Esse site usa cookies e dados pessoais de acordo com os nossos Termos de Uso e Política de Privacidade e, ao continuar navegando neste site, você concorda com suas condições.

< Artigos

Economia

Será que o dinheiro teve origem no “Estado-nação”?

29/10/2024

Será que o dinheiro teve origem no “Estado-nação”?

No livro de 1871 Princípios de Economia, o economista Carl Menger descreveu as circunstâncias em que o dinheiro provavelmente surgiu pela primeira vez “sem a necessidade de um acordo especial ou mesmo de coerção governamental”.[i] Ou seja, a origem do dinheiro foi, segundo Menger, um fenômeno de mercado que surgiu espontaneamente por “indivíduos economizadores”, em vez de algo que surgiu por decreto de um rei ou outro líder político.

Mesmo em uma economia de escambo, os indivíduos ainda poderiam se beneficiar da troca interpessoal. Se Bob tem cinco maçãs que está disposto a trocar por um martelo, e se Alice tem um martelo, mas prefere ter cinco maçãs, então ambos os indivíduos podem obter benefício mútuo trocando um pelo outro. Neste exemplo, observamos a troca direta porque ambos os indivíduos planejam usar pessoalmente o item que recebem. Bob usará o martelo para produção e Alice usará as maçãs para consumo.

Mas e se Bob ou Alice não quiserem algo que o outro indivíduo está disposto a oferecer em troca? Imagine, por exemplo, que Alice ainda tenha um martelo que ela está disposta a trocar, mas não queira maçãs. Se Bob não tiver nada que Alice esteja disposta a aceitar pelo martelo que ela possui e que ele quer, então nos deparamos com o que é chamado de problema da dupla coincidência de desejos. No primeiro cenário, ambos os indivíduos querem algo que o outro tem, mas neste cenário, isso não ocorre.

Uma vez que Bob perceba que pode trocar algo que ele tem com outra pessoa em troca de algo que Alice quer, passamos da troca direta para a troca indireta. Então, por exemplo, se Sam tiver dois cocos que ele está disposto a aceitar em troca das cinco maçãs que Bob tem, e se Bob acreditar que Alice tem interesse nos dois cocos, então Bob pode trocar as maçãs com Sam pelos dois cocos, para que ele possa assim realizar outra troca com Alice: os dois cocos que ele ganhou de Sam em troca do martelo que Alice possui, o qual ela estima menos do que os dois cocos. Nesta troca indireta, os cocos são o meio de troca, pois Bob os aceitou voluntariamente, todavia sem visar seu consumo ou seu uso em atividade de produção. Ele aceitou os cocos apenas porque acreditava que Alice os receberia em troca do que ele realmente queria: um martelo.

No entanto, apesar de os dois cocos serem um meio de troca, eles não são dinheiro. Todo dinheiro é um meio de troca, mas nem todos os meios de troca são dinheiro.[ii] Além disso, o que observamos até agora ainda é uma economia de escambo em que o dinheiro ainda não existe.

Uma vez que passamos da troca direta para a troca indireta com os cocos como meio de troca – mas ainda sem a existência de dinheiro –, Bob pode notar que certas outras mercadorias funcionam melhor do que os cocos como meio de troca. Ou seja, Bob percebe que outras pessoas estão mais dispostas a aceitar algumas mercadorias em detrimento de outras. Então, se Alice, Sam e outros na comunidade estiverem dispostos a aceitar pedras brilhantes e conchas marinhas em trocas indiretas, então as pedras brilhantes e as conchas marinhas são ambos meios de troca, mas nenhum deles atingiu o status de dinheiro, a menos que um deles se torne comumente aceito.

Nesta economia de escambo, cada “indivíduo economizador” percebe rapidamente que algumas mercadorias são mais vendáveis para os outros como meios de troca, com base em suas respectivas propriedades. Algumas mercadorias não são facilmente divisíveis, ou viriam a tornar-se inúteis se fossem divididas (como uma lança ou um machado). Outras não são fungíveis (conchas marinhas). Outras não são duráveis (pão). Algumas não são escassas (areia - especialmente perto de praias ou no deserto). Outras ainda não são portáteis (casas).

Menger explica que diferentes mercadorias competiriam entre si para se tornarem dinheiro em uma economia de escambo como esta, tendo como base a sua vendabilidade em um processo evolutivo gradativo, à medida que cada pessoa busca melhorar sua própria situação. Obviamente, a desejabilidade relativa de uma mercadoria ou outra para a troca indireta (quão vendáveis elas são) depende do tempo e do lugar. Por exemplo, o Bitcoin é inútil como dinheiro em uma ilha sem conectividade com a internet. Mas historicamente, o ouro e a prata resistiram ao teste do tempo como candidatos incrivelmente bem-adaptados (altamente vendáveis) para o dinheiro.

Observe que Menger admite que “a santidade do Estado” para uma determinada mercadoria pode, de fato, ajudá-la a alcançar a aceitação universal (e, portanto, ajudá-la a ascender ao status de “dinheiro”), mas não temos nenhum motivo particular para acreditar que a origem do dinheiro se deve a essa santidade do Estado. Nas palavras de Menger[iii]:

“O dinheiro não é uma invenção do Estado. Não é o produto de um ato legislativo. Mesmo a sanção da autoridade política não é necessária para sua existência. Certas mercadorias se tornaram dinheiro de forma bastante natural, como resultado de relações econômicas que eram independentes do poder do Estado.”

 

O dinheiro em campos de prisioneiros de guerra (POW) da Segunda Guerra Mundial

Soldados britânicos dentro de um campo de prisioneiros de guerra nazista

 

Richard A. Radford era um economista que serviu no exército britânico durante a Segunda Guerra Mundial e foi capturado e detido em um campo de prisioneiros de guerra controlado pelos nazistas. Radford conta sua experiência observando o que ele chamou de “um intenso comércio em todo tipo de mercadorias” entre prisioneiros de várias potências aliadas dentro do campo. Em vez de usar moedas soberanas (emitidas pelo Estado) como meio de troca, eles usavam os bens que tinham à mão: artigos de higiene, roupas, além de itens de pacotes de alimentos da Cruz Vermelha: leite enlatado, geleia, manteiga, biscoitos, carne em conserva, chocolate, açúcar. Mas os cigarros – especialmente os cigarros industrialmente enrolados – emergiram espontaneamente como um dinheiro vencedor.

Radford escreve que, apesar do “intenso comércio em todo tipo de mercadorias”, os preços não eram cotados em uma mercadoria por outra, mas em cigarros. Nas próprias palavras de Radford: “...não se cotava carne em conserva em termos de açúcar – mas em termos de cigarros. O cigarro se tornou o padrão de valor”.[iv] Portanto, foram os cigarros que emergiram espontaneamente devido à sua relativa “fácil vendabilidade” entre os candidatos disponíveis para o dinheiro-mercadoria dentro deste campo de prisioneiros de guerra.

Embora não possamos voltar no tempo para observar a origem do dinheiro – a primeira instância em que uma mercadoria se tornou um meio de troca comumente aceito –, o artigo de Radford fornece uma observação informativa que apoia a tese de Menger. Embora tenha ocorrido sob a jurisdição do Estado-nação (na época sob controle nazista), o surgimento espontâneo dos cigarros como dinheiro não veio por decreto de nenhum líder político.

 

Referências:

MENGER, C. (2011): Principles of Economics, Auburn, Ludwig von Mises Institute [Edição de bolso].

RADFORD, R.A. (1945): “The Economic Organisation of a P.O.W. Camp”, Economica, Nova Série, Vol. 12, No. 48, pp. 189-201.

 

Notas:

[i] Menger (2011), pp. 258-259.

[ii] Definiremos o dinheiro como um meio de troca comumente aceito.

[iii] Menger (2011), pp. 261-262.

[iv] Radford (1945), p. 191.

 

Este artigo foi publicado originalmente em inglês.

_____________________________________________

Nota: as visões expressas no artigo não são necessariamente aquelas do Instituto Mises Brasil.

Sobre o autor

Emile Phaneuf III

Possui mestrado (duplo diploma) em Economia pela OMMA Business School Madrid e pela Universidad Francisco Marroquín, bem como mestrado em Ciência Política pela Universidade de Arkansas.

Comentários (2)

Deixe seu comentário

Há campos obrigatórios a serem preenchidos!