Esse site usa cookies e dados pessoais de acordo com os nossos Termos de Uso e Política de Privacidade e, ao continuar navegando neste site, você concorda com suas condições.

< Artigos

Economia

Como a regulação é capaz de encurralar o consumidor – o caso do setor elétrico

28/02/2024

Como a regulação é capaz de encurralar o consumidor – o caso do setor elétrico

Nos últimos anos, o modo como a sociedade se relaciona com a eletricidade passou por transformações irreversíveis. Impossível não notar a grande quantidade de residências que optaram pela instalação de painéis fotovoltaicos nos telhados de suas casas para aderir à política conhecida como geração distribuída.

Lembro-me de estar cursando engenharia elétrica, lá pelos idos de 2010, quando a geração de energia por meio de painéis fotovoltaicos era algo distante da realidade. Baixa eficiência, altos custos, imprevisibilidade na geração e necessidade de grandes áreas para instalação eram os dilemas que faziam com que o Brasil preferisse grandes usinas hidrelétricas, termelétricas e até mesmo nucleares. Desde então, muita coisa mudou e a geração distribuída tomou proporções inimagináveis.

Essa mudança pode ser explicada percorrendo as diversas camadas de intervenção que foram impostas ao mercado de energia elétrica, gerando altas tarifas e encurralado os consumidores em uma situação de escolha única.

Em sua teoria do intervencionismo, Ludwig von Mises explica que, ao implementar uma intervenção no mercado, o governo não alcança o objetivo pretendido, o que resulta em novos custos e barreiras ao acesso de produtos e serviços. A solução é realizar uma nova intervenção, cujo efeito será o mesmo, e assim progressivamente são adicionadas camadas de regulamentações ao mercado. São diversos os exemplos do resultado dessa dinâmica Estado/mercado e o setor de energia elétrica brasileiro tem se mostrado um laboratório interessante.

O consumidor aqui sob análise é aquele conhecido como cativo e pertence ao chamado Ambiente de Contratação Regulada – ACR (existem os livres, que sofrem um pouco menos de intervenções). Para listar as principais intervenções e as que mais têm peso nas tarifas do consumidor cativo, elenco as seguintes:

  • Monopólio da empresa detentora da concessão para explorar determinada região geográfica do país, o que não permite a escolha do fornecedor com melhores preços;
  • Obrigatoriedade de contratação de longo prazo da energia com preços e quantidade fixos corrigidos pela inflação. Como os custos são repassados aos consumidores, o preço da energia se torna elevado por causa da correção monetária e da redução de preços de novas tecnologias no sistema, impedindo o acesso a preços módicos. Em média, um consumidor do ACR paga entre dois e cinco vezes mais caro que um consumidor do ACL;
  • Tarifa paga pelos consumidores é definida periodicamente pela ANEEL a fim de cobrir todos os custos (energia e infraestrutura). A forma estabelecida impede o repasse de custos em situações não previstas pelo regulador, exigindo empréstimos bancários para cobrir os déficits e pagos (futuramente) na tarifa. Duas situações recentes explicam a problemática: em 2020, em razão das medidas para combater a pandemia da covid-19, e em 2021, devido à situação de escassez hídrica, que quase levou a um racionamento de energia. Nessas duas situações, os consumidores se viram obrigados a arcar com um empréstimo de R$ 20,3 bilhões;
  • Financiamento de políticas públicas. Em 2023 foram pagos, por meio da tarifa, R$ 37,5 bilhões. O recurso serve para subsidiar as fontes de energia renováveis, financiar infraestrutura e combustível para consumidores isolados, subsidiar consumidores com baixa renda, entre outros.

Cada uma dessas camadas de intervenção exerce forte pressão sobre os consumidores e, direta ou indiretamente, são refletidas em novos custos. Estima-se que esse conjunto de intervenções representa 45% do valor da tarifa dos consumidores cativos. Em valores financeiros, uma família com cinco pessoas gasta em média R$ 9.700 por ano (média Sudeste). No cenário sem intervenção, o custo cairia para R$ 5.400. Isso representa cerca de 4% do PIB per capita brasileiro. Em alguns estados do Nordeste, esse percentual chega a 7%. É o maior valor entre os países da OCDE.

Com uma alta tarifa, a fuga é inevitável. Como não se pode trocar de fornecedor, não sobram muitas opções. Investir em geração própria é a resposta natural para fugir da ineficiência dos serviços oferecidos pelo Estado. Porém, não se esperava um empurrãozinho do regulador, ou melhor, um verdadeiro pontapé.

Tudo começou em 2012, quando a Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) criou o então chamado sistema de compensação de energia elétrica. A ideia era buscar incentivos para a expansão de fontes renováveis, notadamente para fazer frente aos diversos compromissos ambientais. Nesse sistema, a energia produzida e injetada na rede da concessionária gera um crédito utilizado na compensação da energia consumida futuramente.

A vida real exige equilíbrio ininterrupto entre consumo e geração. Para usufruir da energia produzida de painéis fotovoltaicos, o cidadão teria que programar suas atividades de acordo com a condição do clima. Se uma nuvem cobre o telhado, lá se vai a energia elétrica. Para evitar essa situação, é importante que outra fonte de energia compense as intempéries. Quanto custa prestar esse serviço? Existe recurso suficiente? Como e quem coordena essa dinâmica? Todas essas questões foram ignoradas ao criar o sistema de compensação de energia elétrica.

Se os painéis forem corretamente projetados, os consumidores conseguem abater todo o consumo e reduzir em média 90% do valor pago às concessionárias de energia (paga-se apenas uma taxa mínima quando o consumo é totalmente compensado). O payback de um projeto gira em torno de quatro anos, levando-se em conta que a vida útil de um sistema chega a 25 anos. O ganho é bastante vantajoso.

Para se ter uma ideia, em janeiro de 2014 havia apenas 61 unidades de geração distribuída em 40 municípios do Brasil. Em janeiro de 2024, 10 anos depois, esse número ultrapassou 2,3 milhões de unidades, espalhadas em 5.547 municípios.

Em 2019, a ANEEL até tentou equalizar os incentivos, mas foi engolida por diversas organizações que conseguiram a manutenção dos benefícios no Congresso Nacional. A Lei 14.300, publicada em 6 de janeiro de 2022, garantiu a continuidade do sistema de compensação até 2045 e criou uma regra de transição para os novos entrantes, que retira progressivamente os incentivos.

É difícil não pensar que − se não existissem aquelas quatro camadas de intervenção − a tarifa seria muito menor e, consequentemente, a opção de investir também seria outra. Analisando o payback, por exemplo, aqueles quatro anos passariam para nove. Nesse caso, o cidadão investiria na ampliação de seu negócio ou na qualidade de vida de sua família, e não em placas fotovoltaicas.

As críticas à política de incentivos se dão pelo fato de, ao instalar um painel fotovoltaico, aderindo ao sistema de compensação, grande parcela dos custos é transferida para os consumidores que não o fizeram. Desse modo, à medida que aumenta o número de consumidores dentro do sistema de compensação, a tarifa fica mais cara para os demais. Assim, amplia-se o incentivo para a adesão de novos consumidores ao sistema de compensação. Deu para imaginar onde isso vai parar? No limite, quem não tem condições para comprar painéis fotovoltaicos, acaba pagando a conta. Segundo dados da ANEEL, essa conta foi R$ 7,1 bilhões somente em 2023. Já se pode esperar uma próxima camada de intervenção.

Nos ensinamentos de Mises, a intervenção tem tempo de vida finito, o que se deve a três motivos: (i) modelos restritivos reduzem a produção; (ii) interferência não alcança os objetivos; (iii) confisco dos excedentes. Mises afirma ainda que o fim do intervencionismo é inevitável, e alerta que “os homens terão de escolher entre economia de mercado e o socialismo”.

Quanto aos consumidores de energia, a próxima camada de intervenção parece estar na contramão da economia de mercado. A solução ventilada até o momento tem sido a divisão dos custos com os consumidores hoje pertencentes ao ambiente de contratação livre (ACL). Esses consumidores são submetidos a preços menores, como vimos, especialmente pela liberdade de contratarem energia de qualquer fornecedor. Coincidência ou não, menos intervenções, menores preços.

O atalho que se pretende pegar é de aumentar o número de pagadores daqueles custos gerados pela frustração das intervenções passadas. Caso implementada, poderá provocar a sensação de redução de preços para os consumidores cativos, porém será passageira. A história nos conta que em breve novas políticas de incentivos serão adotadas e a tarifa aumentará novamente.

Do lado dos que irão assumir o custo, é possível imaginar alguns impactos. Como são grandes consumidores, espera-se, por exemplo, a perda de competitividade na indústria, que pode ameaçar a permanência de importantes empresas no país, acentuando desemprego e majorando preços de produtos. Quando isso acontecer, vamos novamente encarar o dilema: economia de mercado ou socialismo?

_____________________________________________

Nota: as visões expressas no artigo não são necessariamente aquelas do Instituto Mises Brasil.

Sobre o autor

Paulo André Sehn da Silva

É mestre em engenharia elétrica pela UFSC e aluno de pós-graduação do curso de Direito, Ciências Políticas e Liberalismo no Instituto Mises Brasil. Ocupa o cargo de Diretor de Energia na ABIAPE (Associação Brasileira de Investidores em Autoprodução de Energia).

Comentários (4)

Deixe seu comentário

Há campos obrigatórios a serem preenchidos!