casos em que a Suprema Corte subverte seu significado original para promover valores progressistas.
De acordo com esses progressistas perniciosos, a Suprema Corte não distorce a Constituição de forma alguma, mas simplesmente a interpreta caso a caso. Se a jurisprudência da Suprema Corte parece criar novos princípios jurídicos que não podem ser encontrados na leitura da própria Constituição, eles veem isso como simples ilustração da interpretação pragmática da Suprema Corte, sem qualquer intenção ou projeto de criar novos princípios jurídicos. Entretanto, como explicado por David Gordon, “A defesa do senso comum e do pragmatismo não é o que parece. Eles exaltam a jurisprudência atual da Suprema Corte como uma verdade absoluta que não pode ser questionada”. Mesmo as decisões mais “radicais” e “arbitrárias” da Corte são consideradas meras interpretações feitas de acordo com a tradição da common law. Gordon está certo em apontar que esse ativismo judicial radical não é o método da common law:
“(...) as decisões controversas da Suprema Corte moderna não seguem a tradição da common law inglesa. A Corte, muitas vezes, promulga como lei seus próprios pontos de vista, ‘descobrindo’ significados amplos de várias disposições da Constituição (...) A Suprema Corte (...) muitas vezes transforma em lei, de forma descuidada, seus próprios pontos de vista sociais, com pouca pretensão de prestar atenção às palavras da Constituição.”
Os progressistas perniciosos negam que a Constituição tenha um “significado original distinto”. Eles argumentam que como “os acadêmicos discordam entre si sobre o resultado original de praticamente todas as disposições constitucionais importantes”, isso significa que as disposições não têm um significado original “puro”, de forma que deve ser deixado para a Suprema Corte decidir o significado apropriado em cada caso. Gordon expõe a falácia desse argumento. Os defensores da interpretação originalista da Constituição não alegam que ela pode ser lida da mesma forma que alguém lê um dicionário ou uma lista de compras, textos nos quais o significado das palavras fica claro com a simples leitura do texto e nenhuma interpretação adicional é necessária. Em vez disso, como explica Gordon,
“A alegação originalista é que os juízes devem estar vinculados ao significado da Constituição que lhes cabe interpretar: eles não devem se envolver em jurisprudência ‘criativa’(...), não devem inventar suas próprias fórmulas de interpretação, nas quais a intenção original figura como apenas um dos vários fundamentos para o julgamento.”
Esse tipo de disputa sobre o significado da legislação há muito tempo dá origem a controvérsias políticas. Dois exemplos serão discutidos aqui, um da Era da Reconstrução e outro do primeiro governo Trump.
Interpretação das Leis de Reconstrução
Quando o presidente Andrew Johnson foi alvo de críticas, acusado de obstruir os planos de reconstrução, seu suposto crime foi não ter implementado a visão dos republicanos radicais que dominavam o Congresso em 1866. Em seu livro Reconstruction (Reconstrução), William Dunning explica que “Johnson foi acusado de obstruir sistematicamente” o processo de reconstrução, embora ele “tenha avançado firmemente nas linhas estabelecidas nas leis de reconstrução”.
A maioria do Congresso Americano – liderada por Thaddeus Stevens e Charles Sumner – tinha uma visão revolucionária para a reconstrução. Eles declararam abertamente que o objetivo era “a destruição dos governos estaduais do Sul” que viam como “teimosos” na oposição ao sufrágio universal. A discussão de Dunning sobre o Ato de Março de 1967 destaca os objetivos legislativos reais:
“(...) qualquer estado rebelde, para ter direito à representação no Congresso e a estar livre do domínio militar, deve atender aos seguintes requisitos: deve ser realizada uma convenção, composta por delegados ‘eleitos pelos cidadãos do sexo masculino (...) de qualquer raça, cor ou condição anterior’; deve ser elaborada uma constituição que incorpore a mesma regra de sufrágio (...) e a legislatura eleita sob essa constituição deve ratificar a Décima Quarta Emenda.”
Johnson considerava a destruição dos governos estaduais ou a exclusão dos “rebeldes” da vida pública como inconstitucionais - uma visão mantida pela Suprema Corte em vários casos - e, portanto, não apoiava a perspectiva dos republicanos radicais. Por esse motivo, os radicais tentaram impugná-lo. Não conseguiram, pois ele não havia de fato violado a lei. Por fim, seus inimigos políticos abandonaram toda a pretensão de que ele havia violado a lei. Dunning explica:
“O julgamento começou formalmente em 13 de março de 1868... As evidências aqui, como perante o comitê judiciário, ficaram ridiculamente aquém de justificar as acusações selvagens feitas por seus adversários (...)
"Nessas circunstâncias, o chamado julgamento tornou-se, em seus últimos estágios, uma mera formalidade. A questão não era se o presidente era culpado de algum crime, mas se ele deveria ser deposto do cargo por causa de sua oposição política à maioria do Congresso.”
Esse exemplo ilustra outro paradoxo apontado por Gordon: o fato de os oponentes da leitura originalista verificarem se a lei está sendo seguida “corretamente”, com base no fato de gostarem do resultado. No exemplo discutido por Gordon - a Décima Quarta Emenda -, o argumento dos progressistas é semelhante: embora a Constituição não afirme explicitamente que a segregação racial “separada, mas igual” seja proibida e a linguagem da igualdade seja compatível com o fornecimento de instalações “separadas, mas iguais”, ainda assim a redação da Constituição deve ser ignorada, porque esse resultado - separado, mas igual - é considerado moralmente abominável por aqueles que querem promover a igualdade social e econômica ou a igualdade de experiência de vida. Da mesma forma, no caso de Johnson, os republicanos radicais argumentaram que ele violou as Leis de Reconstrução, não com base no fato de que ele havia lido mal a legislação ou deixado de seguir suas exigências, mas puramente porque consideravam sua abordagem à Reconstrução muito reticente e sua devoção à “antiga constituição” muito conservadora.
O Departamento de Justiça de Donald Trump
Uma disputa semelhante surgiu em relação ao significado e à interpretação das leis de direitos civis pelo primeiro governo do presidente Donald Trump. O Departamento de Justiça foi acusado por ativistas de direitos civis de enfraquecer a Lei de Direitos Civis, seguindo estritamente a letra da legislação para frustrar seus verdadeiros objetivos. O New York Times noticiou:
“Em resposta aos interesses concorrentes e, às vezes, contraditórios dos direitos civis, as autoridades do departamento afirmam que estão cumprindo a letra da lei. ‘Nosso trabalho é ser um braço de aplicação da lei que protege as leis conforme o Congresso e a Suprema Corte as redigiram’, disse John Gore, chefe da divisão de direitos civis do Departamento de Justiça.”
Os ativistas dos direitos civis argumentaram que, ao se ater ao significado literal da legislação, o governo Trump estava deliberadamente frustrando o “verdadeiro significado” dos direitos civis conforme estabelecido na jurisprudência. A sugestão era que, ao adotar essa abordagem, ao abandonar as prioridades previamente estabelecidas de proteger “gays, lésbicas e transgêneros e afro-americanos”, as “escolhas do governo Trump criaram uma nova posição geral sobre os direitos civis que se desvia acentuadamente dos anos anteriores”. A legislação de direitos civis baseia-se no princípio da não discriminação e não declara explicitamente que seu objetivo é promover “gays, lésbicas e transgêneros e afro-americanos”. No entanto, aqueles que veem o avanço desses grupos como o “verdadeiro objetivo” das leis de direitos civis estão convencidos de que deixar de ler a lei dessa forma equivale a virá-la de cabeça para baixo. A CNN noticiou, por exemplo:
“Mas, durante o governo Trump, a divisão de direitos civis foi virada de cabeça para baixo, remodelada para promover uma visão deturpada dos Estados Unidos, tanto por sua recusa em aplicar as leis de direitos civis existentes quanto, mais recentemente, por seu trabalho ativo para minar os esforços inclusivos de justiça igualitária.”
Casos Jurídicos Politicamente Contestados
Essas preocupações são incorretas. É verdade que uma maneira de frustrar a intenção e o significado de qualquer legislação - ou, de fato, de qualquer palavra - seria tomar as palavras em seu sentido literal, mesmo quando isso leva ao absurdo. Mas não é isso que está sendo feito em casos jurídicos politicamente contestados. A noção de que o objetivo da legislação de direitos civis é promover “esforços inclusivos de justiça igualitária”, linguagem derivada de teorias socialistas de inclusão e equidade, é apenas uma leitura da legislação - que não é de forma alguma incontestável.
Gordon argumenta que o fato de o significado da lei ser contestado não significa que a lei não tenha um significado original. Além disso, podemos avaliar as diferentes interpretações e julgar qual é melhor do que a outra: “É verdade que o significado de várias cláusulas é contestado, mas isso não significa que todas essas interpretações sejam igualmente boas. O simples fato da diferença de opinião representa um problema: não mostra que o problema não tem solução.” Gordon acrescenta que “o fato de muitos teóricos jurídicos discordarem” de uma proposição, ou que “muitas questões interpretativas difíceis permanecem”, não significa que uma proposição jurídica seja falsa; significa que a proposição é contestada ou controversa. Além disso, Gordon pergunta: “Será que muitas diferenças de interpretação não são o produto de professores de direito ansiosos para importar suas próprias agendas para a Constituição?” Um exemplo recente disso é a alegação de Ketanji Brown Jackson de que somente um biólogo saberia o que é uma mulher, insinuando que, portanto, não está claro o que a palavra “sexo” significa na legislação de direitos civis.
Os debates políticos que envolvem diferentes interpretações legítimas da Constituição podem ser difíceis de resolver, mas, como Gordon ressalta, é trivial observar que “nem todas as questões de interpretação são simples”. O fato de que o significado de documentos históricos não é simples, mas sim objeto de debate e discordância, não é motivo para abandonar a tentativa de discernir o significado original da Constituição.
Este artigo foi originalmente publicado no Mises Institute.
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Nota: as visões expressas no artigo não são necessariamente aquelas do Instituto Mises Brasil.
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