Necromancia Jurídica: uma Constituição morta muito louca
O observador mais atento dos tribunais brasileiros terá percebido que um espírito muito diferente se encarnou nos juízes de nossa época. Tornou-se possível extrair qualquer verdade da leitura de nossa Constituição: da proibição da castração de cachorros à criação do crime de transfobia, passando por outras tantas exóticas divinações.
A mistificação do constitucionalismo seria cômica, se não fosse trágica e estivesse rasgando o tecido social brasileiro, destruindo tudo que nosso povo considera importante e perpetuando uma crise constitucional.
Nossa tese é que vivemos uma revolução disfarçada onde o ativismo judicial transformou-se num regime, no qual as decisões judiciais em geral e a interpretação constitucional em particular são o verdadeiro e único poder.
E que isto só se tornou possível porque a Constituição de 88 na verdade morreu, mas seu cadáver anda sendo usado para emitir cheques em nome do povo brasileiro, da democracia e do estado democrático de direito, tal qual Tio Paulo e seu empréstimo post-mortem no Bradesco.
Constituições não têm certidão de óbito, então demonstrar a morte das ideias que lhes davam vida e sustentação é o mais próximo que podemos chegar de uma. E a história da concepção, nascimento e falecimento desse fantástico documento começa muitos anos atrás, num Brasil que usou o direito penal para reprimir a dissidência política durante a ditadura militar.
Não que isso seja exclusividade brasileira, a agitação revolucionária sempre foi criminalizada e gerou prisões. Basta saber onde Stalin conheceu Lênin, ou onde Hitler escreveu sua obra maior. A história é sempre a mesma, o regime usa a força contra aqueles que querem à força derrubá-lo, e o Direito Penal organiza e justifica seu uso pelo Estado.
A persecução criminal deixa traumas, e, quando o grupo dissidente chega ao poder, trata de tentar garantir que não será perseguido novamente. Poderíamos estar falando (e falaremos) do Brasil, mas o melhor exemplo disso é a constituição americana.
Todos conseguem imaginar que, aos olhos da Coroa Britânica os heróis da independência americana eram subversivos e revolucionários. Os quais, além de uma guerra de independência, tiveram de travar batalhas no campo do direito penal. O que muitos não sabem é que as garantias penais do Bill of Rights têm o intuito de proteger a dissidência política, não o criminoso comum. E o fazem com veemência, seja através do direito ao silêncio, da livre expressão ou da garantia à propriedade de armas.
Apesar de fascinante, a história da constituição americana só nos é relevante na medida em que descreve o sentimento do constituinte de 88. Ao contrário de sua irmã, a carta brasileira fez muito mais que tentar prevenir os erros do passado, e talvez por isso tenha falhado.
Perseguidos que foram, os constituintes de 88 criaram um sistema de garantias penais demasiadamente forte. Tão robusto que levou a justiça criminal brasileira à paralisia. Durante 25 anos foi impossível conduzir um processo penal de importância no Brasil, sem que em algum momento ele fosse anulado por desrespeitar uma das diversas garantias constitucionais inscritas no texto de 88 (ou criadas pela jurisprudência do Supremo).
Ironicamente, foi a publicação do acórdão do Caso Mensalão pelo próprio STF que deu fim a esse capítulo. Uma sentença catártica condenando 25 membros do mais alto escalão político, escancarando a corrupção do sistema e a falsidade das garantias penais contra suposta persecução política. De quebra fez desmoronar a base moral e ideológica que sustentava a constituição.
Exatos dois meses se passaram até que o povo emitiu e carimbou a certidão de óbito do regime. O local foi o teto do Congresso Nacional, a data o dia 17 de junho de 2013 e a causa mortis falência múltipla dos órgãos. Foi também esse o início da longa batalha do establishment político contra a realidade, que se estende até os dias de hoje.
Onze anos depois, muitos atores têm exercido com louvor seu papel destrutivo nesse ciclo da vida nacional, mas a necromancia constitucional implementada pelo Supremo Tribunal Federal merece uma crônica própria.
Cada brasileiro tem uma decisão absurda do STF favorita. Para os mais antenados às notícias do dia, o bloqueio do X chama a atenção. Para os amantes do processo penal, a polícia secreta criada pelos inquéritos de Alexandre de Moraes são o auge. Há quem diga que a criação de tipos penais por analogia são o maior absurdo jurídico da história do direito penal material. São tantas as possibilidades! Temos também a relativização da imunidade no discurso parlamentar, a instalação de UTIs em aldeias indígenas e a proibição de operações policiais em favelas. É difícil escolher...
Mas não precisamos concordar sobre o mais bonito gol de Pelé para saber que ele foi um grande jogador. Nem precisamos determinar qual a mais arbitrária das decisões supremas para saber que o tribunal tomou para si poderes que não são seus. E podemos ainda estar de acordo que a pragmática classe jurídica muito pouco fez além de submissamente adaptar-se às novas regras do jogo; ainda que agora joguemos futebol com regras de handebol.
A maior parte dela se prostrou diante da magnitude do problema, e alguns foram além, entrando numa espécie de Campeonato Brasileiro de Adulação Jurídica, esporte no qual advogados competem para ver quem mais lisonjeia, em troca de e acesso e ascenso, um Supremo Ministro.
Talvez eu tenha entendido mal, e isso tudo seja uma astuta forma de combinar o personalismo brasileiro com os clamores por segurança jurídica. Temos hoje total certeza de que ao acessar o Supremo com a causa e causídico certo, tudo é possível. Desde a já tradicional anulação de sentenças criminais, até a criação das mais heterodoxas e detalhadas políticas públicas.
Mas toda boa festa chega ao fim. Se tem sido a suprema necromancia que preservou o cadáver de nossa constituição, será o odor dessa putrefação que levará o regime ao descrédito. A cada tentativa de substituir-se à constituição, a juristocracia brasileira evidencia sua própria falência. Enquanto isso, no mundo real, longe de Brasília, para cada Bolsonaro inelegível surgem dez Pablos Marçais.
Só nos resta torcer para que o necrochorume do cadáver não polua o país inteiro, vocalizar o absurdo em que vivemos e repetir as palavras do coveiro do regime, Eduardo Cunha: que Deus tenha misericórdia dessa nação.
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Nota: as visões expressas no artigo não são necessariamente aquelas do Instituto Mises Brasil.
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