Para além da divisão do trabalho
Adam Smith, em seu livro "A Riqueza das Nações", publicado em 1776, estipula os princípios norteadores da ortodoxia econômica clássica, orientando o paradigma econômico inglês e limitadamente francês, já que a influência de Colbert é mais sentida neste país. Apesar de uma tradição mais voltada para o colbertismo e a fisiocracia, a economia clássica consegue penetrar nesse ambiente acadêmico francês por conta de nomes como Jean-Baptiste Say e Anne Robert Jacques Turgot.
Em "A Riqueza das Nações", Adam Smith apresenta uma análise abrangente sobre os princípios da economia, delineando os fundamentos do liberalismo econômico e fornecendo uma estrutura conceitual da Economia Política que influenciaria o advento de diversas correntes que utilizam do arcabouço teórico desenvolvido pelos Clássicos. David Ricardo, que surgiria no início do século XIX, por exemplo, seria, no ramo da economia, a inspiração de Karl Marx para estabelecer seus predicados básicos. Outro exemplo de escola que se inspirou nas ideias de Ricardo e Smith foi a posterior Escola Neoclássica, com Marshall e Walras.
Um dos princípios balizadores de Smith, em seu magnum opus, foi o conceito de divisão do trabalho, que estabelece uma relação direta entre a especialização dos indivíduos em áreas específicas da produção de bens e serviços e o aumento significativo da produtividade. Na obra “Princípios de Economia”, Carl Menger, um estudioso do arcabouço teórico desenvolvido por Smith, concorda com o fato de que a divisão progressiva do trabalho realmente aumentou a produtividade e, consequentemente, o bem-estar e a condição material humana. Porém, Menger não crê que a divisão progressiva do trabalho seja a razão de todos os progressos da produtividade, mas sim um fator importante dentre uma miríade de outros fatores igualmente importantes.
Menger então cita o exemplo de uma tribo indígena, que, por fatores endógenos, passa a se utilizar da divisão do trabalho. Agora, temos indivíduos caçadores, pescadores, agricultores, guerreiros, cuidadores, administradores e uma ampla gama de divisão de tarefas cada vez mais específicas no contexto tribal. Menger defende que, embora o ganho de produtividade, ou seja, a eficiência (os habitantes dessa tribo conseguirão mais recursos com menos esforço) decorrida da divisão do trabalho seja muito importante, ela não transformará a realidade material das condições da riqueza qualitativa dessa tribo.
Um rápido parêntese aqui para explicar e diferenciar o crescimento qualitativo e o crescimento quantitativo. O crescimento quantitativo refere-se ao aumento em termos de quantidade ou quantidade bruta. Em contextos econômicos, pode estar relacionado ao aumento da produção de bens e serviços, expansão da população, aumento do investimento financeiro ou qualquer outro indicador mensurável em termos numéricos. Por outro lado, o crescimento qualitativo refere-se a melhorias na qualidade, eficiência ou valor intrínseco de algo, em vez de um simples aumento em sua quantidade. No contexto econômico, o crescimento qualitativo pode se manifestar como melhorias na tecnologia, aprimoramento da educação, inovação em processos de produção ou o desenvolvimento de produtos mais avançados e sofisticados.
Vê-se, então, que recorrendo apenas à divisão do trabalho smithiana, apesar dos ganhos quantitativos e da melhoria das condições materiais dentro dos limites técnicos e tecnológicos, a tribo não angariou uma melhora qualitativa das condições materiais.
Menger destaca um dos pontos mais importantes em sua teoria, que seria aprimorada pelos seus alunos Eugen von Böhm-Bawerk e Friedrich Freiherr von Wieser posteriormente, desenvolvendo uma teoria que relaciona o bem-estar material com os bens de capital em uma economia e sua capacidade produtiva subjacente. Mas, na presente obra, a teoria mengeriana limita-se a denominar os bens de capital da posterior teoria bawerkiana como bens de ordem superior.
Menger postula:
Se um povo, em lugar de dedicar-se simplesmente a atividades mais primitivas - isto é, limitando-se apenas a juntar e utilizar os bens disponíveis de ordem inferior (nos estágios mais primitivos, em geral os bens de primeira e de segunda ordem) -, começar a trabalhar com bens de terceira e quarta ordem, ou de ordens superiores, e para atender às suas necessidades recorrer sempre ao processamento de bens de ordem cada vez mais elevada, sobretudo se aplicar uma boa divisão do trabalho, certamente chegará àquele aumento de bem-estar que Adam Smith atribui exclusivamente à divisão do trabalho.
Isso significa que, ao abandonar a comodidade de apenas processar bens de ordem inferior ou de consumir diretamente bens de primeira ordem, os agentes produtivos estabelecem cada vez mais nexos causais e teias intrincadas de relações entre bens de ordem superior e seus bens complementares subjacentes para com bens de primeira ordem.
Ou seja, a partir desses estabelecimentos cada vez mais longos de nexo causal entre bens de diferentes ordens, haverá uma tendência de desenvolvimento tecnológico, através do melhoramento da produção de bens de ordem superior. Isso não só cria a condição dos agentes produtivos de utilizarem cada vez mais tipos de bens para suprirem suas necessidades de bens de primeira ordem, mas cria uma interconexão tecnológica e produtiva entre as diferentes ordens de bens, promovendo um ambiente propício para o desenvolvimento tecnológico. Essa complexa interconexão tecnológica e produtiva entre as diferentes ordens de bens gera um ciclo de retroalimentação positiva. À medida que os agentes produtivos se dedicam a processar bens de ordem superior e aprimorar a eficiência na produção desses bens, ocorre uma melhoria na qualidade e na quantidade dos bens complementares subjacentes.
Em resumo, quanto mais complexa for a produção, envolvendo o processamento de bens de ordens superiores e a criação de nexos causais intrincados entre esses bens e seus complementares subjacentes, maior tende a ser o desenvolvimento tecnológico. Essa complexidade promove uma interconexão dinâmica entre diferentes estágios da cadeia produtiva, estimulando a inovação, a eficiência e a melhoria contínua na qualidade e na quantidade dos produtos. O resultado é um ciclo virtuoso que contribui para o avanço econômico e social, proporcionando maior diversidade de bens, aumento da produtividade e aprimoramento nas condições de vida da sociedade.
Para solidificar o entendimento dessa questão, a teoria mengeriana estabelece que uma sociedade primitiva é aquela que se ocupa exclusivamente da coleta de bens de primeira ordem e, no máximo, da transformação de bens de segunda ordem em bens de primeira ordem. Podemos observar isso nos grupos nômades de caçadores-coletores, onde o surgimento dos bens de primeira ordem constitui uma mera casualidade, ou seja, eles não possuem nenhuma influência no melhoramento e preparação desses bens, apenas utilizam da forma que a natureza os proporciona. Com o advento da agricultura pelos povos do Período Neolítico, podemos enxergar um encadeamento cada vez maior de nexos causais utilizados na produção e um melhoramento dos bens com ordens cada vez mais altas.
Agora, estabelecido o nexo causal de bens de ordem superior cada vez mais distantes do bem de primeira ordem, que é o verdadeiro proporcionador da mudança do estado de necessidade para o estado de satisfação através de sua utilidade extrínseca, esses encadeamentos do nexo causal proporcionarão um maior controle e direcionamento da produção e melhoramento dos bens.
Essa condição, direcionada através do desenvolvimento da cognição humana e de indivíduos estabelecendo conexões entre cadeias de nexos causais, está proporcionando, e proporcionará cada vez mais, o aprimoramento das condições materiais humanas, sempre dentro dos limites proporcionados pela Natureza, uma vez que o homem, por sua essência, não é criador, mas sim combinador de diferentes elementos e nexos causais dados para ele a partir do processo empírico. Tendo isso em vista, podemos inferir que, com o estabelecimento de bens de ordens superiores no processo produtivo, o homem passa a direcionar, de forma cada vez mais precisa, o desenvolvimento das condições materiais humanas.
Podemos enxergar esse movimento em Menger, que se dá pelo melhoramento de bens de ordem cada vez mais alta, e em Böhm-Bawerk, que se dá pelo método indireto de produção, encadeando processos distintos e bens de capital diversos.
Para continuar a leitura:
O erro fatal de Marx e Smith: o lucro não é deduzido do salário; o salário é que é deduzido do lucro
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Nota: as visões expressas no artigo não são necessariamente aquelas do Instituto Mises Brasil.
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