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Direito

O texto como guardião

A lei e a presunção de liberdade

01/02/2025

O texto como guardião

A lei e a presunção de liberdade

No Brasil, a Constituição Federal de 1988, especialmente em seu artigo 5º, simboliza um compromisso profundo com a proteção de direitos fundamentais. Contudo, a interpretação dada por correntes neoconstitucionalistas, que enfatizam a maleabilidade do Direito às conjunturas do momento, frequentemente desvia o foco da essência da justiça material para uma abordagem que pode ser descrita como ativismo judicial. A partir das ideias de Randy Barnett em Restoring the Lost Constitution, é possível articular uma crítica construtiva a essa tendência, enfatizando que a legitimidade do Direito não pode ser reduzida a uma leitura flexível e adaptativa da Constituição, mas deve estar ancorada em princípios imutáveis de justiça e liberdade.

A corrente neoconstitucionalista, ao buscar uma interpretação dinâmica e evolutiva da Constituição, muitas vezes acaba por relativizar direitos fundamentais em nome de supostas necessidades sociais ou políticas. Barnett alerta que essa abordagem, embora bem-intencionada, corre o risco de transformar o Direito em um instrumento de conveniência, onde a Constituição perde sua função de limitar o poder estatal e proteger as liberdades individuais. No Brasil, essa crítica é especialmente relevante, pois o neoconstitucionalismo, ao priorizar uma leitura aberta e principiológica do texto constitucional, frequentemente justifica decisões que ultrapassam os limites do Judiciário, invadindo esferas próprias do Legislativo e do Executivo.

A ideia de que a Constituição deve ser interpretada de forma a adaptar-se às mudanças sociais é sedutora. No entanto, essa adaptação acaba se transformando em uma justificativa para o ativismo judicial, resultando na erosão da segurança jurídica e a perda de confiança nas instituições. Barnett defende que a interpretação constitucional deve ser guiada por uma “presunção de liberdade”, onde qualquer restrição a direitos fundamentais exija uma justificativa rigorosa e proporcional.

O artigo 5º da Constituição reflete uma combinação entre direitos negativos e positivos. Os primeiros, muitas vezes associados a garantias individuais de primeira dimensão, consistem em proteções contra interferências indevidas do estado ou de terceiros na esfera privada do indivíduo — como a liberdade de expressão, o direito de propriedade e a livre iniciativa. Já os direitos positivos, frequentemente chamados de direitos de segunda dimensão, pressupõem ações concretas do estado para sua efetivação, como saúde, educação e segurança social. Apesar de ambos serem relevantes, a corrente neoconstitucionalista frequentemente prioriza a realização de direitos programáticos em detrimento da proteção das liberdades negativas, fundamentais para limitar o poder estatal e preservar a autonomia dos indivíduos.

Na Constituição brasileira, tais direitos aparecem lado a lado, sobretudo no artigo 5º (que consagra vários direitos e garantias individuais) e no Título VIII (que trata da ordem social). Enquanto os direitos negativos exigem, em essência, que o estado se abstenha de interferir na autonomia dos indivíduos, os direitos positivos demandam políticas públicas e recursos estatais para sua realização. Essa distinção é central na perspectiva defendida por Barnett, pois a proteção dos direitos negativos (vida, liberdade e propriedade) constitui o núcleo que limita o poder estatal, ao passo que a expansão dos direitos positivos, se não for acompanhada de critérios claros e proporcionais, pode justificar intervenções que relativizam ou até violam liberdades fundamentais.

Feita essa distinção, é possível entender melhor por que, segundo Barnett, a preservação incondicional dos direitos negativos é fundamental para a legitimidade moral do Direito. Barnett argumenta que, quando um sistema jurídico perde a conexão com vida, liberdade e propriedade, suas normas deixam de ser moralmente vinculantes. E se uma lei não é moralmente obrigatória, ela só pode ser obedecida por medo, o que esvazia sua autoridade e transforma o Direito em um mecanismo de coerção pura, não de justiça efetiva.

No Brasil, essa distorção é mais grave pois o Judiciário, sob a influência do neoconstitucionalismo, tem assumido um papel ativista, criando normas e políticas públicas que deveriam ser competência exclusiva do Legislativo e do Executivo. O conceito de Judicial Engagement, desenvolvido por Barnett, propõe uma alternativa clara: os juízes devem atuar como guardiões dos direitos fundamentais negativos, submetendo as leis a um escrutínio rigoroso para garantir que não sejam desproporcionais ou arbitrárias. Diferente do ativismo judicial, que frequentemente ultrapassa os limites do texto constitucional, essa abordagem oferece um caminho para fortalecer a proteção das liberdades individuais contra o expansionismo estatal, respeitando os limites do pacto constitucional.

O Judiciário, nesse modelo, não legisla, mas protege os direitos fundamentais contra o expansionismo estatal. No Brasil, onde a Constituição consagra direitos inalienáveis, impondo limites claros ao poder estatal, o Judicial Engagement poderia funcionar como um freio contra abusos legislativos e executivos. Ele reforça a ideia de que interpretar a Constituição não significa reescrevê-la conforme as circunstâncias do momento. A fidelidade ao texto não é um obstáculo à evolução social; pelo contrário, é a garantia de que mudanças ocorram dentro dos limites do pacto constitucional e não por imposição arbitrária de um poder transitório.

Dito isso, vale trazer um paralelo com as ideias defendidas pelo Ministro Luís Roberto Barroso, no artigo “Contramajoritário, Representativo e Iluminista: Os papéis dos tribunais constitucionais nas democracias contemporâneas”, onde ele apresenta reflexões sobre o papel do Judiciário em tempos de crise institucional, defendendo um Judiciário iluminista que atue para suprir lacunas políticas e sociais. Entretanto, ao justificar uma postura proativa do Judiciário em nome de um suposto “progresso civilizatório”, corre-se o risco de desvirtuar a separação de poderes e enfraquecer a segurança jurídica, pilares de um Estado Democrático de Direito. Como bem advertiu Lord Devlin:

É grande a tentação de reconhecer o judiciário como uma elite capaz de se desviar dos trechos demasiadamente embaraçados da estrada do processo democrático. Tratar-se-ia, contudo, de desvio só aparentemente provisório; em realidade, seria ele a entrada de uma via incapaz de se reunir à estrada principal, conduzindo inevitavelmente, por mais longo e tortuoso que seja o caminho, ao estado totalitário.

O alerta de Devlin é valioso no contexto brasileiro, onde o ativismo judicial, ao relativizar direitos fundamentais e invadir competências próprias do Legislativo, pode comprometer o pacto constitucional e desviar o Direito de sua função essencial: limitar o poder estatal e proteger as liberdades individuais.

Para compreender os desafios enfrentados pela legitimidade do Direito no Brasil, é essencial considerar o contexto histórico que moldou o papel do Supremo Tribunal Federal. Desde a promulgação da Constituição de 1988, o STF gradativamente foi ampliando suas competências, por meio de teses jurídicas que põe o texto em segundo plano, assumindo um protagonismo que extrapola os limites tradicionais de uma corte constitucional.

As ideias do Ministro Barroso, que defende um Judiciário iluminista capaz de avançar agendas sociais e preencher lacunas deixadas pelo Legislativo, contrastam profundamente com o conceito de Judicial Engagement de Randy Barnett. Enquanto Barroso legitima uma atuação expansiva do Judiciário, baseada em interpretações abertas para promover avanços sociais, Barnett defende um Judiciário estritamente ancorado nos limites do texto constitucional. Para Barnett, os juízes devem atuar como guardiões das liberdades individuais, restringindo o poder estatal e protegendo direitos fundamentais apenas quando houver justificativas claras e proporcionais, preservando a fidelidade ao texto constitucional como essência do pacto democrático.

Preservar a Constituição não significa congelá-la em uma leitura anacrônica, mas assegurar que sua essência permaneça intacta, resistindo às pressões políticas e ao oportunismo. Essa fidelidade gera estabilidade e confiança na ordem jurídica, evitando que a Constituição se torne um documento maleável à conveniência dos governantes. Como bem lembra Barnett, a Constituição é “a lei que governa aqueles que nos governam”. Se aceitarmos que seu núcleo pode ser distorcido ao sabor das circunstâncias, então estamos abrindo mão do principal escudo contra o abuso de poder.

 

Este artigo foi originalmente publicado no substack da Lexum.

Leonardo Corrêa: Advogado, Sócio de 3C Law | Corrêa & Conforti Advogados, LL.M pela University of Pennsylvania, um dos Fundadores e Presidente da Lexum.

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Nota: as visões expressas no artigo não são necessariamente aquelas do Instituto Mises Brasil.

Sobre o autor

Lexum

A Lexum é uma associação dedicada à defesa da liberdade e do Estado de Direito no Brasil. Fundamentamos nossa atuação em três princípios essenciais: (1) o Estado existe para preservar a liberdade; (2) A separação de poderes é essencial para a nossa Constituição Federal; e, (3) A função do Judiciário é dizer o que a lei é, não o que ela deveria ser. Promovemos um espaço para advogados liberais clássicos, libertários e conservadores, estimulando o livre debate e o intercâmbio de ideias.

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