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Direito

Um arrozal de inoperância estatal

06/06/2024

Um arrozal de inoperância estatal

“Não é honesto (...) refugiar-se atrás da cômoda frase feita de quem diz que a magistratura é superior a toda crítica e a toda suspeita: como se os magistrados fossem criaturas sobre humanas, não tocados pela miséria desta terra, e por isto intangíveis. Quem se satisfaz com estas vãs adulações ofendem à seriedade da magistratura: a qual não se honra adulando-a, mas ajudando-a, sinceramente, a estar à altura de sua missão”.

(Piero Calamandrei)

 

A inoperância do Estado para lidar com as terríveis enchentes do Rio Grande do Sul, infelizmente, ganhou o selo do Poder Judiciário. Na noite do dia 5 de junho de 2024, o Juiz Federal Bruno Risch Fagundes de Oliveira havia deferido medida liminar, em ação popular, para suspender “liminarmente o leilão para compra de arroz beneficiado polido” que será vendido pela CONAB. A medida, corretíssima, visava impedir a medida eleitoreira do Governo Federal. Aproveitando-se da situação, o Governo resolveu comprar arroz para vender abaixo do preço em embalagens da CONAB. Não é difícil imaginar as imagens dessas embalagens em campanhas políticas com o provável slogan “arroz do povo”.

Cleveland Prates, em artigo publicado no IG, foi muito feliz em sua colocação:

“Não há dúvidas que o desastre que tomou conta do Rio Grande do Sul é muitíssimo grave e que, como já escrevi em texto anterior, não é hora de politizarmos a questão mas, sim, concentrarmos todos os esforços para resolvermos os problemas de uma maneira coordenada. Entretanto, quando vejo um discurso como o do nosso presidente, fico assustado. Isso porque, definitivamente, o preço do arroz é hoje um ‘não problema’, por várias razões, que, com a intervenção equivocada do Estado, pode se tornar um problema.”

Na sequência, o economista esclarece que o arroz é um alimento de baixo valor nutricional e com vários substitutos, o que limita aumentos persistentes de preços, como ensina a economia básica. O Estado deveria divulgar alternativas nutricionais. Os preços dos alimentos variam com as mudanças nas variáveis econômicas que influenciam oferta e demanda, funcionando como sinal para produtores e consumidores. Preços altos indicam alta demanda e incentivam maior produção futura, então controlar preços distorce o mercado e afeta negativamente a oferta futura. Exemplos de tabelamento de preços no governo Sarney e controle de preços de combustível e eletricidade no governo Dilma demonstram a desestruturação causada por essas intervenções, que não resolvem as causas reais dos problemas.

Pois bem. A situação está bem clara. Para fundamentar a liminar, o juiz de primeira instância apresentou os seguintes argumentos:

(i) não há evidências concretas de risco de desabastecimento de arroz no mercado interno devido às enchentes no Rio Grande do Sul, com dados da produção de arroz indicando que a safra de 2023/2024, mesmo com perdas, seria suficiente para abastecer o mercado brasileiro, corroborado por informações do Instituto Rio Grandense do Arroz (IRGA) e declarações de entidades locais que sustentam a preservação da safra;

(ii) as Portarias Interministeriais MDA/MAPA/MF nº 3 e 4, bem como o Aviso de Leilão nº 47/2024, são baseadas em pressupostos não comprovados, como a necessidade de importação devido a um suposto desabastecimento decorrente da calamidade pública, sendo que a redução na produção de arroz é uma tendência observada ao longo de anos e não diretamente relacionada às enchentes recentes, o que torna os atos administrativos carecedores de fundamentação adequada;

(iii) os atos impugnados potencialmente violam diversos princípios constitucionais, incluindo a soberania nacional, a propriedade privada, a livre concorrência, a redução das desigualdades regionais e sociais, e o tratamento favorecido para empresas brasileiras, ressaltando que a importação de arroz com subsídios, sem considerar adequadamente a produção nacional, poderia prejudicar a economia local e a livre concorrência;

(iv) a importação direta de arroz pela CONAB com venda subsidiada é considerada uma medida extrema e excepcional, que deveria ser justificada por um risco efetivo de desabastecimento ou elevação extraordinária de preços, justificativa essa que não foi adequadamente demonstrada; e, por fim,

(v) há necessidade de um diálogo mais aprofundado e democrático entre as entidades representativas dos produtores de arroz e os entes federais responsáveis pela importação, considerando a crise gerada pelas enchentes e a necessidade de mais tempo para elucidar a real capacidade produtiva e de escoamento da produção nacional.

Tratam-se, como se vê, de fundamentos sólidos e robustos. Entretanto, por meio de recurso ao TRF, a União conseguiu reverter essa decisão. A decisão que cassou a liminar anteriormente concedida parece ignorar os sólidos argumentos apresentados na decisão inicial, que destacou a ausência de evidências concretas de risco de desabastecimento de arroz no mercado interno. Ao afirmar que a suspensão do leilão interferiu na formulação e execução de políticas públicas, a decisão falha em considerar que essas políticas se basearam em pressupostos não comprovados e desatualizados, como apontado na liminar. A alegação de violação ao princípio da separação dos poderes desconsidera que a intervenção judicial visou justamente corrigir um possível desvio de finalidade e falta de fundamentação adequada nos atos administrativos. A decisão também minimiza a importância da presunção de legitimidade dos atos administrativos, ignorando que essa presunção não é absoluta e deve ser reavaliada quando há indícios de irregularidades.

Além disso, ao enfatizar a urgência e excepcionalidade da situação no Rio Grande do Sul, a decisão desconsidera dados concretos apresentados pela IRGA e outras entidades locais que indicam que a safra está praticamente preservada e que não há necessidade iminente de importação. Assim, ao permitir a realização do leilão, a decisão está, nitidamente, privilegiando uma política pública baseada em fundamentos questionáveis, em vez de garantir uma avaliação mais aprofundada e democrática sobre a real necessidade e impacto da medida. A fundamentação, a olhos vistos, foi uma vistosa petição de princípio, dando por demonstrado o que se precisava demonstrar.

Parece que a decisão que cassou a liminar cai em um dos problemas advertidos por Calmon de Passos:

“Há um grave risco de, agora, nessa hipótese de antecipação de tutela, se tentar construir um conceito de verossimilhança próximo ao ‘palpite’ que o inspirado julgador pode ter. Esperamos que tal calamidade, que tantos males já produziu em matéria cautelar, não se transfira para a antecipação da tutela. Nós que somos dos que acreditam ser a tutela jurídica, devida pelo Estado, algo muito sério, a merecer, de quem a defere, o máximo de cuidado e responsabilidade, ficamos torcendo para que os deuses ouçam nossa prece e nos mandem os sete anos de vacas gordas, não as dez pragas do Egito.”[1]

Também não se considerou a precisa lição de José Carlos Barbosa Moreira:

“O juiz deve reclamar uma forte probabilidade de que o direito alegado realmente exista. (...) Não basta que a versão dos fatos oferecida pelo autor seja tal que o espírito do juiz não a rejeite como evidentemente falsa. É preciso algo mais. É preciso que ela, corroborada pelos elementos de prova existentes nos autos, se lhe afigure, não digo necessariamente certa, mas pelo menos, altamente provável.”[2]

A decisão ficou no terreno das suposições do Tribunal Regional Federal.

Ademais, não se considerou a irreversibilidade da medida, com o arroz comprado a sentença de morte para os produtores gaúchos está decretada. Vilson Rodrigues Alves é preciso em pontificar que:

“(...) somente poderá ocorrer essa tutela antecipatória se com ela não se produzirem resultados práticos irreversíveis. (...) Ocorrerá isso se, de hipótese, diante da revisão da decisão não se puder mais retornar ao estado anterior à antecipação, em princípio.”[3]

É lamentável o ocorrido. As consequências da cassação da liminar serão inimagináveis. Isso pode representar o sucateamento da indústria gaúcha de arroz. Ou seja, no momento de maior dor e sofrimento, os gaúchos enfrentam novo revés e se sentem desamparados pelo Poder Judiciário, que, com a decisão do TRF, “lavou as mãos”.

Esse brevíssimo artigo iniciou com uma citação de Calamandrei no pórtico, e deve buscar seu fim com outra, mencionada por Mauro Capelletti na obra “Juízes Irresponsáveis?”:

“Sob a ponte da Justiça passam todas as dores, todas as misérias, todas as aberrações, todas as opiniões políticas, todos os interesses sociais. E seria de desejar fosse o juiz capaz de reviver em si, para os compreender, cada um destes sentimentos (...). Justiça é compreensão: isto é, tomar em conjunto e adaptar os interesses opostos: a sociedade de hoje e a esperança de amanhã; as razões de quem a defende e as de quem a acusa".

É evidente que a decisão de cassar a liminar, ignorando os sólidos argumentos e dados concretos apresentados, representa um golpe não apenas à economia local, mas também à confiança da população no sistema judiciário. Quando o governo falha em proteger seus cidadãos durante calamidades, espera-se que o Judiciário atue como um bastião de justiça e razoabilidade. No entanto, neste caso, o Poder Judiciário parece ter desconsiderado o papel de compreender e equilibrar os diversos interesses envolvidos, conforme apontado por Calamandrei e Capelletti. A decisão de permitir o leilão, sem a devida fundamentação, ressalta uma desconexão entre as necessidades reais da população e as ações tomadas em seu nome.

Em momentos de crise, é imperativo que todos os poderes trabalhem juntos para mitigar os efeitos adversos e promover a justiça social. Ao invés disso, o que vimos foi um cenário onde interesses políticos e econômicos prevaleceram sobre a equidade e a transparência. A justiça, que deveria servir como um farol de esperança e proteção, tornou-se, neste caso, uma fonte de frustração e desamparo para os gaúchos. A ponte da Justiça, mencionada por Calamandrei, deveria ser um lugar onde as dores e esperanças se encontram e se reconciliam. Infelizmente, essa ponte, ao menos neste episódio, falhou em cumprir seu propósito essencial.

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[1] In, “Comentários ao Código de Processo Civil”, 1998, 8ª edição, Forense, pág. 25.

[2] In, “A Antecipação da Tutela Jurisdicional na Reforma do Código de Processo Civil”, RePro 81/204.

[3]  In, “Tratado da Petição Inicial”, 1999, 1ª edição, Ed. Bookseller, pág. 686.

 

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Nota: as visões expressas no artigo não são necessariamente aquelas do Instituto Mises Brasil.

Sobre o autor

Leonardo Corrêa

Advogado - LL.M pela University of Pennsylvania (EUA).

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