Economia
Irresponsabilidade monetária e inflação acima da meta - eis o principal risco de curto prazo
Felizmente, ainda dá tempo de reverter
Irresponsabilidade monetária e inflação acima da meta - eis o principal risco de curto prazo
Felizmente, ainda dá tempo de reverter
A forte entrada de recursos de estrangeiros nas últimas semanas trouxe alívio ao dólar, que caiu de R$ 5,78 para ao redor de R$ 5,05 — muito embora a derrocada do dólar após a eleição de Joe Biden seja um fenômeno mundial; o índice DXY regrediu a valores do início de 2015.
O mercado parece dar um voto de confiança às declarações recentes de Paulo Guedes, de Rodrigo Maia e do presidente Jair Bolsonaro de que o teto de gastos para o ano de 2021 será cumprido.
O investidor está correto ao se guiar prioritariamente pela questão dos gastos públicos, pois é a trajetória de endividamento do governo que determinará se o Brasil caminhará para a prosperidade ou para o calote.
A uníssona comunicação dos principais agentes políticos, raríssima neste governo, gerou expectativas mais animadoras. Mas sempre há o risco de o discurso mudar.
O risco maior, porém, é a carestia, que já voltou.
Para não nos acusarem de "engenheiros de obra pronta", vale ressaltar que este Instituto, ainda em fevereiro de 2020 — ou seja, antes do início da pandemia de Covid-19 —, já alertava para este risco.
Com o início da pandemia, muitos especialistas passaram a alertar que o "risco" seria de deflação. Com efeito, ainda em junho, "especialistas" diziam que o IPCA de 2020 seria de risível 1,53%.
Este Instituto, no entanto, seguiu alertando para o risco inflacionário em maio, junho, setembro e outubro. O fato é que, após dois meses de queda (abril e maio), o IPCA passou a subir rapidamente. O IPCA de novembro ficou em 0,89% — o maior para o mês desde 2015.
Gráfico 1: evolução do IPCA mensal
E, no acumulado de 12 meses, a alta dos preços ficou em 4,31%, acima da meta de 4% do Banco Central para 2020.
Gráfico 2: evolução do IPCA acumulado em 12 meses
E piora: do início de junho ao fim de novembro — ou seja, em apenas seis meses —, o IPCA acumula alta de 3,30%. Alta de 3,30% em apenas seis meses significa que, em meados do ano que vem, quando completarmos o período de 12 meses, o IPCA poderá estar rodando próximo de 7%, muito acima do teto da meta, que é de 5,25%.
Inflação acima do teto, ainda que temporariamente, é sempre um risco, pois pode alterar as expectativas futuras e desencadear várias remarcações de preços defensivas.
Inflação acima da meta faz com que as pessoas passem a crer que a inflação de preços, por estar alta no presente, continuará alta no futuro. Consequentemente, essa deterioração das expectativas pode fazer com que os formadores de preço — dentistas, encanadores, mecânicos, cabeleireiros, supermercados, indústrias e comércio — passem a reajustar seus preços baseando-se nessas expectativas.
Trata-se de uma reação natural à percepção de que está havendo uma perda real de renda, o que leva a um processo defensivo por parte desses agentes econômicos, que tentam preservar sua renda real por meio de reajustes de preços, salários e contratos.
Isso ocorreu durante todo o governo Dilma, e foi necessário um profundo choque monetário — a SELIC foi elevada de 7,25% para 14,25% e, pela primeira vez na história do real, a oferta monetária se contraiu — para quebrar essas expectativas inflacionárias.
Felizmente, por ainda estarmos bem no início do processo, é possível fazer uma reversão de curso sem ter de recorrer a choques drásticos. Mas não dá para postergar. (O comunicado de ontem do Banco Central, após a reunião do Copom, por ter sido um pouco mais linha-dura que de costume, já ajuda).
De resto, o fato é que pouca gente imaginou que essa carestia pudesse ocorrer em 2020. Ainda em novembro, o relatório Focus indicava um IPCA para 2020 confortavelmente abaixo da meta, com alta de 3,25%.
Foi só há alguns dias que passaram a prever inflação acima da meta.
Isso é incompreensível, pois todos os dados já indicavam, ainda no primeiro semestre, que haveria uma grande pressão altista nos preços.
Os dados eram claros
A carestia atual é resultado direto do aumento da moeda injetada na economia pelo Banco Central. A inflação é e sempre foi, em todos os tempos e lugares, um fenômeno monetário.
A política monetária frouxa do Banco Central é a responsável direta pelo fenômeno.
O gráfico a seguir mostra a evolução da taxa Selic e da oferta monetária (M1).
Gráfico 3: linha azul, eixo da direita: M1; linha vermelha, eixo da esquerda: taxa Selic
Observe que a relação é quase sempre inversa. Quando a Selic sobe, a expansão da oferta monetária sofre uma desaceleração. Quando a Selic cai, a expansão da oferta monetária acelera.
Essa forte expansão monetária teve como efeito direto a forte elevação dos índices de preço no atacado. Não apenas a Teoria Austríaca dos Ciclos Econômicos prevê isso, como se trata de uma relação historicamente empírica: sempre que a oferta monetária se expande, os preços no atacado vão junto.
Os dois gráficos abaixo deixam isso cristalino. O primeiro gráfico mostra a taxa de crescimento acumulada em 12 meses do M1. O segundo gráfico mostra a taxa de crescimento da inflação de preços no atacado.
Gráfico 4: taxa de crescimento da oferta monetária M1 (acumulada em 12 meses).
Gráfico 5: evolução mensal do IPA (média móvel acumulada em 12 meses). O valor na coluna da esquerda se refere a valores mensais; para saber o valor acumulado a cada 12 meses, basta elevar o valor da coluna da esquerda ao expoente 12. Assim, o atual valor de 2,5 significa uma inflação de preços de 34,50% em 12 meses (1,025ˆ12).
Sem nenhuma surpresa, a variação de M1 e a variação de preços no atacado é direta. Recentemente, a expansão de 50% do M1 gerou um encarecimento de 34,50% dos preços no atacado.
A questão é saber o quanto dessa variação dos preços no atacado irá "vazar" para os preços ao consumidor. Neste quesito, aí sim, passou a haver uma discrepância. É a primeira vez na história recente que a elevação dos preços no atacado e a elevação dos preços ao consumidor apresenta um enorme distanciamento.
Gráfico 6: taxa média mensal, em um período de 12 meses, da inflação de preços no atacado (linha azul) e da inflação de preços ao consumidor (linha vermelha).
A questão agora é se linha vermelha vai subir para se aproximar da azul, ou se a linha azul vai cair para se reaproximar da vermelha, ou se ambas vão se encontrar na metade do caminho.
Para o Banco Central e seu sistema de metas de inflação, apenas a segunda alternativa pode ocorrer.
A carestia divulgada e a carestia sentida
O Brasil ainda não se esqueceu que quem mais sofre com a inflação é o pequeno. A começar por seu custo de vida, seguramente maior do que indica o atual IPCA.
Como já explicamos detalhadamente aqui, a cesta desse índice reflete um padrão de consumo de anos anteriores e, consequentemente, está inadequada ao especialíssimo ano de 2020.
O IPCA deste ano, por continuar mantendo inalterados os pesos de itens cuja demanda simplesmente sumiu em decorrência da pandemia — como passagens aéreas, hotéis, turismo, lazer, estacionamentos, ingressos de cinema e teatro, mensalidades escolares e cursos de idioma — transformou-se no índice daquele economista imaginário que passou a pandemia viajando de avião, se hospedando em hotéis e sem comer arroz. Nada a ver com o Brasil real.
A Fecomércio de São Paulo se empenhou em corrigir essa falha e passou a calcular o custo de vida dos produtos e serviços essenciais mais consumidos pelo pequeno neste momento de crise. A "cesta da pandemia" contém os grupos de alimentação e bebidas, habitação, saúde e cuidados pessoais. Essa cesta subiu 11,4% nos últimos 12 meses. O arroz subiu 65%, o feijão, 46%, e o leite, 33%. O brasileiro não leva para casa o IPCA.
Depois do pequeno, os mais prejudicados com a inflação são justamente os políticos, que perdem eleições enquanto a carestia punir o mais fraco. A conferir.
O que ele fará
O Banco Central está em uma posição delicada. Até ontem, ele vinha prometendo manter a Selic em 2% (muito abaixo da inflação) por tempo indeterminado, provavelmente até o quarto trimestre de 2021, por força da política de "forward guidance" (orientação futura), a qual importou dos países desenvolvidos e passou a adotar abertamente desde agosto.
No entanto, no comunicado de ontem, deu a entender que abandonará esta política caso a inflação de preços comece a ficar acima das atuais expectativas — as quais, vale repetir, erraram muito.
Assim, ele torce para que os efeitos da expansão de 50% da massa monetária (que ele mesmo promoveu) sejam anulados pela descontinuidade do auxílio emergencial e por um dólar comportado — cuja queda pode não significar muito, pois a moeda americana está se enfraquecendo no mundo inteiro.
O mercado, porém, ainda não está acreditando muito nesse milagre. Os títulos indexados à inflação indicam IPCA próximo a 4% em 2021, com uma corcova em meados de 2021 ao ritmo de 6% ao ano. E o mercado futuro de juros indica que a Selic estará próxima a 4,5% em janeiro de 2022, bem acima das projeções dos analistas, que esperam 3%.
Em 2012, um Banco Central desconfortavelmente servil ao Executivo federal derrubou a Selic de 12,50% para 7,25%, nível mais baixo até então. A inflação, tal como agora, subiu rapidamente com o estímulo dos juros e obrigou o BC a subir a Selic dois anos depois para 14,25%, detonando a recessão que caracterizou o fim do governo Dilma em 2015.
Inflação não tem ideologia e não costuma perdoar heterodoxias.
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