O que o Estado é e o que o Estado não é
Nota do Editor:
O artigo a seguir foi extraído dos dois primeiros capítulos do livro A Anatomia do Estado, de Murray N. Rothbard.
Com base neste livro, o Instituto Mises Brasil promove live hoje em seu Instagram, a partir das 19h, com participação do nosso Diretor Executivo Adriano Paranaíba e os professores da Pós-Graduação em Escola Austríaca, Fernanda Guardian e Sergio Alberich;
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O Que o Estado Não É
O estado é quase universalmente considerado uma instituição de serviço social. Alguns teóricos veneram o estado como sendo a apoteose da sociedade; outros consideram-no uma organização afável, embora muitas vezes ineficiente, que tem o intuito de alcançar objetivos sociais. Porém quase todos o consideram um meio necessário para se atingir os objetivos da humanidade, um meio a ser usado contra o “setor privado” e que frequentemente ganha essa disputa pelos recursos. Com o advento da democracia, a identificação do estado com a sociedade foi redobrada ao ponto de ser comum ouvir a vocalização de sentimentos que violam quase todos os princípios da razão e do senso comum, tais como: “nós somos o governo” ou “nós somos o estado”.
O termo coletivo útil “nós” permite lançar uma camuflagem ideológica sobre a realidade da vida política. Se “nós somos o estado”, então qualquer coisa que o estado faça a um indivíduo é não somente justo e não tirânico, como também “voluntário” da parte do respectivo indivíduo. Se o estado incorre numa dívida pública que tem de ser paga através da cobrança de impostos sobre um grupo para benefício de outro, a realidade deste fardo é obscurecida pela afirmação de que “devemos a nós mesmos” (ou “a nossa dívida tem de ser paga”); se o estado recruta um homem, ou o põe na prisão por opinião dissidente, então ele está “fazendo isso a si mesmo” — e, como tal, não ocorreu nada de lamentável.
Nesta mesma linha de raciocínio, os judeus assassinados pelo governo nazista não foram mortos; pelo contrário, devem ter “cometido suicídio”, uma vez que eles eram o governo (que foi eleito democraticamente) e, como tal, qualquer coisa que o governo lhes tenha feito foi voluntário da sua parte. Não seria necessário insistir mais neste ponto; no entanto, a esmagadora maioria das pessoas aceita esta ideia enganosa em maior ou menor grau.
Devemos, portanto, enfatizar a ideia de que “nós” não somos o estado; o governo não somos “nós”. O estado não “representa” de nenhuma forma concreta a maioria das pessoas1. Mas, mesmo que o fizesse, mesmo que 70% das pessoas decidissem assassinar os restantes 30%, isso ainda assim seria um homicídio em massa e não um suicídio voluntário por parte da minoria chacinada2. Não se pode permitir que nenhuma metáfora organicista, nenhuma banalidade irrelevante, obscureça este fato essencial.
Se, então, o estado não somos “nós”, se ele não é a “família humana” se reunindo para decidir sobre os problemas mútuos, se ele não é uma reunião fraterna ou clube social, o que é afinal? Em poucas palavras, o estado é a organização social que visa a manter o monopólio do uso da força e da violência em uma determinada área territorial; especificamente, é a única organização da sociedade que obtém a sua receita não pela contribuição voluntária ou pelo pagamento de serviços fornecidos mas sim por meio da coerção.
Enquanto os outros indivíduos ou instituições obtêm o seu rendimento por meio da produção de bens e serviços e da venda voluntária e pacífica desses bens e serviços ao próximo, o estado obtém o seu rendimento através do uso da coerção; isto é, pelo uso e pela ameaça de prisão e pelo uso das armas3. Depois de usar a força e a violência para obter a sua receita, o estado geralmente passa a regular e a ditar as outras ações dos seus súditos. Poderíamos pensar que a simples observação de todos os estados ao longo da história e de todo o globo seria prova suficiente para esta afirmação; mas o miasma do mito incrustou-se na atividade do estado há tanto tempo, que se torna necessária uma elaboração.
O Que o Estado É
O ser humano nasce indefeso e, como tal, precisa utilizar a sua mente para aprender a como obter os recursos que a natureza lhe fornece e a como transformá-los (por exemplo, através do investimento em “capital”) em objeto e em locais de modo que possam ser utilizados para a satisfação das suas necessidades e para a melhoria do seu padrão de vida. A única forma por meio da qual o ser humano pode fazer isto é através do uso da sua mente e da sua energia para transformar os recursos (“produção”) e da troca destes produtos por produtos criados pelos outros. O ser humano descobriu que, por meio do processo de troca mútua e voluntária (comércio), a produtividade — e, logo, o padrão de vida de todos os participantes desta troca — pode aumentar significativamente. Portanto, o único caminho “natural” para o ser humano sobreviver e alcançar a prosperidade é utilizando sua mente e energia para se envolver no processo de produção-e-troca. Ele realiza isto, primeiro, encontrando recursos naturais, segundo, transformando-os (“misturando seu trabalho a eles”, tal como disse John Locke), fazendo deles a sua propriedade individual, e depois trocando esta propriedade pela propriedade de outros que foi obtida de forma semelhante.
O caminho social ditado pelas exigências da natureza humana, portanto, é o caminho dos “direitos de propriedade” e do “livre mercado” de doações ou trocas de tais direitos. Ao longo deste caminho, o ser humano aprendeu a evitar os métodos “selvagens” da luta pelos recursos escassos — de forma que A pudesse apenas adquiri-los à custa de B —, e, ao invés disso, aprendeu a multiplicar imensamente esses recursos por meio do processo harmonioso e pacífico da produção e troca.
O grande sociólogo alemão Franz Oppenheimer apontou para o fato de que existem duas formas mutuamente exclusivas de adquirir riqueza: a primeira, a forma referida acima, de produção e troca, ele chamou de “meio econômico”. A outra forma é mais simples, na medida em que não requer produtividade; é a forma em que se confisca os bens e serviços do outro através do uso da força e da violência. É o método do confisco unilateral, do roubo da propriedade dos outros. A este método Oppenheimer rotulou de “o meio político” de aquisição de riqueza. Deve estar claro que o uso pacífico da razão e da energia na produção é o caminho “natural” para o homem: são os meios para a sua sobrevivência e prosperidade nesta terra. Deve estar igualmente claro que o meio coercivo, explorador, é contrário à lei natural; é parasítico, pois em vez de adicionar à produção, apenas subtrai.
O “meio político” desvia a produção para um indivíduo — ou grupo de indivíduos — parasita e destrutivo; e este desvio não só subtrai da quantidade produzida como também reduz o incentivo do produtor para produzir além de sua própria subsistência. No longo prazo, o ladrão destrói a sua própria subsistência ao diminuir ou eliminar a fonte do seu próprio suprimento. Mas não só isso: mesmo no curto prazo, o predador age contrariamente à sua natureza como ser humano.
Estamos agora em uma posição que nos permite responder mais satisfatoriamente à questão: o que é o estado? O estado, nas palavras de Oppenheimer, é “a organização dos meios políticos”; é a sistematização do processo predatório sobre um determinado território4. Pois o crime é, no máximo, esporádico e incerto; já o parasitismo é efêmero e a coerciva ligação parasítica pode ser cortada a qualquer momento por meio da resistência das vítimas. O estado, no entanto, providencia um meio legal, ordeiro e sistemático para a depredação da propriedade privada; ele torna certa, segura e relativamente “pacífica” a vida da casta parasita na sociedade5.
Dado que a produção tem sempre de preceder qualquer depredação, conclui-se que o livre mercado é anterior ao estado. O estado nunca foi criado por um “contrato social”; ele sempre nasceu da conquista e da exploração. O paradigma clássico é aquele de uma tribo conquistadora que resolveu fazer uma pausa no seu método — testado e aprovado pelo tempo — de pilhagem e assassinato das tribos conquistadas ao perceber que a duração do saque seria mais longa e segura — e a situação mais agradável — se ela permitisse que a tribo conquistada continuasse vivendo e produzindo, com a única condição de que os conquistadores agora assumiriam a condição de governantes, exigindo um tributo anual constante6.
Um dos métodos de nascimento de um estado pode ser ilustrado como se segue: nas colinas da “Ruritânia do Sul”, um grupo de bandidos organiza-se de modo a obter o controle físico de um determinado território.
Cumprida a missão, o chefe dos bandidos autoproclama-se “Rei do estado soberano e independente da Ruritânia do Sul”. E se ele e os seus homens tiverem a força para manter este domínio durante o tempo suficiente, pasmem!, um novo estado acabou de se juntar à “família das nações”, e aqueles que antes eram meros líderes de bandidos acabaram se transformando na nobreza legítima do reino.
Notas:
1. Não é o objetivo deste trabalho desenvolver os inúmeros problemas e enganos da “democracia”. É o suficiente dizer que o verdadeiro agente de um indivíduo, ou “representante”, está sempre sujeito às ordens desse mesmo indivíduo, pode ser demitido a qualquer momento e não pode agir em contrário aos interesses ou desejos do seu chefe. Obviamente, o “representante” numa democracia nunca poderá satisfazer estas funções de agente, as únicas conformes com uma sociedade livre.
2. Os sociais-democratas respondem muitas vezes que a democracia — a escolha majoritária dos governantes — implica logicamente que a maioria tem de deixar determinado grau de liberdade à minoria, pois a minoria pode um dia tornar-se a maioria. Aparte de outras falhas, este argumento obviamente não se mantém onde a minoria não se pode tornar a maioria, por exemplo, quando a minoria pertence a um grupo étnico ou racial diferente da maioria.
3 Joseph A. Schumpeter, Capitalism, Socialism, and Democracy (Capitalismo, Socialismo e Democracia) (New York: Harper and Bros., 1942), p. 198.
A fricção e o antagonismo entre a esfera privada e a pública foi intensificada desde o princípio pelo fato de que. o estado tem vivido do rendimento que tem sido produzido na esfera privada com propósitos privados e que tem que ser desviado desses propósitos através da força política. A teoria que interpreta os impostos em analogia à filiação de um clube ou à aquisição do serviço de, digamos, um médico só prova quão removida se encontra esta parte das ciências sociais dos hábitos mentais científicos.
Ver também Murray N. Rothbard, “The Fallacy of the ‘Public Sector’”, New Individualist Review (Summer, 1961): 3ff.
4 Franz Oppenheimer, The State (New York: Vanguard Press, 1926) p. 24-27:
Existem duas formas fundamentalmente opostas através das quais o homem, em necessidade, é impelido a obter os meios necessários para a satisfação dos seus desejos. São elas o trabalho e o furto, o próprio trabalho e a apropriação forçosa do trabalho dos outros. Eu proponho, na discussão que se segue, chamar ao trabalho próprio e à equivalente troca do trabalho próprio pelo trabalho dos outros, de “meio econômico” para a satisfação das necessidades enquanto a apropriação unilateral do trabalho dos outros será chamada de “meio político”. O estado é a organização dos meios políticos. Como tal, nenhum estado pode existir enquanto os meios econômicos não criaram um definido número de objetos para a satisfação das necessidades, objetos que são passíveis de ser levados ou apropriados por roubo bélico.
5 Albert Jay Nock escreve de forma clara que:
o estado reivindica e exercita o monopólio do crime. Ele proíbe o homicídio privado mas ele mesmo organiza o assassínio numa escala colossal. Ele pune o roubo privado mas ele próprio deita as suas mãos sem escrúpulos a tudo o que ele quer, seja propriedade dos seus cidadãos seja de estrangeiros.
Nock, On Doing the Right Thing, and Other Essays (New York: Harper and Bros., 1929), p.143
6 Oppenheimer, The State, p.15:
O que é, então, o estado como conceito sociológico? O estado, na sua verdadeira gênese, é uma instituição social forçada por um grupo de homens vitoriosos sobre um grupo vencido, com o propósito singular de domínio do grupo vencido pelo grupo de homens que os venceram, assegurando-se contra a revolta interna e de ataques externos. Teleologicamente, este domínio não possuía qualquer outro propósito senão o da exploração econômica dos vencidos pelos vencedores.
E de Jouvenel escreveu: “o estado é na sua essência o resultado dos sucessos alcançados por um grupo de bandidos que se impôs a uma sociedade gentil e pacífica”. Bertrand de Jouvenel, On Power (New York: Viking Press, 1949) p.100-101.
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