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A deflação provoca uma redistribuição arbitrária da riqueza?

25/04/2024

A deflação provoca uma redistribuição arbitrária da riqueza?

Em vídeo recente, Juan Ramón Rallo tratou do tema da deflação e fez uma extensiva crítica ao fenômeno deflacionário. Para Rallo, em um arranjo com coeficiente de reservas bancárias de 100%, tendências de liquidez da economia só são ajustadas via deflação de preços, isto é, via apreciação do poder de compra da unidade monetária. Nas palavras do economista espanhol, esse processo deflacionário provoca uma “redistribuição arbitrária de riqueza”.

Para evitar esse fenômeno, Rallo defende um sistema bancário livre, capaz de flutuar a oferta monetária pari passu flutuações na demanda por moeda. Isso traria “estabilidade de preços” e evitaria “arbitrariedades”.

A crítica: deflação é ruim

Rallo argumenta que uma economia com oferta monetária rígida, tal qual pretende adotar na Argentina o presidente Javier Milei, funcionaria mal. Uma economia com coeficiente de reservas bancárias de 100% provocaria o fenômeno da deflação estrutural, o que consiste em flutuações inesperadas no valor da moeda – nesse caso, para cima. Essas flutuações, por sua vez, provocariam redistribuição de riqueza entre os indivíduos sem qualquer relação com o valor que são capazes de gerar a terceiros.

Como qualquer mercadoria, se a oferta de moeda for rígida, variações na demanda por moeda são ajustadas pelo seu preço – no caso da moeda, seu preço é aquilo que ela consegue comprar em termos de bens e serviços. Assim, tendências de liquidez na economia, em que indivíduos buscam aumentar seus encaixes monetários, são ajustadas por apreciação no valor da unidade monetária: mais bens e serviços são necessários para trocar uma única unidade monetária.

Portanto, quando a demanda por moeda supera a oferta de moeda, há deflação inesperada de preços. Isso é negativo porque gera redistribuição arbitrária de riqueza. Empreendedores que oferecem bens e serviços que efetivamente satisfazem desejos e necessidades dos consumidores podem ser descapitalizados e ir à falência, enquanto empreendedores que ofertam bens e serviços que o mercado não deseja podem ser recapitalizados. Nas palavras de Rallo, a redistribuição de riqueza característica da deflação inesperada é “resultado de sorte”.

O processo deflacionário causaria uma grave crise econômica. Com o valor da moeda se apreciando, os agentes econômicos que adotarem uma posição longa em dinheiro ganham em detrimento daqueles que adotam uma posição curta em dinheiro. Assim, as pessoas aumentam cada vez mais sua demanda por moeda, postergando seus gastos, na medida em que têm a expectativa de que os preços seguirão caindo.

O processo deflacionário não pode seguir de maneira indefinida, pois as pessoas terão que, em algum momento, consumir bens e serviços. Além disso, a queda nos preços de bens e serviços significa queda nos preços dos insumos, o que cria oportunidades para empreendedores. Embora reconheça esse processo de ajuste, Rallo argumenta que, neste período de tempo, há uma crise econômica durante a qual não se está gerando riqueza na economia.

A solução: um sistema livre de “metas de inflação”

Rallo defende que, já que a deflação provocada por um arranjo com oferta monetária rígida causa uma redistribuição arbitrária da riqueza, o ideal seria adotar um sistema bancário livre que tenha liberdade de criar depósitos à vista.

Assim, se a demanda por moeda no conjunto da economia aumentar, seria possível que os agentes econômicos tenham mais dinheiro sem necessidade de deflação. Em uma palavra, a oferta monetária seria elástica e manteria estável o valor da moeda. Com isso, tendências de liquidez não provocariam uma redistribuição arbitrária de riqueza.

Nesse arranjo proposto por Rallo, os resultados de redistribuição de riqueza não têm origem monetária, isto é, não são provocados por flutuações no poder de compra de cada unidade monetária, mas têm origem real, nas decisões de produção e consumo dos agentes econômicos.

Antes de avançarmos, é necessário creditar a Rallo que em momento algum ele faz uma defesa do intervencionismo do governo na moeda. Ao contrário, Rallo considera que a exigência de um coeficiente de reservas de 100% é também uma intervenção monetária. Sua solução é a adoção de um sistema bancário livre. Não queremos, neste artigo, discutir se o melhor arranjo é o sistema bancário livre ou um sistema bancário com 100% de reservas. Nosso objetivo é apenas discutir os supostos efeitos negativos do processo deflacionário, que seriam provocados pela adoção de um sistema com 100% de reservas bancárias, conforme denunciado por Rallo.

Assim, no arranjo defendido por Rallo, haveria liberdade para que a oferta monetária crescesse e evitasse uma deflação com seus efeitos perniciosos. Em certa medida, essa solução se assemelha ao sistema de metas de inflação. O sistema de metas de inflação consiste em estabelecer uma determinada taxa anual de inflação como meta a ser alcançada pela política monetária, que será ora expansionista, ora restritiva, a depender do quão próximo da meta a inflação de preços medida por um determinado índice está.

Como Rallo não é um defensor do banco central, sua crença parece ser de que o sistema bancário livre será capaz de acertar o ritmo de expansão monetária em harmonia com variações na demanda por moeda. Os bancos teriam incentivos para expandir a oferta monetária e lucrar com a previsão correta sobre a demanda do público. Por outro lado, dado o risco que assumem de falir em casos de corridas bancárias, quando não tiverem reservas suficientes, os bancos seriam comedidos em sua política de oferta monetária. Assim, a competição entre os bancos em um sistema livre, sem banco central nem emprestador de última instância, faz com que o mercado seja capaz de ajustar a oferta à demanda, sem provocar alterações de origem monetária na estrutura relativa dos preços.

Os equívocos

Ao criticar a redistribuição de riqueza do processo deflacionário, Rallo cai na armadilha da neutralidade da moeda. Ele acredita que o processo de expansão da oferta monetária é capaz de cancelar variações na demanda por moeda e, assim, manter o valor da moeda estável, evitando redistribuições arbitrárias de riqueza. Rallo acredita que a moeda não só pode como deve ser neutra.

Ludwig von Mises ensina que a moeda só pode ser concebida em uma economia em que há mudanças. Se vivêssemos em uma economia sem mudanças, onde todos antecipam perfeitamente as condições futuras e não há qualquer incerteza, não haveria necessidade de se utilizar da moeda. Mas isso é impossível. Não apenas a economia muda, ela também provoca alterações nas decisões dos indivíduos sobre seus encaixes monetários, o que, por sua vez, causa novas alterações na economia. A moeda é a força motriz de novas mudanças e, nesse sentido, é considerada nas decisões dos agentes econômicos.

Rallo também ignora que o processo inflacionário é, ele próprio, causador de uma redistribuição da riqueza. Conforme ensina o efeito Cantillon, a moeda entra em um ponto específico da economia, nesse caso, pelo sistema bancário, e segue um caminho específico na economia. Esse processo provoca ganhadores, aqueles que recebem o dinheiro primeiro e o gastam antes que os preços sejam afetados pela maior demanda, e perdedores, aqueles que recebem o dinheiro por último, quando já há preços mais elevados.

Essa lógica é igual para um processo de criação de dinheiro em um sistema com padrão-ouro. Nesse caso, a moeda recém-criada entra na economia pelos mineradores de ouro. O mesmo vale para um sistema bancário livre com reservas fracionárias. Qualquer processo de aumento da oferta monetária será redistributivo de riqueza. A moeda não pode ser neutra.

Rallo acredita que as mudanças na riqueza relativa dos indivíduos provocadas por alterações na demanda por moeda podem ser perfeitamente contrabalançadas pelas mudanças causadas pelo aumento da oferta monetária. Rallo não compreende que esses são dois processos diferentes, com tendências diferentes de redistribuição de riqueza. Cada um desses processos segue seu próprio curso e perturba as condições sociais à sua própria maneira, afetando os preços dos bens e serviços em graus e momentos diferentes.

Rallo cai na armadilha de crer que novas unidades monetárias podem ser criadas na economia sem afetar a riqueza relativa dos indivíduos. Essa confusão de Rallo se dá precisamente por sua definição de inflação. Para Rallo, inflação é a perda do poder de compra da moeda. No entanto, a perda do poder de compra da moeda é uma consequência da expansão da oferta monetária. A expansão monetária, essa sim, é a definição mais adequada de inflação, que permite enxergar a causa da perda do poder de compra e não confundir consequência com causa.

Assim, Rallo, partindo de uma definição equivocada de inflação, se perde em acreditar que é possível criar dinheiro sem provocar inflação de preços e, mais importante, sem provocar redistribuição de riqueza. Rallo crê ser possível expandir a oferta monetária e fazer com que os preços relativos permaneçam inalterados quando houver variações na demanda por moeda.

Outra crítica de Rallo diz respeito aos efeitos do “entesouramento” de moeda e seus efeitos negativos sobre a atividade econômica. Por moeda entesourada, Rallo se refere a uma quantia de reserva de caixa além do que ele considera normal. Além do fato de que o conceito de normalidade de encaixes monetários é arbitrário, a moeda entesourada segue sendo moeda e exerce a mesma função que qualquer outra quantidade de reserva. Quem acumula uma reserva de caixa o faz por seus próprios motivos. Seus efeitos sobre a demanda por moeda não diferem porque a moeda entesourada é “normal” ou “anormal”.

Por fim, Rallo critica o processo deflacionário porque julga que seus resultados são arbitrários. Mas a definição de arbitrariedade, pode-se argumentar, é ela própria um julgamento de valor e, nesse sentido, não cabe ao economista.

Conforme discutimos, todo processo de mercado, inclusive aquele que altera a quantidade de moeda disponível na economia, provoca redistribuição de riqueza. O sistema de livre mercado premia aqueles que antecipam com sucesso as condições futuras do mercado, e isso inclui a moeda. A moeda é um bem econômico como qualquer outro e seu valor deveria ser determinado pelas forças de mercado – no arranjo atual, a oferta monetária é manipulada pelos bancos centrais. Não cabe qualquer julgamento de valor com relação à justiça ou arbitrariedade dos resultados dos fenômenos de mercado, inclusive aqueles relacionados à moeda.

Considerações finais

O sistema bancário livre com reservas fracionárias, em um arranjo que se espera ser semelhante ao sistema de metas de inflação, promove a expansão da oferta monetária e redistribui riqueza em favor daqueles que recebem o dinheiro recém-criado primeiro. Da mesma maneira em que há redistribuição de riqueza no fenômeno deflacionário, há redistribuição de riqueza no fenômeno inflacionário. A moeda não é neutra.

Ora, a pergunta que fazemos é a seguinte: por que o processo inflacionário, tal qual defendido por Rallo, provocaria uma redistribuição de riqueza menos arbitrária e mais justa do que o processo deflacionário? A resposta é simples: ele não o faz.

 

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Nota: as visões expressas no artigo não são necessariamente aquelas do Instituto Mises Brasil.

Sobre o autor

Samuel Vaz-Curado

É mestre em Economia pela Universidade Federal de Sergipe. Ex-aluno do Mises Brasil Winter School.

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