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Milei não é "Orban & Cia"

20/02/2024

Milei não é "Orban & Cia"

A vitória de Javier Milei nas eleições presidenciais argentinas desencadeou uma dupla reação. Das fileiras da esquerda, é considerado um triunfo da ultradireita, um conceito de geometria variável, extensível àqueles que ousam questionar as ideias e a agenda progressista; da chamada direita alternativa, sobretudo na Europa, este triunfo é visto como um sucesso das suas propostas.

Ambas as teses são errôneas ou, para ser mais preciso, implicam uma simplificação ou uma caricatura do pensamento e do programa do novo presidente da Argentina, que estão enquadrados na tradição liberal. Por isso, surpreende a tentativa de colocá-lo na órbita do pensamento reacionário, autoritário ou fascista.

De entrada, Milei não é um conservador, mas um anarcocapitalista no terreno teórico – a desejabilidade de um mundo sem Estado – transmutado em um liberal clássico diante de uma restrição básica imposta pela realidade: a impossibilidade de alcançar esse objetivo. É por isso que seu objetivo é mais humilde; ou seja, a redução do tamanho e do poder do Estado para aumentar a esfera de autonomia e liberdade dos indivíduos. Essa visão se reflete em sua suposição pública da concepção de liberalismo cunhada por seu mentor Alberto Benegas Lynch (h): "O respeito irrestrito aos projetos de vida dos outros, baseado no princípio da não agressão e na defesa do direito à vida, à liberdade e à propriedade".

As referências intelectuais de Milei não se situam no domínio da direita alternativa de autores como Patrick Deneen, Yoram Hazony, R.R. Reno ou Alain de Benoist, para citar alguns ideólogos emblemáticos desse movimento. Nem o seu programa é nada parecido com o de gente como Orbán, Wilders ou Le Pen. Faz parte do legado filosófico que vai de Juan Bautista Alberdi, que inspirou a Constituição liberal de 1853, ao já citado Alberto Benegas Lynch (h), na Argentina, e ao de pensadores como Mises, Hayek, Friedman, Ayn Rand e Rothbard. Isso é verdade e, para ser categórico, é indiscutível. Sua única proximidade com a alt-right, como ele mesmo afirmou em uma longa entrevista à revista The Economist, é tática: aqui e agora, o inimigo é o socialismo e ele deve ser parado e empurrado para trás.

Dentro desse arcabouço doutrinário, Milei defende o direito de cada indivíduo de viver de acordo com seus valores, de perseguir os fins que julgar adequados, desde que não viole os direitos dos outros. É claro que todo indivíduo adulto e racional deve ser responsável por seus atos, aceitar os custos de suas decisões e não tentar transferi-los para outros ou para o Estado. É por isso que, exceto no caso do aborto (Milei acredita corretamente que não há uma posição unânime entre os liberais sobre essa questão), ele defende a total liberdade de escolha pessoal, desde a mudança de sexo, por exemplo, até o tráfico de órgãos. Isso não tem nada a ver com a ideologia da alt-right.

Na esfera econômica, o presidente argentino propõe um projeto e um plano para implementá-lo, ajustados à situação argentina, muito semelhantes aos de Reagan ou Thatcher nos anos 80 do século passado: no nível macro, disciplina monetária para acabar com a inflação e disciplina fiscal para eliminar o déficit público reduzindo os gastos do Estado; no nível micro, um plano abrangente de liberalização do mercado, privatização, abertura externa e cortes de impostos com o objetivo de aumentar o potencial de crescimento e a produtividade. Ele também não é um nacionalista na economia, mas um defensor do livre comércio e da imigração.

Da esquerda, afirma-se que o pacote de reformas aprovado na forma do Decreto de Necessidade e Urgência (DNU) mostra os instintos autoritários de Milei. Trata-se de um total desrespeito à Constituição argentina. O artigo 93, parágrafo 3º, autoriza o Poder Público a utilizar esse regulamento, que tem força de lei desde sua aprovação pelo Executivo, desde que não afete matéria penal, tributária, eleitoral ou partidária. Nenhum desses problemas é afetado pelo DNU. Além disso, o Parlamento pode revogar a sua validade se a maioria das suas duas câmaras votar contra.

Milei é populista? Não, mas para responder a essa pergunta é fundamental entender qual tem sido sua estratégia eleitoral. Por um lado, ele estabeleceu clara e enfaticamente um programa liberal ortodoxo de ruptura com o estatismo; por outro lado, apelou diretamente aos cidadãos, curto-circuitando a mídia e as elites corporativistas que dominaram a cena pública argentina, destacando como elas se beneficiaram por décadas do sistema vigente às custas da maioria.

Em outras palavras, tirou o liberalismo de sua torre de marfim minoritária e o transformou em um projeto atraente de mudança para o eleitor médio. Daí, a acusação de populismo feita contra um líder cujas ideias, como se demonstrou, estão nos antípodas dessa doutrina; confusão interesseira de substância com forma.

A principal lição de Milei é a capacidade de transformar o liberalismo em uma plataforma vencedora, e quem tem que tomar nota disso não é a direita alternativa, cuja doutrina não coincide, a não ser no antissocialismo, com a do líder argentino, mas a centro-direita clássica que abandonou sua identidade liberal e não é capaz de articular uma alternativa ao coletivismo vigente.

 

*Este artigo foi originalmente publicado em Instituto von Mises Barcelona.

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Nota: as visões expressas no artigo não são necessariamente aquelas do Instituto Mises Brasil.

Sobre o autor

Lourenço Bernaldo de Quirós

Vice-presidente do Instituto de Mises Barcelona.

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