Política
A descentralização do poder: o que o Bitcoin, IA e as armas de fogo têm em comum
A descentralização do poder: o que o Bitcoin, IA e as armas de fogo têm em comum
Em sua obra “O Indivíduo Soberano”, publicada em 1997, William Rees-Mogg e James Dale Davidson apresentam um convincente argumento de que por diversas vezes ao longo da história, o poder dominante em vigor foi interrompido por novas tecnologias. Os avanços na agricultura fizeram com que as pessoas e as suas propriedades ficassem muitas vezes geograficamente estacionárias, tornando-as alvos fáceis para os “especialistas em violência” – os antecessores dos governos modernos – que naquela época eram tanto os saqueadores como os “protetores” contra o roubo. O estribo, a sela, a espora e o freio – quando combinados – tiveram efeito perturbador da mesma maneira, transferindo o poder da cavalaria pesada para um único cavaleiro armado. A Revolução da Pólvora perturbou a ordem feudal da época, reforçada naquela época pela Igreja Católica. Rees-Mogg e Davidson escrevem: “a Igreja tendia a transformar os seus próprios interesses econômicos em virtudes religiosas, ao mesmo tempo em que militava contra o desenvolvimento da produção industrial e da riqueza comercial independente, que estavam destinadas a desestabilizar o sistema feudal”. A imprensa perturbou a Igreja ainda mais: fazendo com que esta perdesse o monopólio da narrativa bíblica. O resultado foi uma grande perda de influência e poder, que deu lugar ao conceito moderno do Estado-nação.
Rees-Mogg e Davidson argumentam que o microprocessador irá inevitavelmente perturbar o Estado-nação da mesma forma que a imprensa perturbou a Cristandade alguns séculos atrás. A própria Internet (uma comunidade globalmente interconectada) e a criptografia de chave pública (que protege as comunicações e a propriedade do Bitcoin) são possibilitadas por microprocessadores.
O presente e o futuro
Uma grande frente de batalha pela descentralização é travada no fronte moeda. Desde o início do Bitcoin em 2009, temos sido capazes de realizar transações sem necessidade de permissão, sem fronteiras e (frequentemente) com uso de anonimato. Estados-nação, entretanto, não costumam ver com bons olhos qualquer desafio ao monopólio que detém sobre o dinheiro, e é certo que gastarão vastas quantias de dinheiro para garantir que não existam rivais monetários à sua altura. O Bitcoin serve como uma alternativa a essa armadilha, e justamente por isso está constantemente sob ataque de pessoas como políticos e a mídia, já a beira da ruína.
No entanto, para fazer transações em Bitcoin você precisa de mineradores. Sem dúvida, os agentes reguladores nos Estados Unidos e na Europa puderam observar que a China, ao proibir a mineração de Bitcoin em 2021, apenas ocasionou a migração do poder computacional daquele país para os Estados Unidos. Portanto, embora provavelmente desejassem proibi-lo completamente nos Estados Unidos e na Europa, eles sabem que, ao fazê-lo, estariam apenas abrindo mão do controle regulatório e das receitas fiscais dos mineradores de Bitcoin. Assim, por enquanto, nem mesmo Elizabeth Warren – a legisladora mais hostil ao Bitcoin em Washington – propõe banir totalmente o Bitcoin. Em vez disso, ela propõe expandir as regras de “conheça seu cliente” (KYC) para essencialmente todas as partes dentro do ecossistema Bitcoin, bem como desencorajar tecnologias de autocustódia e de aumento de privacidade.
O Bitcoin tem um importante ponto fraco de centralização, pelo menos por enquanto: o hardware. A Universidade de Cambridge produz relatórios periódicos sobre mineração de Bitcoin e comunica que, em termos de hardware, a esmagadora maioria dos mineradores de Bitcoin relatam usar um chip “ASIC” para minerar o algoritmo de hash SHA-256 do Bitcoin produzido pela Bitmain, sediada em Cingapura. Seus concorrentes, logo atrás, são a MicroBT e a Canaan. Independentemente de onde a Bitmain produz seus chips ASIC, o cenário ideal para a descentralização do Bitcoin seria que a produção de equipamentos de mineração ASIC (e a própria atividade de mineração) fosse dispersa pelo mundo para que nenhuma região específica pudesse ter uma vantagem definitiva, aproveitando o controle majoritário do poder de computação. O ideal seria que o equipamento de mineração ASIC fosse produzido (em escala e com alta qualidade) por mais fabricantes do que os que existem agora, especialmente em países que não estejam politicamente alinhados entre si, de modo que o conluio entre eles se tornasse cada vez mais improvável.
Uma segunda grande frente de batalha pela descentralização é travada no fronte da inteligência artificial (IA). Certa vez, participei de uma conferência na qual Peter Thiel palestrou. Ele disse algo muito próximo do seguinte (citado de memória): “Bitcoin é uma tecnologia que, na rede, favorece o indivíduo. A IA é uma tecnologia que, na rede, favorece o Estado”. É esta última tecnologia e o seu favorecimento ao Estado que enfatiza a importância de a colocar nas mãos do maior número possível de participantes, se quisermos construir um mundo verdadeiramente descentralizado.
Um risco para a descentralização da IA é compartilhado pelo Bitcoin: um potencial cenário futuro em que o hardware é monitorado e deve ser registrado conforme a lei. No caso do Bitcoin, isso significaria que os mineradores deveriam registrar seus chips ASIC. No caso da IA, isso poderia significar que até eu e você precisássemos registrar junto ao governo placas de vídeo (GPUs) acima de uma determinada capacidade (ou, no caso de software, que suas matrizes devessem ser registradas). Guillaume Verdon, o nome por trás do agora doxado pseudônimo @BasedBeffJesos, destacou este risco num podcast com Lex Fridman, argumentando que isto poderia “[impedir] o ecossistema de código aberto de prosperar… por ordem executiva, alegando que LLMs (abreviação para grandes modelos de linguagem) de código aberto são tecnologias de dupla utilização e que devem ser controladas pelo governo”.
Embora as ordens executivas certamente não sejam capazes de matar o Bitcoin (mas poderiam desencorajar algumas pessoas de usá-lo), requisitos de relatórios semelhantes para mineradores provavelmente teriam, até certo ponto, impacto no ecossistema de código aberto do Bitcoin.
Um terceiro grande campo de batalha que vale a pena destacar é Impressoras 3D, montadoras e outras ferramentas do “arsenal maker” (termo guarda-chuva utilizado para referir-se a equipamentos de fabricação artesanal construídos por indivíduos em vez de empresas especializadas). Esse movimento “maker” sugere uma solução futura para o problema das tendências de centralização para Bitcoin e IA.
Imagine um mundo com impressoras 3D e ferramentas semelhantes nas casas da maioria das pessoas. Se você pudesse imprimir seus próprios mineradores ASIC e GPUs de alta qualidade para executar grandes modelos de linguagem (LLMs), a descentralização estaria anos-luz à frente.
Podemos ignorar por um momento o cenário futurista em que impressoras 3D e outras ferramentas “maker” são usadas para produzir hardware para Bitcoin e aplicações de IA. Mesmo nos dias atuais, pelo menos um governo já encara a impressora 3D com o mesmo olhar cético que a Igreja Católica destinava à imprensa nos séculos XV e XVI. Caso o projeto de Lei Estadual A8132, do estado de Nova Iorque seja aprovado, exigiria verificações de antecedentes criminais, com impressões digitais enviadas ao FBI para a compra de impressoras 3D “capazes de criar armas de fogo”. É razoável esperar que vários governos, temendo a perda do seu próprio poder centralizado, continuem a impor requisitos de registro e de “KYC” para manter o controle das ferramentas do espaço real que facilitam a descentralização no ciberespaço.
Nota: A União Soviética tinha controles semelhantes sobre produtos aparentemente inofensivos, como livros, fotocopiadoras, aparelhos de fax – tudo isso facilitou a disseminação de informações e, portanto, ameaçou o regime. Há registros de esforços semelhantes para controlar a venda de tecidos que poderiam ser usados para construir balões de ar quente na Alemanha Oriental, visando impedir que as pessoas fugissem para a Alemanha Ocidental. (Veja o filme americano Dramática travessia (1982) e o filme alemão Ventos de liberdade (2018), ambos baseados em fatos reais).
A produção localizada, seja em casa ou num laboratório de fabricação comunitário, também conhecido como “fab lab”, provavelmente sofrerá crescente hostilidade por parte de vários governos, à medida que as impressoras 3D e outras ferramentas maker forem capazes de produzir produtos eletrônicos ainda mais sofisticados. Mas, pelo menos por enquanto, os fab labs estão crescendo exponencialmente em número, com mais de 2.000 deles espalhados pelo mundo até agora, muitos inclusive recebendo alguma forma de apoio governamental. A propósito, esses fabulosos laboratórios não levam em conta os muitos outros laboratórios personalizados nas casas das pessoas.
Neil Gershenfeld, do Centro de Bits e Átomos do MIT, tenta compreender como será o mundo quando quase qualquer pessoa puder fazer quase tudo e quando as máquinas puderem fabricar outras máquinas, mesmo máquinas mais sofisticadas do que elas, e muitas vezes com materiais de origem local.
Gershenfeld argumenta em um podcast que a fabricação localizada não é escalável, sendo primariamente destinada ao uso pessoal e não visando fins comerciais. Mas quando milhares de pessoas ao redor do mundo aprenderem como produzir localmente seu próprio equipamento de mineração de Bitcoin impresso em 3D, montado em casa e depois combinar seu poder de computação individual com outros usuários em uma pool de mineração, com coordenação simultânea através da rede Tor… então o mundo começará a parecer muito mais descentralizado.
Conclusão
Bitcoin, IA, as armas de fogo e impressoras 3D compartilham um tema comum de descentralização e potencial disruptivo para o atual conceito de Estado-nação. Como os chips de mineração ASIC utilizados pelo Bitcoin e as GPUs usadas para executar LLMs existem no espaço real, onde os Estados-nação são mais dominantes, os governos podem se tornar cada vez mais hostis a esse tipo de hardware: exigindo verificações de antecedentes criminais, KYC, entre outros. Outras ferramentas do “arsenal maker” poderiam ser utilizadas agora ou no futuro para a produção localizada (seja em casa ou nos chamados “fab labs”), permitindo um mundo muito mais descentralizado.
Entretanto, no plano político, as verificações de antecedentes criminais e os requisitos de registro para impressoras 3D e outras ferramentas “maker”, como as propostas no Projeto de Lei A8132 do estado de Nova Iorque, merecem um olhar cético e uma forte resistência política.
*Este artigo foi originalmente publicado em inglês por Bitcoin Magazine.
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Nota: as visões expressas no artigo não são necessariamente aquelas do Instituto Mises Brasil.
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